Prof. Ulysses Fagundes Neto
Introdução
Tendo
em vista a presente pandemia do Sars-cov-2 que nos assola há 9 meses, e que se
mostra resistente com altos números de morbidade e letalidade, nas mais
distintas regiões do Brasil, e, considerando-se o papel primordial do nosso
sistema imunológico no seu combate, vale a pena revisarmos a interação do
agente agressor com nosso sistema de defesa. Tem sido amplamente divulgado que
a resposta do nosso organismo ao Sars-cov-2 tem profundas implicações no
sistema imunológico, e, portanto, uma atualização básica do sistema imunológico
humano, torna-se essencial, ainda que fugindo ao escopo primordial deste meio
de comunicação, isto é, a Gastroenterologia e a Nutrição.
O
sistema imunológico trata-se de uma complexa rede de diferentes elementos que
interagem entre si. Quando um agente patogênico invade nosso organismo,
imediatamente é desencadeada uma resposta imunológica inata. Enquanto muitas
infecções podem ser devidamente resolvidas por meio do sistema imunológico
inato, os seres humanos também possuem um sistema adicional de defesa, a
imunidade adaptativa, a qual se adapta para nos proteger contra invasores
específicos. A seguir, passaremos a abordar ambos os componentes do nosso
sistema imunológico.
Imunidade
Inata
A
primeira linha do mecanismo de defesa, contra microrganismos estranhos aos
seres humanos, é mediada pelo sistema imunológico inato. As células chave
envolvidas no processo inflamatório incluem neutrófilos, macrófagos, células
dendríticas e células natural killers (NK). Estas células utilizam
mecanismos similares de reconhecimento de proteínas celulares para identificar
células estranhas e removê-las do nosso organismo (Figura 1).
Proteínas de reconhecimento padrão (PRP) representam os componentes essenciais da imunidade inata. Neutrófilos e macrófagos possuem receptores proteicos nas suas membranas celulares que reconhecem determinados padrões de células estranhas, e não somente as reconhecem como estranhas, como também as diferenciam das células hospedeiras durante a sua eliminação. Como exemplos de padrões moleculares associados aos patógenos estão as endotoxinas bacterianas das bactérias Gram negativas, peptídeoglicans, ácido lipoteicoico e a dupla banda de RNA viral (Figura 2).
Um dos exemplos mais importantes e bem estudados dos PRPs é o sistema complemento, que se constitui em uma série de peptídeos circulantes que desempenham um papel crucial na imunidade inata do hospedeiro. Um componente fundamental desse sistema, a proteína C1, reconhece anticorpos ligados às proteínas microbianas e inicia um evento em cadeia, conhecido como a cascata do complemento. O resultado desta atividade é a produção do C3B, que provoca a quimiotaxia e a fagocitose da bactéria que culmina na formação de um complexo de ataque à membrana.
Os
principais componentes do sistema imunológico inato são: neutrófilos,
macrófagos e células NK. Os neutrófilos
são direcionados para os locais da inflamação ou infecção, pelas citocinas,
tais como as proteínas IL-8 e C3B. Os macrófagos também apresentam uma função
similar, porém, eles respondem de uma forma um pouco mais lenta do que os
neutrófilos. As células NK contém receptores proteicos similares, os quais são
utilizados para diferenciar as células dos hospedeiros e das infectantes. Uma
vez feito o reconhecimento, as células NK induzem a apoptose. As células NK são
especialmente importantes na proteção contra células virais e tumorais. Outros
componentes importantes do sistema imunológico inato são os eosinófilos,
basófilos e mastócitos.
Uma
característica importante do sistema imunológico inato é que ele não dispõe de
células de memória ou respostas aprendidas contra antígenos específicos. O sistema
imunológico inato apresenta uma característica genérica e inespecífica à
inflamação. Diferentemente do sistema imunológico adaptativo que possui uma sintonia
fina e se auto modifica para combater uma infecção específica, durante um longo
período, o sistema imunológico inato é desenhado para apresentar respostas
imediatas. É importante ressaltar que o sistema imunológico inato representa o
processo preliminar necessário para gerar o sistema imunológico adaptativo.
Imunidade
Adaptativa
O sistema
imunológico adaptativo, diferentemente do inato, trata-se de um mecanismo mais
refinado e programado da defesa do hospedeiro. A resposta elaborada da
imunidade adaptativa ocorre a longo prazo em comparação com a resposta
instantânea e generalizada do sistema imunológico inato. Existem dois tipos de
respostas imunológicas adaptativas, a saber: imunidade humoral e imunidade
mediada por células, que a seguir serão descritas.
Imunidade
Humoral
A
imunidade humoral (IH) é organizada pelas células B que secretam anticorpos
para a proteção do organismo contra microrganismos estranhos de forma imediata,
e, também de longo prazo. O evento crucial envolve receptores nas células B que
se ligam a um antígeno. Esta ligação provoca a ativação e a diferenciação em
células mais especializadas. As células B consistem em um receptor que é
constituído por cadeias de imunoglobulinas leves e pesadas, e um correceptor de
células B, o qual é necessário para uma ligação eficaz ao antígeno. A ligação
de antígenos a múltiplos receptores das células B, provoca uma serie de
fosforilações intracelulares via a rota IP3 e diacil glicerol, sinalização
intracelular, a qual resulta na translocação de fatores de transcrição para o
núcleo e ativação das células B.
Desta
forma as células B podem se ligar a antígenos timo-dependentes e
timo-independentes. Os clássicos exemplos de antígenos timo-independentes são
os polissacarídeos nos organismos capsulares, tais como, H influenza e
S pneumonia, que acarreta a organização da nossa resposta sorológica
de anticorpos. Este mecanismo é também a base para as vacinações dos
polissacarídeos não conjugados. Essas cápsulas contêm açúcar e não são
apropriados para uma resposta mais robusta às vacinas mediadas por células T.
Entretanto, as células B são as candidatas ideais para responder a estes
patógenos estranhos.
O
antígeno timo-dependente provoca uma especialização das células B que as fazem
assumir papéis mais específicos. A ligação destes antígenos ativa as células T-helper.
Estas células T em sequência ativam as células B para secretarem tipos
específicos de anticorpos. Por exemplo, nos centros germinais do tecido
linfoide secundário, a ligação de células B carreiam antígeno para a célula Th2
e seu respectivo correceptor, provoca a liberação de IL-4 e IL-5, as quais sinalizam
para as células B para secretarem IgE. Anticorpos IgE tem o poder de proteger
contra infestações helmínticas e enfermidades atópicas.
No
interior dos centros germinativos do tecido linfoide, cada célula B é desafiada
para a realização de tarefas essenciais para sobreviver e proliferar. Estas
tarefas incluem competir com outras células B pela ligação com antígenos, o
processamento de antígenos, e a apresentação deles para as células T-helper,
recebendo sinalizações estimulantes de correceptores, e, então finalmente, se
especializando. Células B altamente especializadas e diferenciadas podem também
circular no plasma como célula B de memória, onde elas têm a lembrança dos
antígenos com os quais interagiram no passado e, desta forma, passar à produção
de anticorpos.
As
células B também desempenham um papel crucial na imunidade inata, e, como anteriormente
abordado, o sistema complemento é um componente chave da imunidade inata. O
antígeno ligado a regiões Fab dos anticorpos IgG apresentam uma ligação cruzada
com as regiões Fc dos anticorpos. Essencialmente o anticorpo funciona como uma
ponte para o complemento e o antígeno. Uma vez que a ponte é construída, o
complemento pode solicitar o recrutamento de neutrófilos e posteriormente
ocorre a fagocitose do microrganismo.
Imunidade
Celular
A
imunidade celular é um vigoroso sistema de mecanismos de defesa do hospedeiro,
e que foi desenhada para combater microrganismos intracelulares, tais como
vírus e micobactérias, bem como células tumorais. Este mesmo sistema também é
“o culpado” por estar envolvido em muitas condições autoimunes. As células T
são os condutores primários da imunidade mediada por células. Embora existam diversos
tipos de células T, as células CD4 e CD8 expressas pelos linfócitos T
citotóxicos são importantes na avaliação da imunidade dos pacientes (Figura 3).
As células CD8+ são células citotóxicas que possuem mecanismos citotóxicos contra células infectadas, com as quais após ocorrer a ligação, causam uma fusão e liberação de grânulos que acarretam dano celular. As células CD8+ também expressam ligações Fas que se ligam a receptores CD-95 das células infectadas. Estas ligações acarretam a apoptose. As células CD8+ têm capacidade própria de eliminar células infectadas por vírus e células tumorais por meio de apoptose ou do envolvimento de células NK. As células CD8+ necessitam ser ativadas pela via de apresentação de antígeno através das células MHC-1. Considerando-se que todas as células nucleadas expressam células MHC-1, CD8+ são ideais para a eliminação de células que podem ser infectadas por vírus, posto que quaisquer células podem apresentar antígenos para as células CD8+. Entretanto, antes que as células CD8+ possam adquirir essa capacidade, elas necessitam ser ativadas no tecido linfoide com o auxílio das células CD4+ e das células T apresentadoras de antígenos.
As
células CD4+ são as células T-helper e são ativadas nos linfonódios
quando as células dendríticas capturam antígenos estranhos e os apresentam às
células T. A ligação das células T receptoras com essas células apresentadoras
de antígenos devem ser acompanhadas com um sinal de ligação com as células
CD-40L sobre as células CD+4 para que o efeito esperado venha a ocorrer.
A
interação das células CD4+ com o antígeno determina o destino destas células T.
Citocinas e mensageiros celulares conduzem essa diferenciação. Por meio de
eventos na imunidade inata, IL-12 e interferon Gama são produzidos, os quais
induzem a conversão das células CD+4 em células Th1. Estas células, por sua vez,
secretam uma maior quantidade de IL-12 e interferon gama, as quais promovem um intercâmbio
de classe das células B que passam a secretar IgG e, também, ativam os
macrófagos. Os macrófagos são ativados pela liberação de IL-12 e interferon
gama desde as células Th-1. Em outras palavras, estes mecanismos tornam-se um
ciclo auto regulado. Células CD+4 virgens se convertem em células Th-1 pela
ação de determinadas citocinas. Células Th-1 passam a secretar citocinas de
forma autônoma, as quais se preparam para uma resposta imunológica robusta, que
resultam em uma condição pró-inflamatória que desempenha um papel essencial na
erradicação do vírus.
A
imunidade mediada por células também demonstra possuir o fenômeno de células de
memória. Interações com antígenos induzem alterações nas superfícies
moleculares e intracelulares que permitem às células T adquirir uma resposta
mais rápida e especializada quando exposta ao mesmo antígeno. Em outras
palavras, as células T têm lembrança dos antígenos que elas combateram e sabem
exatamente como derrotá-los caso se apresentem novamente. Este mecanismo forma
a base da imunidade perene, e, é o racional que está por trás de como as
vacinas funcionam.
Conclusões
Como
se pode depreender da leitura deste artigo, possuímos um robusto e
diversificado sistema imunológico de defesa para garantir a proteção do nosso
organismo. Apesar desta imensa rede de defesa o Covid-19 tem conseguido vencer
esta fantástica barreira e causar um enorme desastre sanitário com vários
milhões de mortes em todo o globo terrestre, até o presente momento. Enquanto
uma vacinação segura e disponível em larga escala não se apresenta, resta-nos
prevenir a infecção por meios físicos, ou seja, distanciamento social, uso de
máscaras e álcool nas mãos, até que o imunizante possa mitigar esta pandemia,
que tanto mal tem causado à população mundial.