Isabela
T. Mazzei e Ulysses Fagundes Neto
Introdução
Em geral, admite-se que o modelo biomédico da prática clínica
baseia-se na teoria de que os sintomas são, potencialmente, causados por
enfermidades orgânicas, as quais, por sua vez, são definidas como anormalidades
anatômicas, inflamatórias, neoplásicas e/ou bioquímicas. Por esta razão, a
responsabilidade do clínico traduz-se na busca do diagnóstico e, quando
possível, proporcionar a cura para determinados sinais e/ou sintomas
apresentados pelos pacientes. Entretanto, no caso desta pesquisa resultar
infrutífera, o diagnóstico proposto passa a ser um transtorno funcional. De
qualquer forma, este tipo de abordagem, durante muito tempo, foi desprovido de
um critério universalmente consensuado, o que caracterizava uma lacuna que
necessitava ser devidamente preenchida, era, portanto, recomendável estabelecer
uma validação apropriada. Para tal fim, em 1989, um grupo de investigadores se
reuniram em Roma, e desenvolveram um consenso para auxiliar no diagnóstico dos
transtornos gastrointestinais funcionais (TGF) para os indivíduos adultos.
Os objetivos dos critérios de Roma foram desenvolver um
sistema de classificação baseado em sintomas, estabelecer critérios
diagnósticos para pesquisa e assistência, fazer uma revisão sistemática
rigorosa da literatura com respeito a essas condições e, finalmente, validar
e/ou modificar esses critérios de acordo com um processo baseado em evidências.
Os critérios para crianças e adolescentes, entretanto,
somente foram discutidos em 1997, e foram publicados em 1999 sob a denominação
de critérios Roma II. Estes critérios forneceram um guia de conduta baseado em
sintomas por meio do qual crianças em idade escolar e adolescentes portadores
de um TGF podem ter o diagnóstico estabelecido. As experiências baseadas em
evidências nestes últimos 10 anos forneceram a base para a maioria das
recomendações para o advendo dos critérios de Roma IV. Para aqueles transtornos
que ainda apresentam uma falta de dados científicos, o comitê utilizou a
experiência clínica e o devido consenso entre os membros do respectivo comitê.
A descrição dos TGFs Roma IV estão apresentados na Tabela 1.
Os critérios de Roma III enfatizavam que os sintomas deveriam apresentar uma
“não evidencia” de enfermidade orgânica. No Roma IV a frase, “não evidência de um
processo inflamatório, anatômico, metabólico
ou neoplásico, para explicar os sintomas apresentados por um determinado
paciente”, foi suprimida dos critérios diagnósticos. Ao invés disto, foi
incluída a frase “após criteriosa avaliação médica, os sintomas não podem ser
atribuídos a qualquer outra condição médica”. Esta alteração permite dar a
devida validade, para se estabelecer um diagnóstico de TGF em um determinado
paciente, mesmo na ausência de uma investigação laboratorial específica. Além
disso, vale enfatizar que um determinado transtorno funcional pode coexistir
associado a uma outra condição médica, e, da mesma forma diferentes TGFs
frequentemente estão presentes em um mesmo paciente.
Descrição dos
Transtornos Funcionais Gastrointestinais
1-
Náuseas e Vômitos funcionais
1A- Síndrome dos Vômitos Cíclicos (SVC)
Os
dados conhecidos sugerem que a prevalência da SVC varia de 0,2% a 1%, a idade
mediana dos sintomas varia dos 3,5 aos 7 anos, porém a SVC também pode ocorrer
desde os primeiros anos de vida até a idade adulta, sendo que 46% dos sintomas
se iniciam aos 3 anos de idade ou mesmo antes.
No quadro abaixo estão
discriminados os critérios diagnósticos da SVC.
Na
avaliação clínica há uma alta probabilidade da existência de enfermidades
neurometabólicas associadas com essa síndrome particularmente nas crianças que
apresentam os sintomas da SVC em idades precoces da vida. Por esta razão,
testes metabólicos devem ser realizados durante os episódios de vômitos e antes
da administração de fluidos intravenosos para maximizar a detecção das potenciais
anormalidades. O uso crônico de cannabis
pode estar associado com episódios repetidos de vômitos intensos, náuseas e
dores abdominais, e deve ser levada em consideração essas possibilidades em
pacientes adolescentes.
O
tratamento recomendado para crianças menores de 5 anos é a ciproheptadina e
para os maiores de 5 anos a amitriptilina. Um tratamento de segunda linha
inclui a profilaxia com propranolol. Tratamento abortivo pode ser tentado com
hidratação e ondansetrona.
1B- Náusea Funcional e Vômito Funcional
Não
existem dados disponíveis na literatura para a prevalência destas síndromes,
isoladas ou conjuntamente. No quadro abaixo estão discriminados os critérios
diagnósticos desta síndrome.
Alguns
pacientes com esses transtornos também apresentam sintomas autonômicos, tais
como: transpiração, tonturas, palidez e taquicardia. A síndrome da taquicardia
postural ortostática pode incluir náusea e vômitos como parte deste complexo
sintomatológico, e deve ser diferenciado da náusea funcional e do vômito funcional.
Algumas crianças somente apresentam náusea pela manhã e observam que quando elas
“dormem tarde”, ou seja, ultrapassam o horário usual de dormir, é quando elas
deveriam apresentar náusea, mas isto, na realidade, não ocorre.
A
náusea funcional e o vômito funcional devem ser consideradas entidades
distintas, mas, pacientes que sofrem de náusea crônica frequentemente relatam
episódios leves de vômitos com frequência variada. A presença de vômitos
intensos associados à náusea representa uma situação diferente na qual devem-se
excluir enfermidades do sistema nervoso central, anormalidades anatômicas do
trato digestivo (por exemplo, malrotação), gastroparesia e pseudo obstrução
intestinal. A avaliação psicológica está indicada neste grupo de pacientes.
Não
há dados disponíveis para o tratamento isolado da náusea funcional e/ou do
vômito funcional, porém, há indicação de intervenção da saúde mental naqueles
pacientes que apresentam comorbidades psicológicas evidentes.
1C- Síndrome da Ruminação
Ruminação
é a regurgitação do conteúdo recém deglutido seguida da re-mastigação e nova
deglutição ou não. Apesar de ser um sintoma funcional, é um transtorno psiquiátrico
causado principalmente por privação social. A ruminação pode ocorrer em
qualquer idade, porém, adolescentes do sexo feminino parecem ser de maior risco
para apresentar este transtorno.
No
Quadro 3 abaixo estão descritos os critérios diagnósticos da Síndrome da
Ruminação.
O
ato da ruminação é causado por um aumento da pressão intragástrica devido à
contração dos músculos abdominais e está associado com a abertura do esfíncter
esofágico inferior, o que causa o retorno do conteúdo gástrico para o esôfago.
A motilidade de jejum e pós-prandial usualmente estão normais. Tem sido reconhecido
que quando ocorre aumento da pressão abdominal, a junção gastroesofágica é
deslocada para o tórax, e, esta alteração anatômica, mais do que o relaxamento
do esfíncter esofágico inferior, é o que explica o mecanismo voluntário da
regurgitação presente nesta síndrome.
Geralmente
um evento deflagrador ocorre antes da instalação dos sintomas de ruminação. A
intercorrência de um processo infeccioso pode causar vômitos e náuseas, os
quais podem não desaparecer após a infecção ter sido curada. Em outras ocasiões,
um evento psicossocial traumático pode ser identificado com o início dos
sintomas. Distúrbios psiquiátricos podem incluir depressão, ansiedade,
transtorno obsessivo compulsivo, estresse pós-traumático, transtorno
comportamental e transtorno de déficit de atenção-hiperatividade.
Regurgitação
repetitiva, desprovida de esforço acompanhada de reingestão e/ou o ato de cuspir
o alimento no prazo de alguns minutos após ter iniciado a alimentação, define a
ruminação. Outras queixas comuns
incluem dor abdominal, flatulência, náusea, queimação retroesternal, e vários
sintomas somáticos tais como, cefaleia, tontura e dificuldades do sono. O
diagnóstico diferencial inclui refluxo gastroesofágico, gastroparesia,
acalasia, bulimia nervosa e outras enfermidades funcionais ou anatômicas do
estômago e do intestino delgado, mas em nenhuma destas entidades a regurgitação
ocorre imediatamente após a alimentação.
Para
se alcançar um tratamento bem-sucedido a profunda compreensão da síndrome da
ruminação, bem como uma evidente motivação para superá-la, são necessários. Um
exitoso modelo terapêutico deve ser composto pela abordagem interdisciplinar
envolvendo psicólogo, gastroenterologo e nutrólogo.
1D- Aerofagia
A
aerofagia ao que tudo indica é particularmente comum em pacientes com
deficiência neurocognitiva. Quando a ingestão de ar é excessiva o gás preenche
o lúmen gastrointestinal, resultando em eructações excessivas, distensão
abdominal, eliminação de flatus e dor, presumivelmente como consequência da
distensão luminal. É importante assinalar que a distensão abdominal reduz ou desaparece durante o sono.
No
Quadro 4 abaixo estão descritos os critérios diagnósticos da Aerofagia.
A
aerofagia pode ser confundida com gastroparesia ou outros transtornos de
motilidade, tal como, a pseudo-obstrução intestinal crônica. Pode ser realizado
o teste do Hidrogênio no ar expirado para excluir distúrbio de absorção e/ou
sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado.
Quanto ao tratamento até o
presente momento não há um guia de conduta bem estabelecido e deve-se levar em
consideração uma terapia de suporte emocional e comportamental. Além disso,
deve-se explicar a existência dos sintomas, comer devagar e evitar o uso de
goma de mascar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário