quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

A utilização do amido na alimentação do lactente: uma perspectiva histórica e onde nos encontramos na atualidade (Parte 1)


Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

Introdução
No início do século XIX, a maioria dos países continentais europeus, encontravam-se sob a liderança e o comando de Napoleão Bonaparte. A França e metade da Alemanha, faziam parte de uma nova estrutura geopolítica denominada “Rheinbund”. Nesta ocasião Napoleão planejava invadir o Reino Unido, mas após haver perdido a Batalha de Trafalgar, em 1805, ele desistiu desse plano. Em contrapartida, Napoleão declarou um bloqueio continental em seu “Berlim decree” em 1806, contra a importação de quaisquer produtos ingleses, e ao mesmo tempo isolou o Reino Unido por meio de um enorme bloqueio econômico.  A escassez alcançou a negociação de muitos produtos, um dos quais foi a cana-de-açúcar. O preço do açúcar tornou-se muito elevado e isso acarretou a busca em toda a Europa por fontes alternativas deste produto. A partir desta grande dificuldade foram propostas algumas alternativas para solucionar o problema, o que deu origem a duas estratégias que se tornaram exitosas: a primeira delas foi a busca de plantas alternativas que contivessem açúcar e, a segunda, foi a tentativa de se provocar a quebra do amido para a obtenção do açúcar. Considerando-se a primeira estratégia investigadores conseguiram converter o açúcar da beterraba em produção industrial. Em 1747, o químico alemão Andreas Marggraf, em Berlim, havia descoberto que a beterraba continha um elevado teor de açúcar. Seu sucessor, Franz Achard, converteu este conceito em produção industrial de açúcar a partir da beterraba. Ele conseguiu convencer o rei Wilhelm III para financiar seu projeto de construção da primeira fábrica na Prússia, na qual o açúcar passou a ser produzido a partir da beterraba. Em 1802, os primeiros produtos foram disponibilizados para o consumo, porém, esta estratégia não reverteu a escassez de açúcar no país.

A segunda estratégia foi a busca pela obtenção de açúcar em outras fontes, isto é, por meio de um tratamento químico ou enzimático do amido. O farmacêutico alemão Konstantin Kirchhoff, trabalhando em São Petersburgo, descobriu que a hidrólise ácida do amido, produzia açúcar por meio do uso de ácido sulfúrico diluído. Esse método foi descrito em detalhes em agosto de 1811, e era capaz de a partir de 45kg de batata produzir 22kg de xarope e 9kg de açúcar sólido. A sua publicação ganhou grande reconhecimento público na Europa e a indústria açucareira adotou seu método. 

Anselmo Payen, um químico francês, descobriu em 1833 uma substância que era capaz de converter o amido em glicose a partir de um extrato de malte, o qual ele denominou diastase. Ele denominou diastase porque ele pensou que o açúcar poderia ser produzido a partir do amido. Entretanto, mais tarde soube-se que a diastase, na realidade, era a alfa-amilase, a qual se tornou a primeira enzima e a primeira maltase descoberta pela ciência. Posteriormente, Payen tornou-se mundialmente famoso por ter descoberto a celulose.

O nome enzima foi cunhado em 1876, pelo fisiologista alemão Frederic Kuhne, que havia descoberto a enzima tripsina presente na secreção pancreática.

Ambas as estratégias, ou seja, a hidrolise ácida do amido e a digestão enzimática do amido, tornaram-se a base tecnológica da indústria do amido nos séculos XX e XXI. A extração do açúcar pelo açúcar da beterraba, permitiu que a Europa se tornasse independente da importação da cana de açúcar.

O emprego do amido na alimentação do lactente, somente passou a ter uma proporção significativa, nos últimos anos do século XVIII, posto que até aquela data, o aleitamento natural era a opção salva-vidas dos lactentes. Foi a partir desta época que um alimento denominado “panada”, foi primeiramente mencionado no contexto da “ama seca”. Nesta mesma época, uma outra opção foi a utilização de leite de vaca diluído em uma solução de cevada, e aquecida. Foi então que já neste momento histórico, foi conhecido que o amido possuía uma afinidade pela água, e que, quando aquecido com agitação, sofria um inchaço irreversível, agindo como um espessante para um determinado líquido.

Alternativas para a alimentação do lactente não sofreram um progresso significativo até quando surgiram os primeiros relatos comparando a composição do leite de vaca com o leite humano, o que ocorreu em meados do século XIX. Estes relatos, mostraram que comparado ao leite humano, o leite de vaca possuía um teor mais alto de proteína, porém, teores mais baixos de lactose e gordura. Estes achados, determinaram as primeiras recomendações a respeito da modificação do uso do leite de vaca para lactentes humanos.

Os antigos fabricantes de alimentos para lactentes com adição de amido (1867-1920)

Os conhecimentos das diferenças comparativas entre o leite humano e o leite de vaca, acarretaram na proposição de diluir o leite de vaca com água para diminuir a concentração proteica e a adição de açúcar e creme, para aumentar o conteúdo de lactose e gordura e, com isso, se aproximar da composição do leite humano. Estas propostas levaram ao desenvolvimento de um número incontável de empresas de alimentos para lactentes, mas a primeira da qual se tem notícia foi a Liebig‘s Food, na Alemanha, em 1867, e imediatamente seguida, no mesmo ano, pela Nestle’s Food, na Suíça. O amido de ambos os produtos foi a farinha de trigo. Estes produtos das empresas alimentícias eram vendidos em farmácias e eram planejados para serem utilizados sob prescrição médica (Tabela 1).

Tabela 1- Primeiras empresas de alimentação infantil

Por outro lado, pode-se argumentar que a esterilização e a modificação do leite de vaca para a utilização dos lactentes, e a preocupação com a mortalidade infantil associada com a alimentação artificial, tornou-se um motivo de sustentação para o surgimento de uma nova subespecialidade, a Pediatria.

Todos esses alimentos para lactentes continham uma fonte adicional de amido, desde grãos de cereais ou mesmo o carboidrato do malte. Havia inúmeras razões para justificar a adição do amido como uma fonte adicional de calorias fornecida pelo carboidrato. Naquela época pensava-se que a adição de amido prevenia a formação de grandes coágulos de caseína e que também a fórmula espessada diminuiria a quantidade de regurgitação. Além disso, o amido era mais barato que a lactose. Vários tipos de amido eram utilizados, a saber: cevada, milho, trigo, aveia e farinha de arroz. De acordo com alguns profissionais a cevada era preferida porque ela produzia uma cobertura protetora das membranas da mucosa intestinal. Naquela época já se sabia que o amido, proveniente dos grãos dos cereais, era difícil de ser digerido e, portanto, requeria uma moagem intensa e um cozimento extensivo. O efeito desde procedimento, resultava em um aumento da viscosidade e a tendência de formação de um gel, ambos produtos resultavam na elaboração de uma textura indesejável que limitava a aceitabilidade do lactente. Estes inconvenientes desagradáveis levaram os fabricantes a desenvolver esforços para utilizar amidos modificados, pois eles apresentavam a vantagem adicional de serem estabilizantes eficazes, necessários para manterem em suspensão finas partículas de alimentos. Desta forma, amidos nativos passaram a ser convertidos de dextrina a maltose e dextrose durante o processo digestivo. Consequentemente, a maltodextrina tornou-se um dos primeiros amidos modificados disponíveis.

Em 1873, havia pelo menos 27 empresas de alimentos, com amido adicionado para lactentes, patenteadas nos EUA disponíveis no mercado (Figuras 1-2-3).




Amido modificado na alimentação para o lactente nas fórmulas pré-industrializadas: 1915-1950


Em 1912, Mead Johnson, produziu o primeiro mais importante produto de alimentação para o lactente comercialmente disponível, um amido modificado, a Dextri Maltose. Este produto, um carboidrato em pó solúvel obtido da hidrólise parcial do amido da batata tornou-se disponível para ser adicionado ao leite de vaca (Figura 4).

Em 1915, a Dextri Maltose tornou-se o carboidrato predominantemente utilizado pelas empresas de alimentação para o lactente, obtida naquela ocasião do xarope de milho, devido a indisponibilidade do amido da batata alemã, em virtude da eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-18).

A primeira fórmula “moderna” baseada em calorias foi desenvolvida entre 1915-1919, a qual fornecia 67kcal/dl elaborada com leite de vaca desnatado e lactose, óleo animal e óleos vegetais.  Este produto foi comercializado como um leite sintético adaptado (SMA) e foi considerado o precursor de todas as fórmulas modernas. 


Referências Bibliográficas


      1-   The History of Maltose-active Disaccharidases – Michael J. Lentze
JPGN 66: Supplement 3, S4, 2018

   2-   Use of Starch and Modified Starches in Infant Feeding: A Historical Perspective – Frank R. Greer
JPGN 66: Supplement 3, S30, 2018


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