terça-feira, 23 de junho de 2020

Doença Celíaca: diretrizes diagnósticas da ESPGHAN 2020 (Parte 2)

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto



Conclusões
As atuais orientações diagnósticas levam em consideração novas evidências, a maioria delas advindas de inúmeros estudos, inspiradas pela publicação de normas prévias. Nem todas os postulados das diretrizes de 2012 foram baseados em um grau similar de evidência. A maioria dos estudos informativos conduzidos em anos recentes, têm confirmado a substancial correção das guias de conduta de 2012, porém, ao mesmo tempo indicam que é necessário considerar que o processo está sempre em evolução e, ainda assim, distante de ser concluído.  

Meus Comentários
A Doença Celíaca (DC) é uma enfermidade autoimune caracterizada pela intolerância permanente ao glúten da dieta contido no trigo, cevada e centeio. A DC apresenta uma característica extremamente peculiar em relação às outras enfermidades autoimunes, porque para que ela ocorra é necessário que exista a contribuição de um fator ambiental-alimentar, claramente identificável (o glúten), associado à presença, no paciente, de um Antígeno de Histocompatibilidade (HLA – human leukocytes antigen) dominante, DQ2 ou DQ8.

A DC é, portanto, o resultado da interação entre o glúten e fatores imunológicos, genéticos e ambientais. A gliadina, a fração solúvel em álcool do glúten, é uma proteína rica em aminoácidos de glutamina e prolina, e que é pobremente degradada pelas enzimas digestivas. As moléculas não digeridas da gliadina atravessam a barreira de permeabilidade intestinal, provavelmente durante um processo infeccioso ou quando há um aumento da permeabilidade por qualquer outra razão, e interage com as células apresentadoras de antígeno da lâmina própria da mucosa intestinal.

É fato reconhecido pelos historiadores que há cerca de 10.000 anos não havia grãos contendo glúten na natureza, e, portanto, presumivelmente, também não existia a DC. Com o advento da agricultura, o trigo e outros grãos contendo glúten passaram a ser cultivados extensivamente, o que veio a fornecer um dos dois elementos chave, o outro é a predisposição genética, para a ocorrência da DC (Figura 1).



Entretanto, foi somente no século I da era cristã que Areteus da Capodócia relatou de forma científica a primeira descrição da DC. Ele descreveu as fezes características, o caráter crônico da enfermidade, a maior incidência na mulher e a possibilidade de crianças serem afetadas. Nos tempos mais recentes, no entanto, deveu-se a Samuel Gee, em 1888, na Inglaterra, a descrição em seu livro “On the celiac afection”, (a palavra Celíaco tem origem no grego e quer dizer “ventre abaulado”) muitas das características clássicas pelas quais ainda atualmente a DC se apresenta, a saber: ”indigestão crônica encontrada em pessoas de todas as idades, especialmente em crianças entre 1 e 5 anos”. Gee sugeriu ainda que a DC ocorreria por um erro dietético, e que a cura poderia ser alcançada pela introdução de uma dieta adequada. Mas, foi somente 60 anos mais tarde que o pediatra holandês Willem Karel Dicke, em 1950, acompanhando diversas crianças com deficiência pondero-estatural e esteatorreia em Haia e Utrecht, provou o efeito deletério do trigo. Ele demonstrou que a fração proteica do trigo, o glúten, em especial a gliadina, é o fator responsável pela instalação da DC. Porém, neste intervalo de tempo inúmeras teorias para explicar sua causa foram propostas, assim como as mais variadas tentativas terapêuticas, as quais estão disponíveis na literatura médica. Por exemplo, Schultz, em 1904, atribuía a causa da DC a uma alteração da flora putrefativa intestinal, enquanto que Herter e Holt, em 1908, propunham que a etiologia se devia à flora de lactobacilos; Henfner, em 1909, considerou a existência de uma grave insuficiência digestiva após o desmame e preconizava a utilização do leite humano. Haas, em 1924, revolucionou o tratamento dietético propondo algo totalmente inédito para sua época, a dieta de banana, inclusive excluindo os carboidratos dos cereais, a qual baixou de forma espetacular a alta mortalidade da DC, e por isso tornou-se muito recomendada até 1950. Stheeman, em 1932, observou que um dos seus pacientes com DC apresentava um agravo do distúrbio diarreico em seguida à ingestão de alimentos contendo amido; a criança revelava intensa idiossincrasia a alimentos como biscoito, pão e farináceos. Ainda em 1932, Parsons fez uma revisão de 94 casos de DC ocorridos na infância e reconheceu que enquanto as crianças eram amamentadas exclusivamente ao seio materno não apresentavam sintomas sugestivos da enfermidade. Afirmava, também, que a DC podia afetar igualmente adultos e crianças, chamando a atenção para a grande variabilidade dos sintomas e para o papel que os carboidratos desempenhavam para o desencadeamento da enfermidade. Em 1934, Luell e Campos descreveram as alterações radiológicas presentes na DC: “motilidade intestinal diminuída, alterações no padrão da mucosa jejunal com ausência do pregueamento característico e fragmentação da coluna de bário”.

Mas, indiscutivelmente, o grande salto de qualidade na melhor compreensão dos efeitos deletérios sobre o organismo provocados pela DC se deveu ao esclarecimento da sua etiologia pelo Professor Dicke. Ele observou que na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), durante o período da ocupação nazista na Holanda, em virtude da grande escassez de alimentos, em especial o pão (durante o racionamento não havia disponibilidade de alimentos contendo glúten, e sim outros alimentos contendo carboidratos complexos, como o amido, que embora em pequena quantidade, ainda estavam disponíveis para o consumo), paradoxalmente as crianças portadoras de DC apresentavam uma melhora clínica. Dicke observou também que, durante as internações, quando os pacientes seguiam uma dieta livre de glúten havia uma diminuição da diarreia com desaparecimento da esteatorreia e retomada da normalidade da curva de crescimento. Por outro lado, Dicke notou que após o término da guerra estas mesmas crianças vieram a apresentar uma deterioração clínica quando os Aliados, através do plano Marshall, passaram a suprir alimentos à população, particularmente o pão. Subsequentemente, Dicke publicou uma série de artigos comprovando claramente a associação do trigo e da cevada como causadores da DC.

Vale ressaltar que a primeira descrição da realização da biópsia do intestino delgado se deve a um médico argentino Dr. Royer, que publicou sua façanha na Prensa Médica Argentina, em 1956. No mesmo ano a médica inglesa Dra. Margot Shiner realizou a primeira biópsia de intestino delgado em um paciente com DC e publicou seu feito na revista inglesa The Lancet. Mas somente no início da década de 1960 passou-se a dispor de um equipamento apropriado para a realização rotineira de biópsias de intestino delgado, o qual foi criado por Crosby e Kugler. Vale ressaltar que Crosby era um hematologista que estava interessado em estudar a absorção intestinal de ferro. Para tal se associou ao engenheiro mecânico Kugler para desenvolver um instrumento que pudesse obter amostras de fragmentos de intestino delgado, cujo instrumento acabou sendo batizado de cápsula de Crosby-Kugler. Esta cápsula, sem dúvida alguma resultou no avanço mais espetacular para propiciar o estudo das lesões morfológicas da mucosa intestinal na DC, tornando-se, desde então, até os dias atuais, o padrão ouro no diagnóstico da DC.

O primeiro caso com comprovação diagnóstica documentada com biópsia de intestino delgado, no Brasil, foi descrito e publicado em 1976, pelo nosso grupo da Gastropediatria da Escola Paulista de Medicina, constituído naquela ocasião por Ulysses Fagundes Neto e Jamal Wehba, após meu retorno da especialização realizada no Policlínico Alejandro Posadas, em Buenos Aires, em 1973, sob a orientação do saudoso Dr. Horácio Toccalino, (Figuras 2-3-4-5-6) (Fagundes Neto, U. Ped. Prát. 47(11-12): 23-26, 1976).


Figura 2- Nosso primeiro paciente com DC no momento da internação evidenciando desnutrição grave e grande irritabilidade.

Figura 3- A DC na sua expressão mais intensa de desnutrição, a caquexia.


Figura 4- Nosso paciente alguns dias após o diagnóstico e em dieta isenta de glúten. Começava a recuperar a sociabilidade perdida e a se interessar pelas coisas ao seu redor, inclusive os brinquedos.


Figura 5- Comparação nutricional do nosso paciente no momento da internação e após alguns meses em dieta isenta de glúten, com total recuperação clínica e nutricional.

Figura 6- A importância do diagnóstico correto e cumprir com rigor a dieta isenta de glúten, sem permitir quaisquer transgressões, ainda que esporádicas.

Depois desta primeira descrição muitos outros casos, até então considerados pacientes portadores de desnutrição por verminose ou problemas de ordem sócio-econômica, vieram a ser também diagnosticados. Atualmente sabe-se que a prevalência da DC no nosso meio é tão frequente quanto aquela descrita em outras regiões do mundo de 1:100 indivíduos. 

O diagnóstico da DC, como é do conhecimento geral, baseia-se nas alterações morfológicas da mucosa do intestino delgado, as quais embora não sejam patognomônicas, são altamente características, levando a graus variados de atrofia vilositária, infiltrado linfocitário intra-epitelial e hiperplasia das glândulas crípticas (Figura 7).


Figura 7- Microfotografia de biópsia do intestino delgado, em microscopia óptica comum, grande aumento, de paciente portador de Doença Celíaca evidenciando atrofia vilositária total, hiperplasia das glândulas crípticas e aumento dos linfócitos intra-epiteliais.

Vale ressaltar que os sintomas e as lesões morfológicas do intestino delgado são totalmente reversíveis com a introdução de uma dieta isenta de glúten restrita (Figura 8).

Figura 8- Microfotografia de biópsia do intestino delgado, em microscopia óptica comum, grande aumento, de paciente portador de Doença Celíaca 6 meses após início da dieta isenta de glúten. As vilosidades intestinais encontram-se digitiformes, as glândulas crípitcas normais e o infiltrado linfo-plasmocitário da lâmina própria discreto, células epiteliais cilíndricas com núcleo em posição basal e glândulas crípticas preservando a relação vilosidade/cripta 4ou5:1.

Presentemente, os critérios diagnósticos de graduação das alterações morfológicas da mucosa intestinal aceitos internacionalmente para o diagnóstico da DC são os propostos por Marsh, em 1992 (Figuras 9-10).


Figura 9- Representação esquemática dos critérios de Marsh para o diagnóstico da Doença Celíaca.


Figura 10- Graduação histológica das lesões do intestino delgado na Doença Celíaca.

Marsh classificou as alterações histológicas para o diagnóstico da DC nos seguintes graus, a saber: Grau 0, estágio pré-infiltrativo (normal), Grau 1, lesão infiltrativa (aumento do número de linfócitos intra-epiteliais), Grau 2, lesão hiperplásica (Grau 1 + hiperplasia das criptas), Grau 3, lesão destrutiva (Grau 2 + atrofia vilositária parcial), Grau 4, lesão hipoplásica (atrofia vilositária total com hipoplasia críptica). A lesão Grau 3 foi modificada para ser subdividida em Grau 3a (atrofia vilositária parcial), Grau 3b (atrofia vilositária subtotal) e Grau 3c (atrofia vilositária total).

A existência de lesão Marsh Grau 3 com atrofia vilositária, ou mais intensa, é aceita como claro aspecto diagnóstico da DC. A ocorrência de lesão Marsh Grau 2 associada à positividade de marcadores sorológicos é altamente sugestiva da DC. A existência da lesão histológica Marsh Grau 1 é considerada inespecífica, porém, se essa lesão vier acompanhada de positividade dos marcadores sorológicos deve-se considerar fortemente o diagnóstico de DC. Nesta situação deve-se realizar a tipagem HLA e se necessário repetir a biópsia do intestino delgado, ou então, indicar o emprego da dieta isenta de glúten e após 6 meses repetir os testes sorológicos e a biópsia do intestino delgado.

Muito embora eu nutra um profundo respeito pelo grupo de trabalho da ESPGHAN sinto-me no direito de discordar especificamente quanto ao critério diagnóstico não-biópsia, pelas seguintes razões, a saber:

1-   Os testes sorológicos ainda que se revistam de extraordinária importância como rastreamento diagnóstico da DC nem sempre apresentam 100% de sensibilidade e especificidade. Além disso, podem apresentar variabilidade dependendo da metodologia de cada laboratório e dos diferentes locais aonde os testes são realizados. 



2- Por outro lado, atualmente a endoscopia digestiva alta passou a ser um exame extremamente seguro, rotineiro na prática médica, desde longa data, e praticamente de domínio universal. Além disso, durante a realização do próprio procedimento é possível se fazer uma avaliação macroscópica inicial ao se visualizar, pela lupa, na estrutura da mucosa duodenal, a ausência das pregas de Kerkring. Isto permite que as biópsias possam ser dirigidas diretamente para estas áreas focais de lesão, posto que as alterações da mucosa não são necessariamente sempre difusas.

3-  Considerando-se que estamos tratando de uma enfermidade que envolve uma intolerância permanente ao trigo, centeio e cevada, alimentos que fazem parte fundamental da nossa cultura alimentar ocidental, parece-me indispensável que tenhamos a absoluta certeza do diagnóstico definitivo de DC. Esta certeza é a base para que possamos transmitir, com total confiança aos pais e aos pacientes, a imperiosa necessidade para que seja cumprida de forma restrita a dieta isenta de glúten.

4-   Como é do conhecimento geral, a necessidade da adesão a uma dieta isenta de glúten de forma restrita diz respeito à prevenção de uma série de potenciais efeitos colaterais da DC, quando ocorrem transgressões dietéticas. Dentre os inúmeros efeitos colaterais podemos citar osteoporose, deficiências das vitaminas lipossolúveis, parada do ritmo de crescimento, outras enfermidades autoimunes (Diabetes, Tireoidite), neoplasia intestinal etc.

Isto posto, devo reafirmar a importância da realização de oficinas de trabalho, como a atual publicação, que leva em consideração as revisões sistemáticas baseadas em evidências, valorizando acima de tudo a ciência, a despeito da possível existência de algumas menores discordâncias, posto que a Medicina não é uma ciência exata. 

Referências Bibliográficas 
1-   Husby S – JPGN 2020; 70:141-157
2-   Husby S – JPGN 2012; 54:136-60
3-   Ludvigsson JF – Gut 2014; 63:1210-28
4-   Rubio-Tapia A – Am J Gastroenterol 2013; 108:656-76