quarta-feira, 27 de março de 2019

Doença do Refluxo Gastroesofágico: uma atualização da apresentação, prevalência, fisiopatologia, diagnóstico e tratamento (Parte 2)

                     Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto


         3)   Gastroparesia

A importância do retardo do esvaziamento gástrico na DRGE é controvertida. Estudos realizados há algum tempo indicavam que até 50% dos pacientes com refluxo apresentavam um retardo do esvaziamento gástrico para sólidos. Entretanto, estudos mais recentes, utilizando o teste padrão de esvaziamento gástrico de 4 horas, encontraram uma sobreposição entre 8% e 20% dos pacientes. Conceitualmente, retardo do esvaziamento gástrico resulta em volume aumentado do material no estômago, o qual poderia estar disponível para sofrer refluxo para o esôfago ou provocar distensão do estômago proximal, desencadeando relaxamentos transitórios do esfíncter esofágico inferior. Estudos recentes utilizando o teste da pH-impedanciometria encontraram que os valores de refluxo ácido não se encontravam aumentados, mas consistiam de refluxo de conteúdo alimentar, sendo que os eventos de refluxo ocorriam no período pós-prandial de substâncias líquidas e consistiam de refluxos não ou fracamente ácidos. Mulheres e diabéticos são mais propensos a apresentar gastroparesia associada a DRGE secundária. Queixas, tais como, distensão abdominal, dor, náusea, vômitos ou constipação podem ser guias auxiliares, e a manometria geralmente demonstra uma pressão normal do esfíncter esofágico inferior. Tratando-se a gastroparesia com dieta apropriada e pró-cinéticos pode-se evitar a necessidade do uso dos inibidores de bomba de próton ou cirurgia anti-refluxo (Figura 5).

Figura 5- Representação esquemática comparativa entre o normal e a gastroparesia.

Prevalência global da DRGE

O conjunto geral de prevalência de sintomas semanais da DRGE, revelado em estudos populacionais em todo o globo terrestre, é aproximadamente de 13%, mas, há uma considerável variação geográfica, a qual pode ser confirmada analisando-se a Figura 6.

Figura 6- Prevalência dos sintomas semanais da DRGE no globo terrestre, baseada nos sintomas com uma frequência de um episódio uma vez por semana ou mais.  

As complicações predominantes da DRGE incluem disfagia, sangramento devido à esofagite erosiva e ao adenocarcinoma esofágico. Estenose esofágica recorrente que requer repetidas dilatações endoscópicas, trata-se de outra complicação importante, entretanto, a complicação mais temível da DRGE trata-se do adenocarcinoma esofágico, e sua lesão precursora o esôfago de Barret.

Genética

Estimativas da proporção da variância fenotípica dos sintomas da DRGE atribuídas aos fatores genéticos tem apresentado uma variação de 0% a 22%. Em um estudo envolvendo gêmeos foi estimada uma variação de 13% nos sintomas da DRGE em virtude dos efeitos genéticos, mas, mesmo esta proporção pareceu ser mediada por ansiedade e depressão. O risco genético para a DRGE é poligênico sem que exista uma significativa mutação individual  para a DRGE. Considerando-se o recente aumento da prevalência do refluxo, tomando-se em conta uma profunda investigação da história evolutiva, a etiologia do refluxo parece estar largamente relacionada a exposições ambientais.

Fatores de riscos ambientais

Os dois maiores fatores que podem explicar as tendências para a DRGE são a epidemia de obesidade e a diminuição da prevalência da gastrite associada ao Helicobacter pylori. A obesidade é o maior fator de risco para os sintomas da DRGE, e também está associada com esofagite erosiva, esôfago de Barret e adenocarcinoma esofágico.  A obesidade esta largamente relacionada ao excesso de ingestão calórica e/ou a falta de atividade física, por este motivo, a associação da obesidade com a DRGE e suas complicações poderiam ser confundidas com a dieta e a atividade física. Algumas substâncias podem induzir sintomas da DRGE, tais como, alimentos gordurosos, chocolate e bebidas gasosas, e, indivíduos obesos podem consumir esses produtos de forma mais frequente do que aqueles não obesos.

Por outro lado, a relação entre atividade física e DRGE é complexa, posto que algumas modalidades de atividades físicas estão associadas com o aumento da DRGE. Por exemplo, posturas inclinadas, andar de bicicleta, levantamento de peso, natação e mesmo surf, têm sido associadas com o aumento do risco para a DRGE, particularmente durante ou após a respectiva atividade. Por outro lado, exercícios aeróbicos moderados e feitos com regularidade têm apresentado uma associação inversa com a DRGE.

A queda da prevalência das gastrites por Helicobacter pylori pode explicar a tendência da DRGE e suas complicações. Uma proporção de pacientes com essa infecção desenvolve atrofia do corpo gástrico e consequente diminuição da secreção ácida gástrica. Portanto, tem sido proposto que a infecção por Helicobacter pylori pode prevenir a DRGE em pacientes que são suscetíveis a ela. Esôfago de Barret e adenocarcinoma esofágico, mostram uma associação inversa com a infecção por Helicobacter pylori. Por outro lado, a gastrite antral devida a infecção por Helicobacter pylori teria uma tendência maior de levar a uma produção excessiva de secreção acida gástrica, do que sua diminuição, devido a uma retroalimentação positiva, a qual estimula a produção da secreção ácida gástrica.

Há exposições ambientais adicionais que são associadas com a DRGE, mas elas não poderiam explicar a tendência do aumento da prevalência da DRGE. Por exemplo, o uso do tabaco é um importante fator de risco para esofagite erosiva e adenocarcinoma esofágico. Tabaco também está associado com estenose esofágica nos pacientes que sofreram ressecção endoscópica ou radioterapia. Pacientes com sintomas da DRGE, geralmente relatam que esses sintomas se tornam mais intensos com a ingestão de álcool, e, estudos randômicos têm demostrado que a ingestão de álcool induz mais a refluxos ácidos do que a ingestão de água. Um estudo bem planejado não encontrou associação positiva do uso constante de álcool com esofagite erosiva, nem tampouco com esôfago de Barret.     
    
Meus comentários

A ocorrência de refluxo gastro-esofágico é um evento muito frequente nos primeiros meses de vida das crianças, que se manifesta sob a forma de episódios recorrentes de regurgitações, os quais costumam causar grandes preocupações aos seus pais, principalmente naqueles que estão vivendo a primeira experiência da paternidade/maternidade. Estas manifestações se devem fundamentalmente a uma imaturidade e consequente incompetência do esfíncter esofágico inferior. Esta incompetência é transitória e à medida que o lactente vai se desenvolvendo os sintomas tendem a diminuir de frequência até finalmente desaparecerem ao redor do primeiro semestre de vida. Este tipo de manifestação clínica é, em princípio, considerado o que se denomina Refluxo Gastro-Esofágico Fisiológico. Caso o lactente, apesar dos episódios recorrentes de regurgitação, apresente desenvolvimento pondero-estatural adequado, e não refira qualquer outro sintoma que possa afetar sua qualidade de vida, a ele é jocosamente atribuído o rótulo de “Regurgitador Feliz”, e, portanto, não está indicado tratamento medicamentoso. Por outro lado, quando além dos episódios de regurgitação surgirem também outros sintomas que afetem a qualidade de vida, tais como, irritabilidade intensa, aspiração pulmonar, sangramento gastrointestinal, ganho pondero-estatural deficiente, entre outros, neste caso estamos frente a um quadro da Doença do Refluxo Gastro-Esofágico. Nestas circunstâncias o paciente deverá ser minuciosamente avaliado do ponto de vista clínico, para se considerar qual ou quais as investigações laboratoriais pertinentes a cada caso devem ser realizadas, para que se possa estabelecer o diagnóstico etiológico de certeza e, assim, se propor o tratamento adequado, clínico e/ou cirúrgico.


Referências Bibliográficas

     1)   Richeter JE e Rubenstain JH: Gastroenterology, 2018; 154:267-276.
     2)   Kessing BF e cols. Clin Gastroenterol Hepatol, 2015;13:1089-1095. 
     3)   Dent J e cols. Gut, 2010; 59:714-721.
     4)   Tack J e cols. Gastroenterology, 2006; 130:1466-1479.
 

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