quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Sistema Imunológico Humano: uma revisão atualizada

Prof. Ulysses Fagundes Neto

Introdução

Tendo em vista a presente pandemia do Sars-cov-2 que nos assola há 9 meses, e que se mostra resistente com altos números de morbidade e letalidade, nas mais distintas regiões do Brasil, e, considerando-se o papel primordial do nosso sistema imunológico no seu combate, vale a pena revisarmos a interação do agente agressor com nosso sistema de defesa. Tem sido amplamente divulgado que a resposta do nosso organismo ao Sars-cov-2 tem profundas implicações no sistema imunológico, e, portanto, uma atualização básica do sistema imunológico humano, torna-se essencial, ainda que fugindo ao escopo primordial deste meio de comunicação, isto é, a Gastroenterologia e a Nutrição.

O sistema imunológico trata-se de uma complexa rede de diferentes elementos que interagem entre si. Quando um agente patogênico invade nosso organismo, imediatamente é desencadeada uma resposta imunológica inata. Enquanto muitas infecções podem ser devidamente resolvidas por meio do sistema imunológico inato, os seres humanos também possuem um sistema adicional de defesa, a imunidade adaptativa, a qual se adapta para nos proteger contra invasores específicos. A seguir, passaremos a abordar ambos os componentes do nosso sistema imunológico.

Imunidade Inata

A primeira linha do mecanismo de defesa, contra microrganismos estranhos aos seres humanos, é mediada pelo sistema imunológico inato. As células chave envolvidas no processo inflamatório incluem neutrófilos, macrófagos, células dendríticas e células natural killers (NK). Estas células utilizam mecanismos similares de reconhecimento de proteínas celulares para identificar células estranhas e removê-las do nosso organismo (Figura 1).


Proteínas de reconhecimento padrão (PRP) representam os componentes essenciais da imunidade inata. Neutrófilos e macrófagos possuem receptores proteicos nas suas membranas celulares que reconhecem determinados padrões de células estranhas, e não somente as reconhecem como estranhas, como também as diferenciam das células hospedeiras durante a sua eliminação. Como exemplos de padrões moleculares associados aos patógenos estão as endotoxinas bacterianas das bactérias Gram negativas, peptídeoglicans, ácido lipoteicoico e a dupla banda de RNA viral (Figura 2).

Um dos exemplos mais importantes e bem estudados dos PRPs é o sistema complemento, que se constitui em uma série de peptídeos circulantes que desempenham um papel crucial na imunidade inata do hospedeiro. Um componente fundamental desse sistema, a proteína C1, reconhece anticorpos ligados às proteínas microbianas e inicia um evento em cadeia, conhecido como a cascata do complemento. O resultado desta atividade é a produção do C3B, que provoca a quimiotaxia e a fagocitose da bactéria que culmina na formação de um complexo de ataque à membrana.  

Os principais componentes do sistema imunológico inato são: neutrófilos, macrófagos e células NK.  Os neutrófilos são direcionados para os locais da inflamação ou infecção, pelas citocinas, tais como as proteínas IL-8 e C3B. Os macrófagos também apresentam uma função similar, porém, eles respondem de uma forma um pouco mais lenta do que os neutrófilos. As células NK contém receptores proteicos similares, os quais são utilizados para diferenciar as células dos hospedeiros e das infectantes. Uma vez feito o reconhecimento, as células NK induzem a apoptose. As células NK são especialmente importantes na proteção contra células virais e tumorais. Outros componentes importantes do sistema imunológico inato são os eosinófilos, basófilos e mastócitos. 

Uma característica importante do sistema imunológico inato é que ele não dispõe de células de memória ou respostas aprendidas contra antígenos específicos. O sistema imunológico inato apresenta uma característica genérica e inespecífica à inflamação. Diferentemente do sistema imunológico adaptativo que possui uma sintonia fina e se auto modifica para combater uma infecção específica, durante um longo período, o sistema imunológico inato é desenhado para apresentar respostas imediatas. É importante ressaltar que o sistema imunológico inato representa o processo preliminar necessário para gerar o sistema imunológico adaptativo.

Imunidade Adaptativa

O sistema imunológico adaptativo, diferentemente do inato, trata-se de um mecanismo mais refinado e programado da defesa do hospedeiro. A resposta elaborada da imunidade adaptativa ocorre a longo prazo em comparação com a resposta instantânea e generalizada do sistema imunológico inato. Existem dois tipos de respostas imunológicas adaptativas, a saber: imunidade humoral e imunidade mediada por células, que a seguir serão descritas.

Imunidade Humoral

A imunidade humoral (IH) é organizada pelas células B que secretam anticorpos para a proteção do organismo contra microrganismos estranhos de forma imediata, e, também de longo prazo. O evento crucial envolve receptores nas células B que se ligam a um antígeno. Esta ligação provoca a ativação e a diferenciação em células mais especializadas. As células B consistem em um receptor que é constituído por cadeias de imunoglobulinas leves e pesadas, e um correceptor de células B, o qual é necessário para uma ligação eficaz ao antígeno. A ligação de antígenos a múltiplos receptores das células B, provoca uma serie de fosforilações intracelulares via a rota IP3 e diacil glicerol, sinalização intracelular, a qual resulta na translocação de fatores de transcrição para o núcleo e ativação das células B.

Desta forma as células B podem se ligar a antígenos timo-dependentes e timo-independentes. Os clássicos exemplos de antígenos timo-independentes são os polissacarídeos nos organismos capsulares, tais como, H influenza e S pneumonia, que acarreta a organização da nossa resposta sorológica de anticorpos. Este mecanismo é também a base para as vacinações dos polissacarídeos não conjugados. Essas cápsulas contêm açúcar e não são apropriados para uma resposta mais robusta às vacinas mediadas por células T. Entretanto, as células B são as candidatas ideais para responder a estes patógenos estranhos.

O antígeno timo-dependente provoca uma especialização das células B que as fazem assumir papéis mais específicos. A ligação destes antígenos ativa as células T-helper. Estas células T em sequência ativam as células B para secretarem tipos específicos de anticorpos. Por exemplo, nos centros germinais do tecido linfoide secundário, a ligação de células B carreiam antígeno para a célula Th2 e seu respectivo correceptor, provoca a liberação de IL-4 e IL-5, as quais sinalizam para as células B para secretarem IgE. Anticorpos IgE tem o poder de proteger contra infestações helmínticas e enfermidades atópicas.

No interior dos centros germinativos do tecido linfoide, cada célula B é desafiada para a realização de tarefas essenciais para sobreviver e proliferar. Estas tarefas incluem competir com outras células B pela ligação com antígenos, o processamento de antígenos, e a apresentação deles para as células T-helper, recebendo sinalizações estimulantes de correceptores, e, então finalmente, se especializando. Células B altamente especializadas e diferenciadas podem também circular no plasma como célula B de memória, onde elas têm a lembrança dos antígenos com os quais interagiram no passado e, desta forma, passar à produção de anticorpos.

As células B também desempenham um papel crucial na imunidade inata, e, como anteriormente abordado, o sistema complemento é um componente chave da imunidade inata. O antígeno ligado a regiões Fab dos anticorpos IgG apresentam uma ligação cruzada com as regiões Fc dos anticorpos. Essencialmente o anticorpo funciona como uma ponte para o complemento e o antígeno. Uma vez que a ponte é construída, o complemento pode solicitar o recrutamento de neutrófilos e posteriormente ocorre a fagocitose do microrganismo.

Imunidade Celular

A imunidade celular é um vigoroso sistema de mecanismos de defesa do hospedeiro, e que foi desenhada para combater microrganismos intracelulares, tais como vírus e micobactérias, bem como células tumorais. Este mesmo sistema também é “o culpado” por estar envolvido em muitas condições autoimunes. As células T são os condutores primários da imunidade mediada por células. Embora existam diversos tipos de células T, as células CD4 e CD8 expressas pelos linfócitos T citotóxicos são importantes na avaliação da imunidade dos pacientes (Figura 3).

As células CD8+ são células citotóxicas que possuem mecanismos citotóxicos contra células infectadas, com as quais após ocorrer a ligação, causam uma fusão e liberação de grânulos que acarretam dano celular. As células CD8+ também expressam ligações Fas que se ligam a receptores CD-95 das células infectadas. Estas ligações acarretam a apoptose. As células CD8+ têm capacidade própria de eliminar células infectadas por vírus e células tumorais por meio de apoptose ou do envolvimento de células NK. As células CD8+ necessitam ser ativadas pela via de apresentação de antígeno através das células MHC-1. Considerando-se que todas as células nucleadas expressam células MHC-1, CD8+ são ideais para a eliminação de células que podem ser infectadas por vírus, posto que quaisquer células podem apresentar antígenos para as células CD8+. Entretanto, antes que as células CD8+ possam adquirir essa capacidade, elas necessitam ser ativadas no tecido linfoide com o auxílio das células CD4+ e das células T apresentadoras de antígenos.

As células CD4+ são as células T-helper e são ativadas nos linfonódios quando as células dendríticas capturam antígenos estranhos e os apresentam às células T. A ligação das células T receptoras com essas células apresentadoras de antígenos devem ser acompanhadas com um sinal de ligação com as células CD-40L sobre as células CD+4 para que o efeito esperado venha a ocorrer.

A interação das células CD4+ com o antígeno determina o destino destas células T. Citocinas e mensageiros celulares conduzem essa diferenciação. Por meio de eventos na imunidade inata, IL-12 e interferon Gama são produzidos, os quais induzem a conversão das células CD+4 em células Th1. Estas células, por sua vez, secretam uma maior quantidade de IL-12 e interferon gama, as quais promovem um intercâmbio de classe das células B que passam a secretar IgG e, também, ativam os macrófagos. Os macrófagos são ativados pela liberação de IL-12 e interferon gama desde as células Th-1. Em outras palavras, estes mecanismos tornam-se um ciclo auto regulado. Células CD+4 virgens se convertem em células Th-1 pela ação de determinadas citocinas. Células Th-1 passam a secretar citocinas de forma autônoma, as quais se preparam para uma resposta imunológica robusta, que resultam em uma condição pró-inflamatória que desempenha um papel essencial na erradicação do vírus.

A imunidade mediada por células também demonstra possuir o fenômeno de células de memória. Interações com antígenos induzem alterações nas superfícies moleculares e intracelulares que permitem às células T adquirir uma resposta mais rápida e especializada quando exposta ao mesmo antígeno. Em outras palavras, as células T têm lembrança dos antígenos que elas combateram e sabem exatamente como derrotá-los caso se apresentem novamente. Este mecanismo forma a base da imunidade perene, e, é o racional que está por trás de como as vacinas funcionam.     

Conclusões

Como se pode depreender da leitura deste artigo, possuímos um robusto e diversificado sistema imunológico de defesa para garantir a proteção do nosso organismo. Apesar desta imensa rede de defesa o Covid-19 tem conseguido vencer esta fantástica barreira e causar um enorme desastre sanitário com vários milhões de mortes em todo o globo terrestre, até o presente momento. Enquanto uma vacinação segura e disponível em larga escala não se apresenta, resta-nos prevenir a infecção por meios físicos, ou seja, distanciamento social, uso de máscaras e álcool nas mãos, até que o imunizante possa mitigar esta pandemia, que tanto mal tem causado à população mundial.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Avanços na motilidade e na Neurogastroenterologia

                                      Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

 

O número Agosto de 2020, da tradicional revista Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition, traz um artigo intitulado “Proceedings of the 2018 advances in motility and neurogastroenterology: AIMING for the future single topic symposium” de autoria de Ambartsumyan L. e cols., que a seguir passo a resumir.

Introdução

Transtornos funcionais da motilidade gastrointestinais são frequentes na infância, geralmente causam situações debilitantes e permanecem um desafio para um tratamento eficaz. Em outubro de 2018, a NASPGHAN organizou um simpósio cujo objetivo principal foi abordar os avanços mais recentes no campo da Neurogastroenterologia. Os tópicos foram divididos em 3 módulos, que abaixo passo a resumir.

Módulo 1 - O Esôfago: Diagnóstico e manejo da disfagia, dor, tosse e algo mais

Detalhes da fisiologia e função esofágicas para a compreensão da saúde e doença, e como se relacionam com sintomas extra-esofágicos

Transtornos da motilidade esofágica são pouco compreendidos pelos seus sintomas extra-esofágicos incluindo tosse crônica e pneumonia. Os sintomas da dismotilidade esofágica podem ser idênticos ao do refluxo gastroesofágico (RGE), incluindo regurgitação, tosse, incomodo na garganta, dificuldade para comer (incluindo aversão à textura do alimento e sintomas respiratórios ao se alimentar) e voz úmida. Anormalidades motoras desde a orofaringe até o estômago, podem causar sintomas extra-esofágicos. Na faringe, baixas pressões faríngeas, duração prolongada na faringe e relaxamento incompleto e incoordenado do esfíncter esofágico superior, podem resultar em impedimento para a propulsão do bolus e mesmo parada do bolus na orofaringe. Estes pacientes apresentam-se com respiração ruidosa, voz úmida e infecções recorrentes do trato respiratório, e, também, com risco de aspiração. No corpo esofágico, a peristalse débil ou ausente, como ocorre nos pacientes com atresia esofágica, acalasia ou transtornos do tecido conetivo, podem resultar em estase do bolus no esôfago médio, o que aumenta o risco de aspiração. Estes pacientes podem apresentar saciedade precoce, disfagia, tosse noturna, regurgitação, incomodo na garganta e pneumonia, mesmo na ausência da disfagia. Finalmente, obstrução ao nível da junção gastroesofágica devido a fundoplicatura anterior ou acalasia, apresenta-se de forma similar aos transtornos peristálticos, onde a estase esofágica prevalece e os sintomas apresentados são similares. O índice de suspeição da dismotilidade passa a ser alto e a impedanciomanometria de alta resolução é o teste mais confiável na avaliação das crianças com sintomas extra-esofágicos.  

O advento do surgimento da impedanciomanometria de alta resolução transformou a compreensão da fisiologia esofágica devido ao pareamento das medidas de pressão e impedância em múltiplos seguimentos esofágicos, o que tem permitido o estudo do trânsito do bolus e sua relação com a motilidade. 

Além da avaliação dos transtornos da motilidade, a avaliação do refluxo também sofreu modificações. Testes de refluxo focalizando tanto a mensuração quantitativa do refluxo e sua associação com sintomas, permitiram uma nova classificação funcional esofágica ou pela utilização de marcadores que indiretamente sugerem a presença de refluxo subjacente (biópsias, pepsinas). Na Pediatria, o teste da impedanciometria tem se tornado o critério padrão, e deve ser realizado sem o tratamento com supressão de ácido, exceto nos pacientes cuja doença do refluxo já tenha sido comprovada, e na qual o estudo é realizado para avaliar a resposta ao tratamento.

 Ferramentas diagnósticas para uma melhor compreensão da fisiologia esofágica em adultos têm sido recentemente introduzidas no estudo da população pediátrica. A sondagem funcional para a imagem do lúmen pode ser realizada durante a endoscopia e tem surgido como uma importante ferramenta de avaliação dos transtornos esofágicos. A sondagem utiliza a impedancioplanimetria de alta resolução com a finalidade de mensurar a distensibilidade da parede tecidual como uma função da pressão e da área transversal, o que permite avaliar a contratilidade esofágica induzida por distensão.  

 

Transtorno motor esofágico: diagnóstico e manejo da acalasia, atresia esofágica e o esôfago pós fundoplicatura 

Os transtornos da motilidade esofágica que se apresentam com disfagia, podem ser devidos a causas primárias, tais como acalasia ou secundárias, após cirurgia de atresia esofágica ou fundoplicatura. O estudo radiológico contrastado é usualmente o primeiro teste realizado na criança com disfagia para avaliar possível estenose esofágica, acalasia, obstrução da junção gastroesofágica, anéis e fibrose. A impedanciomanometria de alta resolução é fundamental para o diagnóstico dos transtornos de motilidade primários (acalasia) e secundários.

As opções preferenciais de tratamento para acalasia são a dilatação com balão pneumático, miotomia de Heller geralmente associada a fundoplicatura parcial ou miotomia per-oral endoscópica (MPE).

A disfagia na criança com uma história de atresia esofágica/fístula traqueo-esofágica, previamente reparada pode ser devida tanto a estenose anastomótica com dilatação proximal, inflamação esofágica (péptica ou eosinofílica), dismotilidade esofágica ou esvaziamento esofágico prejudicado devido a complicações da fundoplicatura. Estudo radiológico contrastado, endoscopia digestiva alta e impedanciometria de alta resolução, são técnicas úteis para distinguir essas causas e auxiliar na terapêutica de reparação. Idealmente, uma equipe aero digestiva deve estar envolvida para avaliar a possível existência de fístula recorrente associadamente com broncoscopia, laringoscopia e endoscopia, simultaneamente.

A disfagia nos pacientes após a fundoplicatura pode ser causada por um envolvimento (nó) muito apertado, deslizamento do mesmo ou formação de hérnia. O estudo radiológico contrastado é útil para delinear a anatomia da fundoplicatura e contribui diretamente para o tratamento. A impedanciometria de alta resolução é extremamente importante para caracterizar o diagnóstico de elevadas pressões residuais do esfíncter esofágico inferior, altas zonas de pressão na área da fundoplicatura e quando associadas com a impedanciometria caracterizar a estase do bolus.

Vale ressaltar que o aspecto mais desafiador para o diagnóstico nos pacientes com disfagia pós cirúrgica reside no fato de que os métodos diagnósticos, acima citados, são incapazes de relacionar os sintomas funcionais, tais como disfagia, com os transtornos esofágicos motores. Para se poder contornar esta dificuldade, recentemente um método foi incorporado denominado análise do fluxo de pressão. A análise do fluxo de pressão utiliza simultaneamente mensurações adquiridas pela impedanciometria e manometria, e aplica uma análise integrada destes dados para obter uma métrica quantitativa do fluxo de pressão. Estas métricas do fluxo de pressão permitem detectar a interação entre o fluxo do bolus, padrões motores e a sintomatologia por meio de uma combinação de dados entre o trânsito do bolus, e a resistência do fluxo do bolus. Este novo método possui um potencial para guiar decisões terapêuticas para situações pós cirúrgicas de dismotilidade esofágica.

 

Transtornos esofágicos não erosivos: diagnóstico e tratamento.                    

Os transtornos esofágicos não erosivos que se apresentam com queimação retroesternal, disfagia, globus, sensibilidade ao refluxo e dor torácica, são reconhecidos como síndromes específicas que são baseadas nos sintomas relatados pelos pacientes. Esses transtornos permanecem em um espectro complexo como parte de enfermidades “orgânicas”. Considerando que os sintomas podem ser mediados por hipersensibilidade visceral, hipervigilância e estresses psicossociais, uma abordagem terapêutica e integrada é recomendável.

O diagnóstico desses transtornos requer a exclusão do refluxo gastroesofágico, transtornos na motilidade esofágica e anormalidades estruturais ou da mucosa esofágica. Nos pacientes adultos o algoritmo de abordagem para distinguir a causa dos sintomas de refluxo ou disfagia está disponível utilizando-se a endoscopia com biópsia, pHmetria/impedanciometria e manometria esofágica, aos quais podem ser aplicáveis a DRGE em pediatria (Figura 1).

 


O tratamento dos transtornos esofágicos relacionados ao refluxo nos adultos está condicionado baseando-se no fenótipo e na avaliação da anatomia e a existência de lesão, padrão do agravo do refluxo, mecanismo do refluxo, efetores da depuração esofágica, sensibilidade visceral/permeabilidade tecidual, e interações cognitivas (Figura 2). A identificação destes atributos impacta o plano de cuidado incluindo fator educacional, modificação comportamental e farmacoterapia. 



O tratamento envolve a educação a respeito da interação cérebro- trato digestivo e um plano integrado para aliviar os sintomas. Na população pediátrica, até o presente momento, há uma lacuna nos agentes farmacológicos baseados em evidência para serem recomendados para o tratamento dos transtornos esofágicos não erosivos.

 

Módulo 2 – A sensibilidade gástrica e do intestino delgado e a disfunção motora

Motilidade Gástrica: como ela funciona, como nós a sentimos e como a testamos

A função da inervação motora e sensorial do estômago é fundamental para a resposta coordenada na ingestão e sensação.  Os métodos para avaliar a dismotilidade gástrica geralmente variam de instituição para instituição, embora a cintilografia de esvaziamento gástrico permanece sendo o teste mais utilizado. Um estudo da fase sólida de quatro horas é recomendado para crianças maiores, mas não se mostra factível para lactentes e pré-escolares. A manometria antro-duodenal é menos disponível e usualmente é indicada quando se suspeita da síndrome da pseudo-obstrução intestinal. O uso da cápsula de motilidade wireless a qual monitora o pH, a pressão e a temperatura, para avaliar o trânsito gastrointestinal localizado, pode se tornar mais prevalente na avaliação das crianças em breve futuro. O teste respiratório de esvaziamento gástrico utilizando ácido octanóico C13 ainda não está largamente disponível, mas tem a vantagem de não ser invasivo, não ser radioativo e não necessitar equipamento especial.

 

Pseudo-Obstrução: apresentação clínica, etiologia, métodos diagnósticos e intervenção terapêutica.

A síndrome da Pseudo-Obstrução Intestinal (POI) em pediatria, caracteriza-se por sintomas de obstrução intestinal, na ausência de oclusão luminal física. A distensão abdominal é o sintoma mais comum, seguido de vômitos, constipação e failure to thrive. Há dois tipos de POI, a saber, a primária que inclui formas familiares de miopatia, neuropatia e mesenquimopatia, e a secundária que resulta de condições que afetam o músculo liso ou o sistema nervoso entérico.  Aproximadamente 20% dos pacientes apresentam a POI no pré-natal, 67% neonatal e 80% ao redor de 1 ano de vida. As crianças com início neonatal da POI apresentam maior incidência de envolvimento urinário, dependência de nutrição parenteral, colocação de estoma e cirurgias complexas do trato gastrointestinal em comparação com aqueles pacientes que apresentam POI mais tardiamente. A manometria antro-duodenal pode diferenciar os tipos de POI, neuropática ou miopática, e pode identificar quais regiões do trato gastrointestinal estão afetadas.

Experts enfatizam que o diagnóstico precoce da POI e a abordagem multidisciplinar desempenham papel chave nos cuidados dos pacientes. As necessidades nutricionais devem ser fornecidas por via enteral e/ou parenteral e as medicações que tratam do sobrecrescimento bacteriano e aquelas que diminuem a dismotilidade devem ser utilizadas. Vólvulo intestinal e obstrução mecânica não são incomuns e podem ser ameaçadoras da vida. Intervenções cirúrgicas incluindo a colocação de gastrostomia e/ou jejunostomia, ou a criação de uma ileostomia com colectomia associada ou não, podem ser necessárias dependendo da gravidade da enfermidade.  O desfecho das crianças com POI incluem fracasso intestinal irreversível, dependência de nutrição parenteral e hospitalizações prolongadas.     

 

Enxaqueca abdominal, dispepsia funcional, vômitos cíclicos e tudo aquilo que acompanha estes transtornos.

Os transtornos funcionais do trato gastrointestinal superior incluem aqueles que são acompanhados de dor (dispepsia funcional e enxaqueca abdominal) e outros com náusea/vômitos/regurgitação (náusea funcional/vômito funcional/síndrome dos vômitos cíclicos e ruminação).  Fatores fisiopatológicos incluem alteração da motilidade, acomodação diminuída, e sensibilidade aumentada, e infecções tais como H. pylori, regulação alterada do eixo cérebro-trato digestivo, ansiedade e predisposição genética (transportador de serotonina ou receptor transitório do potencial de canal de cation da subfamília V). Embora os grupos das síndromes de estresse pós-prandial e a síndrome da dor epigástrica não diferem em medidas de motilidade, aqueles 50% que se sobrepõem apresentam a mais alta intensidade de sintomas.

A síndrome dos vômitos cíclicos apresenta-se com episódios de vômitos recorrentes, estereotipados, geralmente acompanhados de dor. Recentemente, foram reconhecidos aspectos da síndrome dos vômitos cíclicos que incluem padrão temporal atípico, comorbidades múltiplas (como por exemplo: ansiedade, taquicardia postural ortostática e fadiga crônica). Na opinião dos experts deve ser enfatizada a natureza empírica da terapia para a síndrome dos vômitos cíclicos baseando-se nos mecanismos subjacentes, a saber: enxaqueca (agentes anti-enxaqueca), hiperativação do eixo de estresse (Amitriptilina), autonômica (tratamento da taquicardia postural ortostática) e disfunção mitocondrial (suplementos). A abordagem inclui modificações no estilo de vida e o tratamento da ansiedade (Tabela 1).     

 


 

Manejo das náuseas e vômitos

As náuseas e os vômitos são sintomas complexos que envolvem fatores psicossociais, motilidade alterada e acomodação e esvaziamento gástricos reduzidos, com sensação visceral aumentada. A manometria antro-duodenal permanece o critério padrão para o estudo da disfunção da motilidade gástrica e do intestino delgado. Os sintomas clínicos, entretanto, apresentam uma pobre concordância com os resultados destes testes de motilidade, presumivelmente porque a disfunção sensorial periférica e as alterações dos sinais de processamento do sistema nervoso central (devido a ansiedade e hiper vigilância), são causas importantes dos sintomas que não são avaliados nos testes de motilidade. Tradicionalmente, náusea e vômitos têm sido manejados com drogas pro-cinéticas (por exemplo, eritromicina, donperidona, cisaprida e metoclopramida) para melhorar a motilidade gástrica. A metoclopramida apresenta maiores efeitos adversos do que a eritromicina nas crianças, e o potencial para causar discinesia tardia com seu uso a longo prazo. Neuromoduladores, tais como, a amitriptilina são comumente prescritos a despeito do reduzido número dos ensaios clínicos. Medicamentos antieméticos, tais como, ondansetrona, também tem algum papel no alívio dos sintomas. Abordagens alternativas tais como dietéticas e modificação do comportamento, também tem um papel associado ao manejo dos sintomas refratários, bem como terapias endoscópicas com injeção de toxina botulínica no esfíncter pilórico, dilatação do piloro com balão. Manejo cirúrgico incluindo piloromiotomia e colocação de sondas para alimentação, também podem ter valor em crianças especialmente selecionadas. Finalmente, a estimulação elétrica gástrica alivia sintomas de gastroparesia idiopática e diabética em adultos e tem sido utilizada para os casos de náuseas/vômitos refratários, para aliviar os sintomas nas crianças.

 

Opções de manejo para dor abdominal e síndrome do intestino irritável

A dieta exerce um papel importante nos sintomas nas crianças com síndrome do intestino irritável (SII). Mais de 90% dos indivíduos com SII identificam que pelo menos um alimento provoca exacerbação dos sintomas. Os Fodmaps vêm ganhando um aumento da atenção como os responsáveis da SII. Embora o mecanismo ainda esteja sob investigação, a restrição dos Fodmaps da dieta provoca alívio dos sintomas nos pacientes com SII.   

 

Módulo 3 – Avanços na avaliação e no manejo da disfunção colônica e anorretal   

Avaliação da função anorretal   

Avaliação radiográfica e/ou manométrica fornece o conhecimento da fisiopatologia da função anorretal em crianças que não respondem às terapias convencionais medicamentosas e comportamentais. O defecograma permite a avaliação, em tempo real, do momento da evacuação, do movimento da junção anorretal, a mudança do ângulo anorretal e a atividade do esfíncter anal durante a evacuação.

A manometria anorretal é utilizada para avaliar as propriedades voluntárias e involuntárias anorretais e para identificar possível neuropatia localizada na medula espinhal. Pressões anais de repouso e o reflexo inibidor retoanal permitem uma avaliação detalhada da integridade neuromuscular anorretal, incluindo a triagem da Doença de Hirschsprung, e a avaliação pós operatória dessa patologia. Além disso, a manometria anorretal permite a avaliação do controle sensorial e voluntário do assoalho pélvico por meio de manobras específicas.

 

Avaliação da função colônica

Crianças com constipação refratária e incontinência fecal devem ser submetidas a avaliação diagnóstica radiográfica e manométrica da função colônica. O trânsito colônico pode ser avaliado utilizando-se marcados radiopacos e trânsito cintilográfico colônico. A cintilografia colônica permite estabelecer a diferença entre constipação com trânsito normal, constipação com trânsito retardado e retenção anorretal. A manometria colônica avalia a integridade neuromuscular do colón por meio da mensuração das modificações da pressão intraluminal. A manometria colônica permite diferenciar neuropatia e miopatia da constipação funcional e, pode identificar a dismotilidade colônica total ou segmentar, e a inercia colônica.  A motilidade colônica permite auxiliar no desfecho dos enemas de continência anterógrados e auxiliam na tomada de decisão cirúrgica nos pacientes com constipação refratária. 

 

Manejo clínico da constipação intratável

Estudos recentes indicam que a fisioterapia do assoalho pélvico alivia sintomas da constipação funcional e a incontinência fecal. Terapêuticas tradicionais para constipação crônica nas crianças, incluem agentes que aumentam o bolo fecal, substâncias que tornam as fezes mais pastosas, laxantes osmóticos e estimulantes do peristaltismo. O polietilenoglicol é recomendado prioritariamente como tratamento de manutenção nas crianças com constipação, e tem sido demonstrado ser mais eficaz e mais bem tolerado do que a lactulose, óleo mineral, leite de magnésia e placebo. Medicamentos para as situações de trânsito colônico lento, incluem secretagogos, agentes serotonérgicos e inibidores do transporte de ácido biliar no íleo. Recentemente, estimulação elétrica interferencial transabdominal mostrou-se ser eficaz no aumento da frequência da evacuação, diminuição da dor abdominal e da incontinência fecal, nas crianças com constipação refratária devido a trânsito colônico lento.

 

Manejo cirúrgico da constipação intratável

A intervenção cirúrgica deve ser considerada nas crianças com constipação refratária cujo tratamento clínico fracassou. De acordo com experts na área, a avaliação de um paciente antes do procedimento cirúrgico deve incluir enema colônico contrastado, estudo radiológico do trânsito colônico, manometria anorretal e manometria colônica. Enemas de continência anterógrados permitem a administração de fluxos para proporcionar de forma eficaz evacuações diárias. Estudos recentes estão em evolução para determinar a utilidade e o momento da ressecção colônica quando da aplicação dos enemas anterógrados. A manometria colônica pode ser de auxílio para guiar a decisão da realização cirúrgica e deve ser repetida antes da ressecção ou da retirada da ostomia. Ressecção colônica segmentar deve ser reservada para aqueles pacientes cujo enema anterógrado tenha fracassado e que ainda continuam a apresentar anormalidades segmentares na motilidade colônica. Uma derivação da ileostomia ou da colostomia deve ser considerada naqueles pacientes cujo enema anterógrado tenha fracassado ou naqueles pacientes que apresentam disfunção colônica total ou inércia colônica. Tem sido demonstrado que a derivação colônica pode permitir a recuperação da motilidade colônica.

 

Conclusões

Neurogastroenterologia Pediátrica: onde ela começou e onde ela é liderada

O termo neurogastroenterologia apropriadamente salienta que os transtornos mais frequentes da motilidade e aqueles transtornos que são tradicionalmente rotulados como transtornos funcionais gastrointestinais, são resultados de patologia entérica e/ou interações anormais cérebro-trato digestivo. Tecnologia sofisticada para mensurar as características motora e sensorial do trato gastrointestinal superior e inferior, estão sendo desenvolvidas para promover um melhor conhecimento da fisiopatologia da maioria dos transtornos neurogastroenterológicos na infância. A tendência atual neste campo é tentar desenvolver testes diagnósticos menos invasivos, mas igualmente confiáveis, para substituir os testes mais invasivos de manometria anorretal nas crianças. Uma compreensão mais profunda dos mecanismos de doença, para desenhar terapêuticas baseadas nos seus respectivos mecanismos, faz-se necessária. Nós ainda temos muito que aprender acerca da genética dos transtornos de motilidade intestinal e acerca dos fatores não genéticos que afetam a motilidade nas crianças. Opções terapêuticas para crianças com transtornos neurogastroenterológicos, incluem medicamentos, cujo alvo por um lado, é o trato intestinal e outros que são dirigidos para o cérebro. O tratamento deve ser desenhado no contexto do modelo biopsicossocial. Técnicas que no futuro serão desenvolvidas para auxiliar as crianças com as formas mais graves de transtornos da motilidade intestinal, incluem neuromodulação e manipulação seletiva da microbiota colônica.

 

Meus Comentários

Os transtornos funcionais do trato digestivo têm assumido uma importância cada vez maior no cenário clínico da gastroenterologia devido, em primeiro lugar a seu reconhecimento pelos gastroenterologistas, em segundo lugar por sua crescente prevalência no mundo ocidental e em terceiro lugar por sua característica etiologia multifatorial. Com o avanço das técnicas de investigação dos modelos fisiopatológicos envolvidos nas gêneses dos diversos tipos de manifestações clínicas, que em muitas situações são superponíveis, pode-se cada vez mais individualizar os diagnósticos clínicos e conhecer seus mecanismos fisiopatológicos. A partir desta individualização específica de cada entidade clínica tem sido possível, cada vez mais, a proposição de ações terapêuticas visando atuar no alvo das causas dos processos, ao invés de apenas agir sobre as consequências de forma inespecífica, como até há pouco tempo se fazia. Uma grande conquista obtida mais recentemente foi o reconhecimento da transcendental importância do eixo cérebro-trato digestivo, o que tem permitido a proposição de ações terapêuticas novas que, até então, não faziam parte do arsenal terapêutico disponível. Quanto mais se avança na metodologia investigativa maiores são os novos conhecimentos adquiridos como muito bem está abordado neste artigo. Quanto mais respostas são esclarecidas mais perguntas continuam a ser feitas, e, isto espelha a grandeza e a inquietude do espírito do investigador.     

Referências Bibliográficas       

1-    Ambartsumyan L e cols – JPGN 2020:71;e59-e67

2-   Rosen B e cols – Neurogast Motil 2018: 30

3-   Thapar N e cols – Jpgn 2018:66;991-1019

4-   Diamanti A e cols – JPGN 2019:69;212-7

      

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Relato de Caso: Caterpillar Sign in an Infant with Hypertrophic Pyloric Stenosis


Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

O número Janeiro de 2019, da tradicional revista The Journal of Pediatrics, traz um relato de caso intitulado “Caterpillar Sign in an Infant with Hypertrophic Pyloric Stenosis” de autoria de Kawai R. e cols., que a seguir passo a resumir.

Lactente do sexo masculino, 7 semanas de vida, foi atendido no departamento de emergência com história de vômitos persistentes durante 2 semanas. Paciente nasceu com 39 semanas de gestação, parto normal, peso: 3495g. Paciente negava uso de antibióticos macrolídeos. Paciente apresentava história de vômitos em jato, pós prandiais não biliosos, após receber aleitamento natural ou fórmula láctea. O lactente havia perdido 220g do seu peso anterior sugerindo uma perda de mais de 5% durante as 2 semanas prévias. Ao exame físico o lactente apresentava-se moderadamente desidratado, com as membranas mucosas secas, abdômen distendido, sem massa palpável e discreta diminuição dos ruídos hidroaéreos. A investigação laboratorial revelou alcalose metabólica com pH: 7.56; HCO3 28,8 mEq/L; Cloro 97 mEq/L; Potássio 4,9 mEq/L. A radiografia simples do abdômen revelou uma grande bolsa de ar no estômago, com a formação de um contorno ondulado devido às contrações peristálticas (Figuras 1 e 2), também conhecida pela designação de sinal de Caterpillar.


Figura 2- Radiologia contrastada do estômago evidenciando distensão gástrica e dificuldade de esvaziamento caracterizando o sinal do “rabo do rato”.

A ultrassonografia revelou músculo pilórico hipoecóico com 5 mm de espessura. Com base nesses achados foi estabelecido o diagnóstico de Estenose Hipertrófica de Piloro (EHP) e foi realizada a piloromiotomia (Figura 3).

Figura 3- Representação esquemática da EHP.

A EHP é uma causa comum de vômitos nos lactentes. O sinal de Caterpillar é um achado característico na radiografia simples de abdômen em posição supina e aparece como uma bolsa isolada de ar com contrações peristálticas, o que sugere uma obstrução da passagem do conteúdo gástrico para o duodeno. Embora o diagnóstico de EHP baseia-se no exame ultrassonográfico na maioria dos casos, o sinal de Caterpillar é útil como provável suspeita de EHP.

Referências Bibliográficas

1-   J Pediatr 2019;208:292.

Relato de Caso: Obscure Gastrointestinal Bleeding Secondary of Diffuse Gastric Heterotopia in the Proximal Jejunum

 

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

O número Setembro de 2019, da tradicional revista Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition, traz um relato de caso intitulado “Obscure Gastrointestinal Bleeding Secondary o Diffuse Gastric Heterotopia in the Proximal Jejunum de autoria de Shab A. A. e cols., que a seguir passo a resumir.

Paciente do sexo feminino, 7 anos de idade, apresentava história prévia de uma prega jejunal que havia sido ressecada no período neonatal, no presente momento apresentava queixa de dispneia e letargia. Hemoglobina: 2,3g/dl; volume corpuscular médio: 59 fL e ferro sérico: 11ug/dl. A anemia persistiu a despeito de suplementação com ferro.

Estudo radiológico contrastado do intestino delgado, endoscopia digestiva alta e colonoscopia revelaram-se normais. Enterografia com ressonância magnética mostrou espessamento jejunal proximal. Exames com cápsula endoscópica e enteroscopia, exibiram edema e ulceração jejunais; biópsias jejunais evidenciaram mucosa normal entremeada com epitélio gástrico (Figura 1).



Investigação para divertículo Meckel revelou mucosa gástrica ectópica ao longo de todo abdômen médio (Figura 2).


A laparotomia associada a enteroscopia intraoperatória, resultou em ressecção jejunal de 25cm, distando 20cm do ligamento Treitz (Figura 3).



Estudo anatomopatológico evidenciou heterotopia gástrica polipoide multifocal com gastroplastia reacional e hemorragia focal.

Etiologias de sangramentos gastrointestinais obscuros, incluem mucosa gástrica ectópica como a observado no divertículo de Meckel ou cistos duplicados. O típico divertículo de Meckel é geralmente assintomático ou se apresenta como sangramento retal indolor antes dos 2 anos de vida. A presente paciente desenvolveu uma grave anemia ferropriva refratária ao tratamento com ferro, devido a uma heterotopia gástrica difusa no jejuno proximal. Após a intervenção cirúrgica a paciente tornou-se assintomática com níveis estáveis de hemoglobulina pelos próximos dois anos.

Referência Bibliográfica          

1-   JPGN 2019;69:3.

Relato de Caso: Pyoderma Gangrenosum of the Finger Associated with Pediatric Ulcerative Colitis

 Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

O número Setembro de 2019, da tradicional revista Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition, traz um relato de caso intitulado “Pyoderma Gangrenosum of the Finger Associated with Pediatric Ulcerative Colitis de autoria de Shinagawa M. e cols., que a seguir passo a resumir.

Paciente do sexo masculino, 18 anos de idade, portador de Colite Ulcerativa (CU) em remissão, em tratamento com mezalamina e azatioprina, desenvolveu eritema e edema no seu dedo anular durante atividade de capinação. Ele foi atendido no serviço 7 dias após o acidente apresentando abscesso, ulceração e febre alta. Foi instituído tratamento com cefazidini IV, durante 3 dias sem sucesso. A cultura do material purulento foi positiva para Estafilococus áureos sensível a cefazidini. O edema agravou-se a despeito de uma drenagem incisional com debridamento e introdução de vancomicina IV (Figura 1).



Foi realizada a colonoscopia em virtude do agravamento da diarreia, a qual confirmou a recidiva da CU (Figura 2).



Levantou-se a suspeita de pioderma gangrenoso (PG) e introduziu-se tratamento com Tacrolimus por via oral. A biópsia do dedo revelou alterações inflamatórias exibindo infiltrado composto por neutrófilos e linfócitos, compatível com PG. O tratamento com Tacrolimus resultou em remissão clínica, tanto da CU quanto da PG após 2 semanas. PG é incomum na infância e afeta principalmente os membros inferiores (Figura 3).

Figura 3- Lesão ulcerosa típica de PG na perna.

Casos envolvendo a mão, são extremamente raros. A dificuldade do diagnóstico de PG na mão causou retardo no tratamento. Amputação faz-se necessária em cerca de metade dos casos relatados. No presente caso, o tratamento da CU regrediu a PG. Consequentemente, a PG deve ser considerada quando se desenvolve um abcesso na pele em pacientes com CU, a despeito da natureza da lesão.           

Referência Bibliográfica         

1-      JPGN 2019;69:3.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Prolapso Retal na Infância: principais causas, apresentação e manejo clínico

 Prof Dr Ulysses Fagundes Neto

O número de fevereiro de 2020, da tradicional revista Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition, traz um artigo intitulado “Rectal Prolapse in Children: An Update to Causes, Clinical Presentation, and Management” de autoria de Cares K. e cols., que a seguir passo a resumir.

Introdução

O prolapso retal (PR) é uma protrusão da mucosa retal através do esfíncter anal (Figura 1).


Figura 1- Desenho esquemático de PR obtido do livro Digestive System de Frank Netter (The Ciba Collection).

 Método

O objetivo deste estudo foi realizar uma análise descritiva retrospectivamente de crianças diagnosticadas com PR. Foi realizada uma revisão dos prontuários das crianças menores de 18 anos de idade com o diagnóstico de PR, atendidas no Chidren’s Hospital of Michigan.

Resultados

Foram identificados 158 pacientes com diagnóstico de PR. A idade média no momento do diagnóstico foi 3 anos e 11 meses, com variação de 2,5 semanas a 17 anos, 93 (59%) eram meninos. Failure to thrive foi diagnosticado em 8% dos casos. Constipação foi o principal diagnóstico associado a PR em 87 (55%) pacientes.  A segunda causa mais comum foi a idiopática em 27 (17%) pacientes, posto que nenhuma causa subjacente foi confirmada. Somente 4 (3%) pacientes, tiveram o diagnóstico de fibrose cística estabelecido (Tabela 1).


O tempo médio de duração do PR foi de um ano. A duração foi levemente mais prolongada nos pacientes acima dos 4 anos de idade, em média 1 ano e 2 meses. Os pacientes com diagnóstico de PR idiopático e com idade superior a 4 anos, apresentaram a mais extensa duração dos sintomas, durante 2 anos e 7 meses. Dentre esses pacientes, 5 de 9 deles, apresentavam algum transtorno comportamental associado.

Nos pacientes com diagnóstico de constipação, 52% (17 entre 33) pacientes apresentavam fezes consistentemente endurecidas, enquanto o restante descreveu a consistência das fezes como pastosa ou mista. A queixa mais comum no grupo com constipação foi o esforço para evacuar (63%). A investigação laboratorial neste grupo de pacientes, incluiu teste do suor (40%), enema de bário (18%), triagem para Doença Celíaca (DC) (22%), hormônios tireoidianos (11%) e colonoscopia (9%). Transtorno comportamental idiopático foi caracterizado em 7 (28%) pacientes, sendo que desses, 1 foi confirmado ter sido sexualmente abusado e em 3 outros pacientes havia suspeita de abuso sexual. Síndrome da úlcera retal solitária foi encontrada em 2 pacientes, quando da realização da colonoscopia.

A Figura 2 apresenta os detalhes da realização da redução manual dos 59 pacientes. Indicação cirúrgica foi solicitada para atender na redução do PR de 14 pacientes, os quais requereram sedação e redução manual, enquanto 2 pacientes requereram redução com aplicação de açúcar.


A resolução do PR ocorreu em 33 pacientes que foram submetidos a intervenção médica isolada, cuja idade média foi de 3 anos. Oito pacientes necessitaram tratamento de sua enfermidade de base, tais como dieta isenta de glúten para a DC; os demais pacientes foram submetidos ao tratamento com laxante ou suplemento com fibras, sendo que o polietilenoglicol 3350 foi o agente laxante mais comumente prescrito, em 88% dos pacientes. A duração média do prolapso foi 2 de meses. A maioria dos pacientes foi referida para cirurgia no caso de persistência ou recorrência do PR, a despeito da conduta clínica estabelecida, com duração média de 5 meses de recorrência do PR. Onze pacientes foram agendados para cirurgia em seguida da primeira consulta, devido tanto a duração do prolapso ou a idade de instalação. A duração mais curta documentada foi 7 meses e a idade mais precoce 6 anos.

Trinta e quatro (22%) pacientes necessitaram intervenção cirúrgica. O procedimento mais comum foi a cauterização linear com uma sutura de retenção circunferencial da submucosa (cerclagem), com idade média de 6 anos. O segundo procedimento mais comum incluiu a cauterização linear isolada, com idade média de 8 anos.  

Um paciente necessitou realização de retopexia laparoscópica após o fracasso da cauterização tanto linear quanto a cerclagem. O início do PR ocorreu aos 7 anos de idade, que requereu intervenção aos 8 anos e necessitando da retopexia aos 10 anos de idade. 

Discussão   

No passado, a fibrose cística (FC) foi descrita como o principal diagnóstico do PR. Segundos alguns estudos a FC foi relatada como causa de PR entre 11 e 18,5% dos pacientes, e, por isto, havia recomendação da realização do teste do suor nos casos com diagnóstico de PR. No presente estudo, apenas 3% dos pacientes com PR tiveram diagnóstico de FC.

No nosso grupo de pacientes foram encontrados dois casos de PR cujo diagnóstico final foi DC, e ambos apresentaram completa resolução da PR após o início de uma dieta isenta de glúten.

No nosso estudo, uma grande porcentagem de pacientes teve diagnóstico de transtorno neuropático ou anormalidades anatômicas com histórias prévias de correções cirúrgicas. Vale ressaltar, que estes pacientes apresentam alto risco para PR, posto que, eles tendem a apresentar uma fraqueza do soalho pélvico, devido a inervação ineficiente, ausência da musculatura de suporte ou variantes anatômicas.   ´

No nosso estudo, a idade média dos pacientes que apresentaram PR foi 3 anos e 11 meses. Está bem estabelecido que pacientes menores de 4 anos de idade apresentam um risco maior para PR, principalmente em virtude das diferenças da anatomia. Posição mais baixa e vertical do reto, mobilidade do sigmoide e imaturidade do desenvolvimento do músculo elevador do ânus. Após os 4 anos de idade, o sigmoide e o reto assumem a forma dos adultos e apresentam um desvio posterior, o que diminui a intensidade da pressão aplicada diretamente sobre o reto. Por esta razão, pode ocorrer resolução espontânea em muitos casos, embora os bons resultados podem ser atribuídos ao tratamento da constipação com laxantes.            

Cerca de metade dos pacientes com PR apresentaram queixa de constipação com fezes de consistência endurecida. A queixa mais comum é o esforço para evacuar, e isto acarreta um aumento da pressão intra abdominal sobre o reto, aumentando as probabilidades do PR. Uma posição inadequada ao se sentar no vaso sanitário impede a orientação normal da evacuação e dificulta a eliminação das fezes. Admite-se que a correta posição de se sentar no vaso sanitário, representa uma das mais eficazes atitudes no manejo da constipação, em comparação com o uso de laxantes.

Catorze pacientes necessitaram sofrer a redução do PR em ambiente hospitalar. A maioria das reduções foi exitosa apenas pela manobra da pressão digital com sedação. Sedação foi necessária em virtude da ansiedade e da dor sofrida pelos pacientes. É do conhecimento geral que quanto mais prolongada a persistência do PR torna-se mais difícil a redução em virtude do edema progressivo da mucosa prolapsada. Por esta razão a redução do PR deve ser tentada o mais rápido possível. Em geral a pressão digital constante e com firmeza sobre a mucosa prolapsada reduzirá o prolapso. Entretanto, alguns casos irão necessitar de tratamento adicional como o que ocorreu com dois dos nossos pacientes que necessitaram de aplicação de açúcar, a qual por efeito osmótico, reduz o edema da mucosa prolapsada.

No nosso estudo, 22% dos pacientes fracassaram no manuseio clínico do PR e necessitaram conduta cirúrgica. O procedimento mais comum foi a cauterização linear com cerclagem. Cauterização linear isolada foi o segundo procedimento mais comum.

Um achado interessante nesse grupo de pacientes revelou-se ser o transtorno comportamental ou estresse social que ao que tudo indica foram responsáveis pela alta taxa de recorrência do prolapso. Vale ressaltar, que este tipo de problema também tem sido relatado por outros autores, que chegaram a relatar que em até 50% dos seus pacientes com PR, este procedimento foi necessário.

Em conclusão, este estudo retrospectivo demostrou que o PR e suas características se modificaram, posto que FC deixou de ser um diagnóstico frequente, já que a implementação do rastreamento neonatal tem tido uma eficaz contribuição. Diferentes enfermidades têm sido recentemente descritas como causa de PR, e que eram desconhecidas previamente, tais como DC. Esforço para evacuar é a queixa mais frequente, o que sugere que técnicas apropriadas para se sentar no vaso sanitário são essenciais no manejo profilático do PR.

Referências Bibliográficas

1 - Cares K e cols. JPGN 2020, 70:243-46. 

2 - Hill SR e cols. Pediatr Surg Int 2015, 31:219-21.  

3 - Cares K e cols. JPGN 2016, 62:26-8.

4- El-Chammas KL e cols. JPGN 2015, 62:110-2.