sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Transtornos Gastrointestinais Funcionais: Critérios de Roma IV – lactentes, escolares e adolescentes (Parte 2)


    Isabela T. Mazzei e Ulysses Fagundes Neto



     2-  Regurgitação do Lactente

A regurgitação se caracteriza pelo retorno involuntário do alimento previamente deglutido para a boca ou para o meio externo, e que não deve ser confundido com vômito.

Vômito é definido como um reflexo do sistema nervoso central que envolve a musculatura autonômica e esquelética, no qual o conteúdo do estômago é expelido para a boca em um movimento coordenado de intestino delgado, estômago, esôfago e diafragma.

Quando a regurgitação causa ou contribui para alguma lesão ou inflamação, tais como: esofagite, apnéia, hiperreatividade da via aérea, aspiração pulmonar, dificuldade de deglutição ou déficit ponderal, caracteriza-se a Doença do Refluxo Gastroesofágico.

No Quadro 5 abaixo estão discriminados os critérios diagnósticos da Regurgitação.

    3-  Cólica do Lactente

A cólica do lactente se caracteriza por choro inconsolável, prolongado, após a alimentação, distensão abdominal, flatulência, flexão das pernas, sintomas que não são necessariamente indicativos de dor ou doença, pois menos de 10% são de causa orgânica.

O diagnóstico pode ser suspeitado em lactentes de até 4-5 meses de idade sem sinais de alteração do sistema nervoso central ou do desenvolvimento, com exame físico normal e bom ganho pôndero-estatural.

No Quadro 6 abaixo estão discriminados os critérios diagnósticos da Cólica do Lactente.

O tratamento deve-se basear no embalo rítmico e massagem na região abdominal em ambiente calmo. Caso não ocorra resolução dos sintomas após 48 horas de tratamento deve-se pensar em alergia alimentar.

4-          Transtornos da Dor Abdominal Funcional

A Tabela 2, apresenta os aspectos de potencial alarme nas crianças portadoras de dor abdominal crônica


4A- Dispepsia Funcional (DF)

A Dispepsia Funcional (DF) é um transtorno heterogêneo comumente associado a diferentes distúrbios fisiopatológicos de base com padrões sintomáticos específicos. Neste grupo, estão incluídas anormalidades da função gástrica motora, hipersensibilidade visceral devido a sensibilização central ou periférica. Tem sido demonstrada uma acomodação gástrica prejudicada, determinada pela diminuição da capacidade de relaxamento do estômago, em resposta ao alimento.

No Quadro 7 abaixo, estão discriminados os critérios diagnósticos para DF. 

Quanto ao tratamento, alguns alimentos podem agravar os sintomas, tais como: cafeína, pimenta e gordura, e agentes anti-inflamatórios não esteroides, os quais devem ser evitados. Fatores psicológicos que podem contribuir para a intensidade dos problemas, devem ser levados em consideração.  O uso de medicamentos, tais como, bloqueadores de ácido associados a antagonistas dos receptores de histamina e inibidores da bomba de próton, podem ser indicados quando a dor for o sintoma predominante. Náusea, flatulência e saciedade precoce são mais difíceis de serem tratados, e nestas circunstâncias pro-cinéticos, tais como a domperidona, podem ser indicados.

4B- Síndrome do Intestino Irritável (SII)

A SII é considerada um transtorno do eixo cérebro/trato digestivo. Os sintomas, quer sejam diarreia ou constipação com dor intensa e estresse psicossocial, em um determinado paciente, refletem quais componentes do eixo cérebro/trato digestivo estão afetados e qual a intensidade desde problema. A hipersensibilidade visceral pode estar relacionada com o nível de estresse da criança (ansiedade, depressão, impulsividade e irritabilidade). Tem sido demonstrado um aumento das citocinas pro-inflamatórias na mucosa digestiva, e este aumento pode ser induzido como consequência de um episódio de gastroenterite infecciosa aguda (SII pós-infecciosa). Alterações do microbioma intestinal tem sido demonstrada, embora não esteja claro se estas alterações são a causa ou o resultado da SII e seu sintomas. Têm sido observados aumento dos auto-relatos de estresse, ansiedade, depressão e problemas emocionais pelos próprios pacientes com SII (Figura 1).
  

Figura 1- Fisiopatologia dos transtornos da dor abdominal funcional. A hiperalgia visceral levando a incapacitação é demonstrada como o desfecho final dos fatores de sensibilidade clínica que estão superpostos a antecedentes genéticos, os quais predispõem aos eventos precoces na vida.

No Quadro 8 abaixo estão descritos os critérios diagnósticos da SII.


A obtenção de uma histórica clínica cuidadosa e a realização do exame físico criterioso podem sugerir uma diferenciação diagnóstica com a CF, quando a manifestação clínica exuberante é constipação. Por outro lado, no caso de uma possível SII com diarreia, deve-se dar particular atenção para o diagnóstico diferencial com infecção, doença celíaca, má absorção dos carboidratos e doença inflamatória intestinal. Deve-se levar em consideração que quanto maior o número de sinais de alarme presentes, maior será a possibilidade da existência de uma enfermidade orgânica (Tabela 2).

Quanto ao tratamento, tem sido sugerido com eficácia uma dieta de eliminação que reduz a ingestão de oligossacarídeos, dissacarídeos, monossacarídeos e pólios fermentáveis. Tratamento comportamental também pode ser recomendado para os pacientes com SII e o foco primário deste tratamento deve ser voltado para desenvolver uma habilidade de otimização para superar os sintomas.

4C- Enxaqueca Abdominal (EA)

A EA, a SVC e a enxaqueca tradicional compartilham o mesmo mecanismo fisiopatológico, sendo da mesma forma episódica, auto-limitada e estereotípica, apresentando intervalos livres de sintomas entre as crises. Crianças portadoras de EA e enxaqueca tradicional relatam os mesmos mecanismos deflagradores (por exemplo: estresse, fadiga e viagem), associados a sintomas tais como, anorexia, náuseas e vômitos, bem como a fatores de alívio, a saber, repouso e sono. Um aumento da atividade de amino-ácidos excitadores foi encontrado em pacientes portadores da enxaqueca tradicional, o que possivelmente explica a eficácia do uso de certos medicamentos que aumentam a concentração sérica do ácido gama-aminobutírico.

No Quadro 9 abaixo encontram-se discriminados os critérios diagnósticos da EA.

A associação de sintomas prodrômicos inespecíficos, tais como, alterações do comportamento e do humor (14%), fotofobia e sintomas vasomotores similares a aqueles vivenciados pelas crianças com enxaqueca tradicional, e uma história de alivio dos sintomas com drogas anti-enxaqueca dão suporte ao diagnóstico. A avaliação pode requerer a exclusão de determinadas enfermidades, quando os sintomas episódicos são intensos, tais como, obstrução intermitente do intestino delgado ou urológica, pancreatite recorrente, enfermidade do trato biliar, febre familiar do Mediterrâneo, transtornos metabólicos, tais como, porfiria e transtornos psiquiátricos.

O tratamento deve ser determinado pela frequência, intensidade e o impacto dos episódios de EA sobre a vida diária da criança e da família.  O uso oral de pizotifen uma droga com efeitos anti-serotonina e anti-histamina tem produzido benefício profilático. O uso profilático com drogas, tais como, amitriptilina, propranolol e ciproheptadina tem sido exitoso.

4D- Dor abdominal funcional inespecífica (DAFI)

Estudos separando a DAFI da SII sugerem que estas crianças, em geral, não apresentam hipersensibilidade retal, em contraste com as crianças portadoras da SII. Tem sido descrito que os pacientes portadores de DAFI apresentam ritmo de contração antral e esvaziamento gástrico mais lentos quando ingerem alimentos líquidos em comparação com controles sadios, mas o significado clínico deste achado não está totalmente definido. Há evidências de associação entre estresse psicológico e dor abdominal crônica em crianças e adolescentes. Dor abdominal crônica está associada com eventos estressantes da vida, divórcio dos pais, hospitalização, bullying e abuso sexual. A maneira pela qual a criança e seus pais enfrentam a dor, influência o desfecho da DAFI (Figura 2).

Figura 2 – A abordagem de qualquer episódio de dor abdominal sofrido por uma criança pode ter impacto significativo na sua habilidade de superação do problema e acomodar a dor, e, consequentemente sua função normal e seu desenvolvimento. Na presença de fatores de risco ou quando fatores de proteção são menos eficazes, a criança pode desenvolver uma resposta de má adaptação que leva a um estado de dor crônica.

No Quadro 10 abaixo estão descriminados os critérios diagnósticos da DAFI. 

As crianças portadoras da DAFI frequentemente relatam sintomas somáticos inespecíficos e extra intestinais que necessariamente não requerem investigação laboratorial ou radiológica. Na Tabela 2, estão apresentados os sinais de alarme que sugerem uma investigação diagnóstica adicional. Com relação ao tratamento a citalopran mostrou-se com uma tendência efetiva em ensaios clínicos realizados. A terapia comportamental cognitiva tem proporcionado benefício de curto e longo prazo para os pacientes portadores de DAFI.

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