segunda-feira, 25 de março de 2019

Doença do Refluxo Gastroesofágico: uma atualização da apresentação, prevalência, fisiopatologia, diagnóstico e tratamento (Parte1)


Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

Parte 1: Apresentação e Epidemiologia

Introdução
A Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE) foi definida, por consenso, como um fluxo retrógrado desprovido de esforço, do conteúdo gástrico para o esôfago ou para a boca, causando sintomas desagradáveis e/ou complicações. A DRGE se tornou extremamente comum, atualmente considerada como o diagnóstico gastrointestinal mais frequente no mundo ocidental. Muito embora as complicações, tais como, sangramento devido a esofagite erosiva ou estenose péptica, tenham se tornado menos prevalentes, os pacientes portadores dos sintomas da DRGE apresentam um comprometimento na sua qualidade de vida, semelhante a aqueles pacientes portadores de Doença Inflamatória Intestinal (DII). Para se estabelecer com acurácia o diagnóstico da DRGE, para se propor seu respectivo tratamento, é importante reconhecer as diversas gamas dos sintomas apresentados, sua relativa probabilidade de ser um verdadeiro refluxo patológico, e, ao mesmo tempo, sua potencial sobreposição com outros transtornos gastrointestinais.  

Manifestações Clínicas
Os sintomas clássicos da DRGE são: queimação retroesternal e regurgitação ácida. Os pacientes geralmente relatam uma sensação de queimação na área retroesternal, elevando-se até o tórax e com irradiação para o pescoço, a garganta e ocasionalmente para as costas. Essa queixa ocorre após as refeições, particularmente depois de lautas comidas gordurosas ou a ingestão de alimentos picantes, produtos cítricos, gorduras, chocolates ou álcool. A posição supina ou inclinada sobre as pernas pode exacerbar a queimação retroesternal. A queimação retroesternal noturna pode causar dificuldades ao sono e comprometer as funções do dia seguinte. A deprivação do sono bem como o estresse psicossocial podem diminuir o limiar de percepção dos sintomas. A DRGE pode ser diagnosticada tomando-se em conta os sintomas, tais como a ocorrência de queimação retroesternal com frequência de duas ou mais vezes na semana, e, mesmo nos casos em que os sintomas sejam menos frequentes, mas se eles forem suficientemente comprometedores e apresentarem efeitos adversos ao bem-estar. A frequência e a gravidade dos sintomas não estão necessariamente associadas com o grau de lesão esofágica.

Sintomas menos comuns da DRGE incluem disfagia, dor torácica, odinofagia, eructações, soluços, náuseas e vômitos. A disfagia é considerada um sinal de alarme nos pacientes com DRGE, que pode justificar a realização de Endoscopia Digestiva Alta. A disfagia usualmente ocorre nos pacientes que apresentam queimação retroesternal de longa duração associada com uma pequena, porém progressiva disfagia para alimentos sólidos. As causas mais comuns de disfagia são devidas a estenose péptica ou inflamação grave, porém a disfagia pode ser o primeiro sintoma do esôfago de Barret. A dor torácica associada com a DRGE pode ser indistinguível daquela dor causada por isquemia cardíaca. A DRGE é  causa mais frequente de dor torácica não cardíaca do que os transtornos motores esofágicos. Os sintomas mais problemáticos e controversos associados à DRGE são tosse crônica, laringite crônica (incluindo rouquidão e sensação de globos) e asma.
Alguns pacientes com DRGE são assintomáticos, e este fato é particularmente verdadeiro em pacientes idosos, talvez em decorrência da acidez diminuída do material refluído ou por uma diminuição da percepção da dor. Muitos pacientes idosos apresentam como primeiro sintoma as complicações da DRGE, em virtude do longo tempo de duração da mesma com sintomas mínimos. Isto é um problema particular para os pacientes com esôfago de Barret.      

Sobreposição com outros transtornos
Os sintomas da DRGE podem se sobrepor com aqueles de outras síndromes, o que pode ser causa de uma dificuldade no diagnóstico, e, consequentemente, podem alterar os tratamentos clínico e/ou cirúrgico.

    1)   Esofagite Eosinofílica (EEo)
O questionamento de como diferenciar a EEo da DRGE tem provocado confusões nos clínicos e pesquisadores, desde que a EEo foi reconhecida como uma enfermidade independente. Este dilema diagnóstico se iniciou a partir de um estudo histopatológico em pacientes pediátricos em 1982, no qual se encontraram eosinófilos no epitélio escamoso do esôfago, os quais poderiam ser uma manifestação da DRGE, documentados por testes de pHmetria. Os patologistas rapidamente aceitaram o conceito, e, tornou-se comum na prática clínica atribuir a eosinofilia esofágica à DRGE. O primeiro relato descrevendo a EEo, como uma síndrome independente, caracterizada por disfagia para alimentos sólidos, e, portanto, diferenciada da DRGE, por meios de testes esofágicos, foi publicada em 1993. Subsequentemente, a EEo foi considerada uma enfermidade esofágica crônica mediada imunologicamente ou por antígenos. Entretanto, muitos casos de EEo ainda se sobrepõem à DRGE, e, por esta razão, um ensaio clínico com o uso de inibidor de bomba de próton, tornou-se o meio mais lógico e conveniente para diferenciar a DRGE da EEo. Esta prática baseou-se na hipótese de que o maior efeito do inibidor da bomba de próton somente inibiria a produção de ácido gástrico. De fato, em 2007, a Associação Americana de Gastroenterologia estabeleceu um consenso que definiu a EEo como um transtorno primário caracterizado por sintomas esofágicos e cuja biópsia esofágica, apresenta mais de 15 eosinófilos por campo de grande aumento, e na “ausência” da DRGE, ausência esta evidenciada por testes de pHmetria normais, e fracasso na resposta ao tratamento com inibidores de bomba de próton (Figuras 1-2). 

Este paradigma mutuamente exclusivo começou a ser desfeito quando se passou a levantar a possibilidade de uma complexa interação entre a DRGE e a EEo. Isto ocorreu porque alguns estudos têm demostrado que o tratamento com os inibidores de bomba de próton isoladamente em pacientes com EEo, têm sido responsáveis por eliminar a eosinofilia anteriormente observada. O reconhecimento desta condição, a qual foi denominada Eosinofilia Esofágica Responsiva aos inibidores de bomba de próton (EERIBP), vieram a causar novas confusões. Alguns estudos documentaram que entre 23% a 61% dos pacientes com eosinofilia esofágica sintomática respondem a um tratamento simples com inibidor de bomba de próton. Além disso, os aspectos clínicos, endoscópicos, histológicos e mesmo a expressão esofágica genética das EERIBP e EEo são virtualmente idênticas, portanto, a EERIBP assemelha-se muito mais à EEo do que à DRGE.

Uma descoberta extremante interessante a respeito desta controvérsia deveu-se ao reconhecimento de que a DRGE e a EEo, podem de forma independente provocar uma lesão esofágica mediada via citocinas. Contrariamente ao modelo no qual o ácido refluído causa uma lesão química que destrói as células esofágicas, novos estudos indicaram que a lesão esofágica encontrada em pacientes com DRGE, foi causada por células inflamatórias que são atraídas ao esôfago pelas citocinas produzidas pelas células epiteliais esofágicas, em decorrência da exposição do refluído ácido e da bile. Estudos utilizando cultura de células epiteliais esofágicas, revelaram efeitos anti-citocinas pelos inibidores de bomba de próton, que foram totalmente independentes dos efeitos da produção de ácido gástrico.  Estes efeitos podem curar a DRGE e a EEo. Foi observado que o omeprazol pode bloquear a secreção de Eotaxina-3 estimulada por citocinas T-helper2 produzidas pelas células esofágicas de pacientes com EEo e DRGE, e bloqueia a secreção da interleucina8, um mediador de inflamação eosinofílica, após exposição ao ácido e aos sais biliares sobre as células epiteliais esofágicas de pacientes com DRGE.  

O foco atual sobre como distinguir a EEo da DRGE pode, portanto, ser contraprodutivo, posto que as duas enfermidades geralmente coexistem com interações complexas. Pacientes com DRGE que apesentam a típica síndrome do refluxo associada com esofagite erosiva e hérnia hiatal podem apresentar eosinofilia na mucosa, a qual geralmente está confinada ao esôfago distal. Não está, todavia claramente estabelecida qual a proporção de pacientes com refluxo, que apresentam estas características, mas tudo indica que deve ser menos de 10%.  A etiologia da eosinofilia na mucosa pode ser secundária a uma lesão direta do ácido, ou secundária aos efeitos da DRGE sobre a função da barreira esofágica, a qual torna o epitélio permeável aos antígenos alimentares, e causa eosinofilia esofágica induzida por antígenos. Os inibidores de bomba de próton podem atenuar, independentemente de ambos, os mecanismos patogênicos; uma cuidadosa diferenciação, realizada por meio da manometria esofágica e o teste do pH-impedanciometria, é necessária apenas para aqueles pacientes que requerem tratamento cirúrgico antirrefluxo.   
     
Figura 1- Lesões macroscópicas características da EEo: à esquerda observa-se traqueização esofágica, e à direita erosão e sulcos no esôfago distal.

Figura 2- Microscopia óptica comum da mucosa esofágica: à esquerda aumento médio evidenciando intenso infiltrado eosinofílico, e, à direita em campo de grande aumento observa-se a formação de verdadeiro abcesso eosinofílico.

 2)   Dispepsia Funcional (DF)

Estudos populacionais identificaram a DRGE e a DF, esta última definida como uma dor ou desconforto centralizada no abdome superior, como alguns dos sintomas mais comuns do trato gastrointestinal superior, com prevalência estimada em aproximadamente 20% para cada uma delas. Portanto, não deve ser surpreendente que a diferenciação entre a DRGE e a DP não tenha uma fronteira claramente definida. Além disso, mais de 33% dos pacientes com DF também relatam queixa de queimação retroesternal e regurgitação ácida e vice-versa. Este fato, encontra-se bem ilustrado no estudo de Diamond, no qual 42% dos pacientes que não apresentavam DRGE relataram DF como os seus primeiros ou segundos sintomas mais problemáticos, enquanto que este valor foi de 37% para os pacientes nos quais subsequentemente foi caracterizada a DRGE.

É importante ressaltar que a endoscopia e a pHmetria não distinguem esses grupos com alto nível de confiabilidade. Uma vasta revisão sistemática incluindo mais de 5 mil pacientes que apresentavam queixa primária de DF encontrou evidência endoscópica de esofagite em 13,4% dos pacientes, seguida de úlcera péptica em 8% deles. Tack e cols., relataram que 23% dos pacientes com DF apresentavam tempos de exposição ao ácido anormais, e que seu perfil de sintomas foi predominantemente dor epigástrica. Um estudo envolvendo 626 pacientes com DRGE erosiva tratada com pantoprazol para a cicatrização da esofagite, observou uma sobreposição entre a DRGE e os sintomas de DF em 62% dos pacientes. Vale notar que os sintomas de DF foram aliviados em 50% dos casos durante o tratamento com pantoprazol, e o contrário ocorreu com os sintomas de refluxo, os quais usualmente recidivam com o cessar do tratamento, os sintomas de DF demonstraram tendência de diminuir a longo prazo (Figuras 3-4).  
Figura 3- Representação esquemática dos sintomas de dispepsia.

Figura 4- Representação esquemática da sensação gástrica causada pela dispepsia.


Referências Bibliográficas
1)   Richeter JE e Rubenstain JH: Gastroenterology, 2018; 154:267-276.
2)   Kessing BF e cols. Clin Gastroenterol Hepatol, 2015;13:1089-1095. 
3)   Dent J e cols. Gut, 2010; 59:714-721.
4)   Tack J e cols. Gastroenterology, 2006; 130:1466-1479.

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