Ulysses
Fagundes-Neto e Jacy Alves Braga de Andrade
Introdução
Alergia alimentar é uma reação adversa aos
alimentos mediada por mecanismos imunológicos, IgE mediados ou não IgE mediados.
Colite Alérgica (CA) é um tipo de alergia que pertence ao grupo de
hipersensibilidade alimentar não mediada por IgE, também denominada proctocolite
induzida por alimentos (1). O mecanismo fisiopatológico ainda não foi
totalmente identificado, porém, sabe-se que envolve a presença de linfócitos
CD8, bem como linfócitos do tipo TH-2 e infiltrado eosinofílico em todas as
camadas da mucosa colônica (2). Além disso, a presença de células de memória
circulantes revelada por testes positivos de transformação linfocítica sugere o
envolvimento de células T na patogênese desta entidade, associada à secreção de
fator de necrose tumoral α pelos linfócitos ativados (3).
Trata-se de uma enfermidade eminentemente do
primeiro ano de vida e mais frequentemente afeta lactentes no primeiro
semestre, sem provocar agravos de monta sobre o estado nutricional (4). A
manifestação clínica mais florida e frequente é a ocorrência de cólicas, de
intensidade variável, acompanhada de sangramento retal misturado às fezes, na
maioria das vezes sob a forma de diarreia sanguinolenta e eliminação de
quantidade significativa de muco (5). Por outro lado, em algumas ocasiões o
sangramento retal pode não ser macroscopicamente visível. Usualmente, as lesões
são circunscritas ao colon distal e a colonoscopia revela mucosa hiperemiada,
com a presença de múltiplas pequenas ulcerações com grande fragilidade vascular
e sangramento espontâneo à passagem do colonoscópio (6). A análise histológica
evidencia, na imensa maioria dos casos, infiltração eosinofílica, com mais de
20 esosinófilos por campo de grande aumento, a qual pode atingir todas as
camadas da mucosa colônica, inclusive o epitélio superficial, podendo também
haver a presença de abscessos crípticos e hiperplasia nodular linfóide (7,8).
Estima-se que fatores genéticos exerçam papel
fundamental na expressão desta doença alérgica, posto que uma elevada ocorrência
de história de atopia nas famílias de crianças que sofrem de CA eosinofílica têm
sido descritas (9,10).
No presente trabalho relatamos casos de CA em
lactentes, primos entre si, pertencentes a 2 grupos familiares distintos o que
evidencia uma forte possibilidade de herança genética envolvida na gênese desta
enfermidade, bem como comprovamos o caráter transitório da evolução clínica
desta enfermidade.
Casuística e
Métodos
Foram
estudados 5 lactentes menores de 6 meses de idade de ambos os sexos pertencentes
a 2 grupos familiares distintos (Tabelas 1 e 3), com diagnóstico de CA caracterizada
clínica e histologicamente de acordo com os critérios de Walker Smith (11), a
saber (Figura 1):
1- Presença de sangramento retal em um lactente
com desenvolvimento pondero-estatural adequado;
2- Exclusão de causas infecciosas de colite;
3- Desaparecimento dos sintomas após eliminação
do leite de vaca e derivados da dieta da criança e/ou da mãe.
Figura 1- Presença de sangue e muco visíveis a
olho nu misturados às fezes.
Os pacientes foram submetidos à seguinte
investigação diagnóstica:
1-
Hemograma;
2- Cultura de fezes para pesquisa de agentes enteropatogênicos; 3- Parasitológico
de fezes; 4- Retoscopia ou Colonoscopia; 5- Biópsia retal
A avaliação da morfologia da mucosa retal foi
realizada de acordo com os critérios de Diaz e cols. (5), a saber: os fragmentos
de tecido foram submersos em solução de formalina 10% e, posteriormente,
incluídos em parafina e corados com a técnica da hematoxilina-eosina. Foram
avaliados os seguintes elementos microscópicos: epitélio superficial,
arquitetura das glândulas crípticas, infiltrado celular da lâmina própria e
nódulos linfóides. Foi realizada a contagem de eosinófilos para cada camada da
mucosa retal de acordo com os critérios de Winter e cols. (12).
Foi obtido consentimento verbal dos pais para a
realização dos exames.
Resultados
A cultura de fezes e a pesquisa parasitológica
nas fezes resultaram negativas em todos os pacientes.
Família 1
Tabela 1- Heredrograma da Família 1
Tabela 2 - Principais características clínicas,
nutricionais e laboratoriais dos 3 lactentes pertencentes à Família 1.
Família 1
|
VCA
|
LBRA
|
FEBP
|
Idade (meses)
|
6
|
4,5
|
1
|
Peso (g)/Altura (cm) ao nascimento
|
3600/51,5
|
3270/49
|
3180/49
|
Peso (g)/Altura (cm) na consulta
|
9615/71
|
6855/66
|
4695/55
|
Idade de início do quadro (meses)
|
5,5
|
3,5
|
1,2
|
Estado geral
|
Bom
|
Bom
|
Bom
|
Proctite
|
Sim
|
Sim
|
Sim
|
Palidez cutânea
|
Não
|
Sim
|
Não
|
Hb
|
11,3
|
11,7
|
-
|
Colonoscopia
|
Colite/Fissuras anais e HNL
|
Colite
|
Colite
|
Anatomopatológico
|
Esboço de
granuloma e HNL
|
Microcolite
|
Colite eosinofílica
|
Diagnóstico
|
Colite alérgica e
proctite
|
Colite alérgica e
proctite
|
Colite alérgica
|
Conduta
|
AM
Dexametasona
|
Fórmula de Mistura de
Amino-Ácidos
Dexametasona
|
Fórmula à
base de hidrolisado protéico
|
Evolução
|
Boa
|
Boa
|
Boa
|
Desencadeamento (meses)
|
16
|
11
|
12
|
HNL:
Hiperplasia Nodular Linfóide; AM: Aleitamento
Materno
VCA – sexo masculino, 6 meses de idade, com
história de diarreia com sangue vivo e muco há 20 dias, em aleitamento materno
exclusivo. Ambos os pais referiam antecedentes de rinite alérgica. Ao exame
físico encontrava-se em bom estado geral com ganho pondero-estatural adequado,
Peso= 9615g e Comprimento= 71cm, evidenciando lesões eczematosas na face e
retro-auriculares, e proctite (fissura anal às 6 horas). A colonoscopia revelou
presença de fissuras anais, aspecto de hiperplasia nodular linfóide e
ulcerações colônicas, especialmente no colon direito (Figura 1).
Figura 1- Mucosa colônica evidenciando ulceração (A-B-D) e nódulos linfóides
(C).
A microscopia revelou processo inflamatório com
esboço de granuloma, hiperplasia nodular linfoide e infiltrado eosinofílico com
mais de 20 eosinófilos por campo de grande aumento. Foi levantada a suspeita de
alergia alimentar e doença inflamatória intestinal pela presença do esboço de
granuloma. A mãe foi orientada a realizar dieta de exclusão do leite de vaca e
derivados e soja, associada à dieta do desmame isenta de leite de vaca e derivados
e soja; o paciente foi medicado com dexametasona durante 4 semanas. Foram
realizados os seguintes exames laboratoriais: α1 anti-tripsina fecal: 4,1mg/g, p-ANCA: não
reagente, ASCA: não reagente. A evolução clínica foi favorável com
desaparecimento dos sintomas. Aos 8 meses foi suplementado com fórmula à base
de hidrolisado proteico extensamente hidrolisado (Alfaré, Nestlé) com boa
aceitação. Aos 18 meses foi realizado teste da α1 anti-tripsina fecal: 0,8mg/g e
desencadeamento com fórmula láctea o qual foi bem sucedido.
LBRA – sexo masculino, 4 meses de idade, com
história de diarreia há 1 mês e sangramento retal há 3 dias. Recebeu
aleitamento materno exclusivo até 40 dias de vida quando passou a receber
fórmula láctea inicialmente com boa aceitação. Após 40 dias do uso da fórmula
láctea iniciou quadro de diarreia caracterizada por fezes líquidas e aumento no
número das evacuações, e, 3 dias antes da primeira consulta surgiu sangramento
retal. Ao exame físico encontrava-se em bom estado geral, Peso= 6855 e
Comprimento= 66cm, palidez cutânea ++, proctite (fissuras anais às 5 e 7
horas). A colonoscopia demonstrou presença de hiperemia da mucosa com
microerosões e sangramento espontâneo à passagem do colonoscópio. A microscopia
revelou a existência de colite focal ativa com permeação epitelial por neutrófilos
(Figura 2).
Figura 2- Microfotografia da mucosa colônica
evidenciando erosão do epitélio, aumento do infiltrado linfo-plasmocitário na
lâmina própria, diminuição do conteúdo de muco nas glândulas crípticas e
presença de polimorfonucleares no interior da glândula críptica (abscesso
críptico - seta)
Foi considerada a hipótese de CA e introduzida
fórmula à base de mistura de aminoácidos (Neocate, Danone) e dexametasona (4
semanas), o que resultou em desaparecimento dos sintomas. A partir dos 6 meses
foi introduzida dieta do desmame isenta de leite de vaca e derivados e soja.
Aos 11 meses, como estivesse assintomático e por ter iniciado a recusar a
fórmula de aminoácidos foi realizado o desencadeamento com fórmula láctea com
sucesso.
FEBP- sexo masculino, 40 dias de vida, com
história de cólicas intensas e sangue nas fezes há 5 dias, em aleitamento natural
exclusivo. Ao exame físico encontrava-se em bom estado geral, Peso= 4695 e
Comprimento= 55cm, e proctite (fissura anal às 4 horas). A retoscopia revelou
microulcerações e hiperemia da mucosa retal. A microscopia revelou a presença
de infiltrado eosinofílico superior a 20 eosinófilos por campo de grande
aumento (Figura 3).
Figura 3- Microfotografia da mucosa colônica evidenciando infiltrado
eosinofílico permeando o epitélio, na lâmina própria e nas glândulas crípticas.
Inicialmente o paciente foi mantido em
aleitamento natural exclusivo tendo sido recomendada dieta isenta de leite de
vaca e derivados e soja para a mãe. Como a mãe tivesse cometido transgressões à
dieta os sintomas de sangramento retal persistiram, e, portanto, aos 3 meses de
vida foi espontaneamente suspensa a lactação. A partir desta data foi
introduzida fórmula à base de hidrolisado proteico extensivamente hidrolisado
(Alfaré, Nestlé) e os sintomas desapareceram totalmente dentro dos próximos 3
dias. A partir dos 6 meses de idade foi introduzida dieta do desmame isenta de
leite de vaca e derivados e soja, com boa aceitação e sem quaisquer intercorrências.
Aos 12 meses foi realizado teste de provocação com fórmula láctea com
sucesso.
Família 2
Tabela 3- Heredrograma da Família 2
Tabela 4- Principais características clínicas,
nutricionais e laboratoriais das 2 lactentes pertencentes à Família 2.
Família 2
|
STBP
|
SVBP
|
Idade (meses)
|
5
|
3,5
|
Peso (g)/Altura (cm) ao nascimento
|
3165/50
|
3050/48
|
Peso (g)/Altura (cm) na consulta
|
6585/63
|
5365/59
|
Idade de início do quadro (meses)
|
1,5
|
3
|
Estado geral
|
Bom
|
Bom
|
Proctite
|
Não
|
Não
|
Palidez cutânea
|
Sim
|
Sim
|
Hb g%
|
8,5
|
10
|
Colonoscopia
|
HNL
|
Colite
|
Anatomopatológico
|
HNL
|
Colite Eosinofílica
|
Diagnóstico
|
Colite Alérgica
|
Colite Alérgica
|
Conduta
|
FAA/ Ferro
|
AM/FAA/Dexametasona/Ferro
|
Evolução
|
Boa
|
Boa
|
Desencadeamento (meses)
|
18
|
18
|
HNL: Hiperplasia Nodular Linfóide; AM:
Aleitamento Materno; FAA- Fórmula de Amino-Ácidos.
STBP- sexo feminino, 5 meses de idade, com
história de cólicas intensas e eczema retro-auricular desde os 45 dias de vida.
Recebeu aleitamento natural exclusivo até os 3,5 meses e a mãe referia que os
sintomas se acentuavam quando ela fazia ingestão de leite de vaca, ovos e
chocolate. Ambos os pais com antecedentes alérgicos. Ao exame físico a paciente
encontrava-se em bom estado geral, Peso= 6585g e Comprimento= 63cm, palidez cutâneo-mucosa
++, Hemoglobina= 8,5g%. A colonoscopia revelou a presença de hiperemia da
mucosa e aspecto de hiperplasia nodular linfóide. A microscopia evidenciou
congestão vascular da mucosa e hiperplasia nodular linfóide (Figura 4).
Figura 4- Mucosa colônica evidenciando a presença de nódulos linfóides hiperplasiados.
Figura 5- Microfotografia da biópsia da mucosa colônica do paciente STBP
evidenciando os nódulos linfáticos hiperplasiados.
Inicialmente foi introduzida fórmula à base de
hidrolisado proteico e ferroterapia 5mg/kg/dia; porém como as manifestações
clínicas persistissem esta fórmula foi substituída por outra à base de mistura
de aminoácidos (Neocate, Danone) com boa aceitação e desaparecimento dos sintomas.
Aos 7 meses encontrava-se assintomática, Hemoglobina= 9,5g% e pesquisa de
sangue oculto nas fezes negativa. Aos 12 meses foi introduzida dieta sólida
isenta de leite de vaca e derivados e soja com boa aceitação. Aos 18 meses foi
realizado teste de provocação com fórmula láctea com boa aceitação.
SVBP- sexo feminino, 3,5 meses de idade, com
história de sangramento retal há 20 dias, na vigência de aleitamento natural
exclusivo. Ao exame físico apresentava-se em bom estado geral, Peso= 5365g,
Comprimento= 59 cm ,
palidez cutânea ++, Hemoglobina= 10g%. A colonoscopia revelou friabilidade da
mucosa e microulcerações colônicas. A microscopia evidenciou a existência de
colite eosinofílica (+20 eosinófilos por campo de grande aumento). A mãe foi
orientada a fazer dieta de exclusão de leite de vaca e derivados, soja, ovos,
frutos do mar, frutos oleaginosos, amendoim, tendo havido regressão do
sangramento retal. Porém, após a ingestão repetida de coco (doce de coco) ocorreu
recidiva do sangramento retal. Nesta ocasião devido à extrema restrição
alimentar que a mãe estava se submetendo e também por insegurança quanto à
possibilidade de ingerir outros potenciais alergenos não reconhecidos, a mãe
decidiu suspender o aleitamento natural e introduzir fórmula à base de mistura
de aminoácidos (Neocate, Danone), dexametasona durante 10 dias e ferroterapia 5mg/kg/dia.
A evolução mostrou-se favorável até os 6 meses quando foi introduzido
complemento com dieta sólida à base de mistura de aminoácidos (Neocate
semi-solid food, Danone). Entretanto, esta dieta continha óleo de coco e após 8
dias de sua introdução surgiu uma reação eczematosa nos membros superiores e
inferiores (Figura 6).
Figura 6- Lesões eczematosas no membro inferior após a introdução de
Neocate semi-solid food que contém óleo de coco.
Verificou-se que a composição deste alimento
continha óleo de coco não hidrogenado à concentração de 6%, e, possivelmente,
alguma fração peptídica presente nesta dieta, causou a manifestação alérgica. Diante
disto, a dieta sólida foi suspensa e as lesões cutâneas desapareceram dentro de
uma semana.
Em razão dessa intercorrência a paciente foi
mantida exclusivamente com fórmula à base de mistura de aminoácidos até
completar 12 meses de idade. Nesta ocasião foi introduzida dieta sólida isenta
de leite de vaca e derivados, soja e coco, com boa aceitação. Aos 18 meses foi
realizado teste de provocação com fórmula láctea com boa aceitação.
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