quarta-feira, 17 de junho de 2020

Doença Celíaca: diretrizes diagnósticas da ESPGHAN 2020 (Parte 1)


Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

O número de janeiro de 2020, da tradicional revista Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition, traz um artigo intitulado “European Society Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (ESPGHAN): guidelines for diagnosing Celiac Disease 2020 de autoria de Husby S. e cols., devidamente revisadas, que abaixo passo a resumir.

Introdução
O reconhecimento do amplo espectro clínico da Doença Celíaca (DC) evoluiu durante as últimas décadas. Tornou-se evidente que a DC é uma enfermidade comum que ocorre em todas as idades e com uma grande variedade de sinais e sintomas. Em 2012 (2), um grupo de trabalho da ESPGHAN revisou as diretrizes diagnósticas para a DC. A principal mensagem destas orientações afirma que o diagnóstico da DC pode ser estabelecido sem a necessidade da realização de biópsias em um subgrupo de pacientes pediátricos, porque a enteropatia celíaca (alterações Marsh 2 ou 3) encontra-se praticamente de forma invariavelmente presente nos pacientes com níveis séricos altamente elevados para os auto anticorpos celíacos. Para esta abordagem, assim chamada não-biópsia, todos os seguintes critérios teriam que ser preenchidos:
1)   Sintomas sugestivos de DC (particularmente má absorção);
2)   Níveis séricos ≥10 vezes o limite da normalidade (ULN) dos anticorpos IgA antitransglutaminase (TGA-IgA);
3)   Anticorpos Antiendomisio (EMA-IgA) em uma segunda amostra sanguínea;
4)   Positividade do antígeno leucocitário humano (HLA) de risco para DC, alelos DQ2 e/ou DQ8;
5)  A não realização das biópsias duodenais deveria ser somente levada em consideração caso os pacientes/pais compreendessem este critério diagnóstico e estivessem comprometidos com a utilização de uma dieta isenta de glúten. O diagnóstico e o seguimento do paciente deveriam ser realizados por um Gastropediatra.

Muito embora as últimas diretrizes envolvendo pacientes adultos, publicadas em 2013 e 2014 (3-4), não tivessem dado a opção para a abordagem não-biópsia, as diretrizes da ESPGHAN 2012 atraíram grande interesse. Inúmeros estudos prospectivos recentes têm avaliado favoravelmente o desempenho não-biópsia e com base nesta evidência foi decidido atualizar e expandir as diretrizes de 2012 (2).

Métodos
Foram enviadas, aos membros do grupo de trabalho, 10 questões, e, as recomendações resultantes estão apresentadas na Tabela 1. A análise histológica das biópsias duodenais foi considerada como o padrão de referência na acurácia diagnóstica e os desfechos pré definidos de maior interesse foram: sensibilidade, especificidade e valores preditivos negativo e positivo.

Tabela 1- Questions for the 2020 European Society Paediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition criteria for the diagnosis of coeliac disease


Resultados  
Sintomas e Sinais
Questão 1: Há alguma diferença na prevalência da DC nas crianças com constipação, dor abdominal, sinais de Síndrome do Intestino Irritável (SII), dispepsia, má absorção, anemia ferropriva ou aftas orais, em comparação com a população geral?

Um largo espectro de sintomas e sinais têm sido relatados nos pacientes no momento do diagnóstico da DC. Sintomas clássicos de má absorção parecem ser mais específicos e incluem failure to thrive, perda de peso e diarreia crônica. Em relação aos sintomas menos específicos, há evidências de que pacientes com sintomas de SII com diarreia, anemia ferropriva, constipação crônica e defeito do esmalte dentário, apresentam um risco aumentado para a DC. Em relação a outros sintomas gastrointestinais inespecíficos tais como, dor abdominal, dispepsia e flatulência, as evidências são insuficientes.

O grupo de trabalho recomenda considerar o teste para a DC nas crianças e adolescentes cujos sintomas e sinais estão apresentados na Tabela 2.  
Tabela 2 - Symptoms and signs suggesting coeliac disease
Aspectos HLA
Questão 2: O que a pesquisa HLA QD2/DQ8 acrescenta para o diagnóstico de certeza da DC?

A tipagem HLA não acrescenta certeza no diagnóstico da DC, caso outros critérios sejam preenchidos. A pesquisa HLA DQ2/DQ8 pode ser útil em outras circunstâncias. Vale ressaltar, que caso estes alelos resultarem negativos, provavelmente o diagnóstico da DC está descartado.

O grupo de trabalho recomenda que a tipagem HLA não se faz necessária nos pacientes que apresentam TGA-IgA positivo, caso eles se qualifiquem para o diagnóstico da DC com a realização de biópsias, ou  caso os títulos séricos TGA-IgA forem ≥10 vezes a unidade padrão, associados ao EMA-IgA positivo. Caso a pesquisa dos testes HLA DQ2/DQ8 resultem negativa, o risco para DC é muito baixo, e, por outro lado, um resultado positivo não confirma o diagnóstico.

Anticorpos
Questão 3: O algoritmo proposto para evitar biópsias em pacientes sintomáticos também se aplica a indivíduos assintomáticos?

Estudos recentes sugerem que a abordagem não-biópsia para o diagnóstico da DC pode ser aplicada para crianças assintomáticas. Entretanto, nas crianças assintomáticas, o valor preditivo positivo (vpp) dos níveis elevados TGA-IgA ≥10 vezes a unidade padrão pode ser mais baixo nas crianças assintomáticas, o que necessita ser considerado durante o processo de tomada de decisão.

O grupo de trabalho oferece uma recomendação condicional que, levando-se em consideração a evidência disponível, a DC pode ser diagnosticada sem a realização de biópsias duodenais em crianças assintomáticas utilizando-se os mesmos critérios que aqueles válidos para pacientes sintomáticos. O grupo de trabalho recomenda que a decisão de se realizar ou não biópsias duodenais para o diagnóstico da DC, deve ser tomada durante um processo de discussão compartilhada juntamente com os pais e se possível com a própria criança.

Questão 4: Qual é o teste sorológico mais apropriado para o diagnóstico da DC?

Os três anticorpos específicos para o diagnóstico de DC, a saber: TGA-IgA, EMA-IgA e DGP-IgG, apresentam diferentes desempenhos. TGA-IgA apresenta a mais alta pontuação quando se leva em consideração a acurácia do teste, em comparação com os outros dois, e, é portanto, considerado como o teste mais apropriado na bateria diagnóstica nas crianças com suspeita de DC. O grupo de trabalho recomenda que, em indivíduos que apresentam valores séricos normais de IgA para a idade, a TGA-IgA deve ser usada como teste inicial a despeito da idade.

Questão 5: Deve-se utilizar mais do que um teste sorológico, e, em caso positivo, qual deve ser a sequência da testagem?

A evidência atual indica que a adição dos testes DGP-IgG, DGP-IgA ou AGA-IgA em relação a TGA-IgA raramente aumenta a sensibilidade após a exclusão de pacientes com níveis baixos de IgA total. A especificidade nitidamente diminui, especialmente nas crianças menores de 4 anos de idade, nas quais a positividade isolada da DPG ou AGA é um fenômeno comum transitório.  

O grupo de trabalho recomenda o teste para a realização da IgA sérica total e a TGA-IgA como rastreamento inicial nas crianças suspeitas de DC. Nos pacientes com níveis baixos de IgA sérica, um teste baseado na IgG (DGP, EMA ou TGA) deve ser realizado como um segundo passo. A testagem para anticorpos EMA, DGP ou AGA (IgG ou IgA) como um rastreamento inicial na prática clínica não está recomendado.

Questão 6: Qual o ponto de corte para a TGA-IgA (ULN ≥10x, 7x, 5x) pode ser estabelecido com segurança (valor preditivo positivo superior a 95%) para o diagnóstico da DC com omissão das biópsias?

Níveis séricos elevados de TGA-IgA ≥10x a ULN, prevê enteropatia Marsh 2 a 3, e devem ser utilizados como critério diagnóstico para a DC sem a realização de biópsias. Devido a variabilidade entre laboratórios e entre os testes, a confiabilidade dos níveis positivos de TGA-IgA menores que 10x a ULN é baixa, e como a TGA-IgG está mais inclinada para erros técnicos, estes critérios não são apropriados para a abordagem desprovida de biópsias.

O grupo de trabalho recomenda, para o diagnóstico da DC sem biópsias, a obrigatoriedade de que os níveis séricos da TGA-IgA ≥10x a ULN seja levada em consideração. Somente testes do anticorpo com o cálculo da curva utilizando um calibrador próprio e demonstrando o valor de ≥10x a ULN, dentro do seu alcance de mensuração deve ser utilizado. O grupo de trabalho manifesta-se ser contrário a omissão de biópsias nos casos de deficiência sérica de IgA, mesmo quando os testes sorológicos IgG mostrarem-se positivos.

Questão 7:  A testagem do EMA-IgA faz-se necessária em todos os casos para o diagnóstico da DC sem biópsias?

Embora altos títulos TGA-IgA ≥10x a ULN sejam raros nas crianças com histologia duodenal normal, um resultado EMA-IgA positivo, posteriormente realizado, irá diminuir significativamente a taxa de resultados falso-positivos.

O grupo de trabalho recomenda que em crianças com TGA-IgA ≥10x a ULN, e com o consentimento dos pais/paciente para a abordagem não biópsias, o diagnóstico de DC de ser confirmado com um teste positivo EMA -IgA, em uma segunda amostra sanguínea.

Biópsia
Questão 8:  Qual é a variabilidade inter e intra observadores a respeito do resultado histopatológico para o diagnóstico da DC nas biópsias duodenais e do bulbo? Qual o grau de lesão é considerado para DC não tratada? Biópsia do bulbo duodenal aumenta a taxa de detecção de DC? Faz-se necessária a referência de um patologista experimentado na prática clínica?

A variabilidade inter-observador, com relação à graduação das lesões histopatológicas do intestino delgado é elevada, o que indica que a histopatologia não pode ser utilizada como um único padrão de referência.  Uma taxa mais alta de detecção da DC pode ser alcançada com múltiplas amostras duodenais, incluindo pelo menos uma do bulbo. A leitura histopatológica pode ser aperfeiçoada pela validação de procedimentos operacionais padronizados. Biópsias de baixa qualidade ou com orientação incorreta não são apropriadas para o diagnóstico da DC.

O grupo de trabalho recomenda que sejam obtidas pelo menos 4 biópsias do duodeno distal e pelo menos uma do bulbo duodenal, para a avaliação histológica, na vigência de uma dieta contendo glúten. A leitura das biópsias deve ser realizada em material otimamente orientado. Uma relação vilosidade/cripta inferior a 2, indica lesão da mucosa. Nos casos de resultados discordantes entre a TGA-IgA e a histopatologia, novos cortes do material de biópsia e/ou uma segunda opinião emitida por um patologista experimentado, deve ser requerida.

Questão 9: Teria uma lesão Marsh 1 (somente aumento da contagem dos linfócitos intraepiteliais) em comparação com Marsh 0, um desfecho a longo prazo, diferente em relação ao diagnóstico da DC nas crianças com autoimunidade celíaca (TGA ou EMA positivos)?  

O termo DC potencial identifica indivíduos com TGA-IgA e EMA-IgA positivos e isentas de mínimas alterações histológicas no intestino delgado. Motivos para esta situação, entretanto, podem também serem devidas a uma baixa ingestão de glúten, antes da realização das biópsias, erros de amostragem ou orientação incorreta das biópsias para leitura, acarretando um diagnóstico equivocado de DC potencial ao invés de DC verdadeira. Lesão Marsh1 não é considerada suficiente para o diagnóstico de DC, porém, alguns observadores sugerem que casos de DC potencial com lesões Marsh 1, têm uma probabilidade maior para evoluir para atrofia vilositária em comparação a Marsh 0. 
O grupo de trabalho recomenda que, antes de se diagnosticar DC potencial, seja checado o conteúdo de glúten na dieta e a correta orientação das biópsias. Uma vez confirmado o diagnóstico de DC potencial é necessária uma vigilância clínica e laboratorial (sorologia e biópsias posteriores) para monitorar a possível evolução para atrofia vilositária. Para questões de seguimento é importante referir o paciente para um centro de cuidado terciário com expertise na DC.

Questão 10: Qual a frequência de outros diagnósticos clínicos relevantes serem perdidos, no caso de a endoscopia digestiva alta (EDA) (esofágica, gástrica e duodenal) não ser realizada naqueles pacientes diagnosticados com DC pela abordagem da não-biópsia?

Não há evidências para dar suporte à possibilidade de que diagnósticos relevantes sejam perdidos caso a EDA com biópsias sejam omitidas para o diagnóstico da DC. O grupo de trabalho recomenda que a decisão para omitir EDA com biópsias, pode ser tomada não levando em consideração a omissão de outros diagnósticos ou patologias. 

Algoritmos
Tomando-se por base as evidências, os algoritmos das orientações de 2012 da ESPGHAN foram modificados para um algoritmo comum (Figura 4), a saber: indivíduos com níveis séricos normais de IgA (Figura 4A), níveis baixos ou ausentes de IgA (Figura 4B) e instruções para biópsias duodenais (Figura 4C) .








Referências Bibliográficas
1-   Husby S – JPGN 2020; 70:141-157
2-   Husby S – JPGN 2012; 54:136-60
3-   Ludvigsson JF – Gut 2014; 63:1210-28
4-   Rubio-Tapia A – Am J Gastroenterol 2013; 108:656-76

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