segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Insuficiência Pancreática: Etiologia e Tratamento (Parte 1)


Cristiane Boé e Ulysses Fagundes Neto

Introdução

A função pancreática normal garante efetiva digestão e absorção dos nutrientes. Vale ressaltar que o pâncreas adquire plena maturidade funcional na produção enzimática a partir dos 2 anos de idade (Figuras 1-2-3).

Figura 1- Localização anatômica do pâncreas no interior da cavidade abdominal.

Figura 2- Anatomia e histologia do pâncreas e sua localização na segunda porção do duodeno.

Por outro lado, as manifestações clínicas da insuficiência pancreática (IP) ocorrem quando as secreções exócrinas do pâncreas não mantêm uma função digestiva normal, afetando a qualidade de vida e, como consequência, pode resultar em desnutrição.

A principal causa de IP é a pancreatite crônica, que apresenta a estimativa de afetar 0,4% a 5% da população mundial. Entretanto, em crianças, a causa mais comum é a fibrose cística (FC). A prevalência de IP exócrina nos casos de pancreatite crônica é de 30 a 40%, enquanto que na FC é de 80 a 90% (Figura C).

Desde 1938, após a aprovação pelo Food and Drug Administration (FDA), a reposição de enzimas pancreáticos tem sido a principal ação terapêutica para aqueles pacientes que sofrem de má absorção dos nutrientes secundária à insuficiência pancreática. O nível das enzimas pancreáticas secretadas no intestino delgado varia segundo a quantidade e o tipo de lipídios ingeridos durante uma refeição, além de também apresentar uma oscilação individual. Em virtude da existência destas variáveis, determinar o nível exato de enzimas secretadas por um indivíduo normal é muito difícil.

Etiologias

As causas de IP em crianças podem ser divididas em 2 categorias:
        - hereditárias
        - adquiridas
A maioria das causas hereditárias faz parte de doenças sistêmicas, como explicitado no quadro 1, abaixo.

Quadro 1- Causas de IP na infância.

Apresentação Clínica da Insuficiência Pancreática

O diagnóstico é em grande essência clínico. No caso de um determinado paciente ser portador de alguma causa conhecida de IP que se apresenta com perda de peso e esteatorreia, está indicado o início do tratamento sem que seja necessária a realização de extensa investigação laboratorial. A IP se instala quando restar menos de 10% da função pancreática exócrina.

Esteatorreia (fezes espumantes, malcheirosas que boiam no vaso sanitário), perda de peso, desconforto e distensão abdominal são sintomas comuns relacionados com a digestão inadequada dos lipídios.

Inicialmente, a digestão de proteínas e amido se mantém adequada. Com a progressão da IP a má absorção de lipídios leva ao quadro de desnutrição, má absorção de vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K), depleção de micronutrientes e diminuição de lipoproteínas circulantes.

A IP exócrina pode por si só, de forma isolada, causar ou exacerbar transtornos da motilidade do trato digestivo. Nestas circunstâncias, há alteração na regulação neuro-hormonal, especificamente na produção de colecisticinina e polipeptídeos pancreáticos (afetados pelo alimento não digerido no intestino), levando ao esvaziamento rápido do estômago e alterando a motilidade antroduodenal e da vesícula biliar.

Nos pacientes, nos quais o tratamento ainda não se iniciou, é notório o fato de que se alimentam em curtos espaços e que apresentam tempo de trânsito no intestino delgado mais rápido, cujos sintomas podem ser revertidos com o emprego de enzimas pancreáticos exógenos.

Diagnóstico

A caracterização diagnóstica pode ser estabelecida por métodos diretos e indiretos, a saber:

Indiretos: são menos invasivos, mas que apresentam alta sensibilidade e especificidade, tais como:
        - determinação quantitativa da eliminação de gordura nas fezes, as quais devem ser coletadas por um período de 72 horas, pelo método de Van de Kamer;
        - elastase fecal, dosada pela técnica ELISA, e que avalia exclusivamente a produção enzimática endógena;
        - quimiotripsina fecal, determinada por método colorimétrico, avalia a produção de ambas enzimas, endógenas e exógenas, portanto, pode apresentar resultados duvidosos em pacientes em vigência de terapia de reposição enzimática.

Diretos (quantitativos)

        - teste da secretina-ceruleina;
    - teste da secretina-pancreozimina (padrão-ouro, porém invasivo, sem valores de referência bem definidos em crianças).

¡  Teste da secretina-pancreozimina

Deve-se utilizar sonda gastroduodenal de dupla via posicionada sob controle fluoroscópico; uma das vias drena o conteúdo gástrico e a outra o duodenal. Secreções duodenais são coletadas em intervalos de 10 minutos, em três períodos após injeção intravenosa de secretina e em três períodos após infusão intravenosa de pancreozimina. Os aspirados são avaliados quanto ao volume, medida do pH, concentração de bicarbonato, amilase, tripsina, lipase, bilirrubinas, fosfatase alcalina, cálcio e magnésio. Amostras são encaminhadas para microscopia e citologia. A ocorrência de produção enzimática reduzida após injeção de pancreozimina corresponde ao índice mais sensível para avaliar a diminuição da função pancreática.

Principais Enfermidades Causadoras de Insuficiência Pancreática

Fibrose Cística

Trata-se de doença de herança autossômica recessiva que afeta múltiplos tecidos secretores epiteliais cuja incidência é de 1:3000 nascidos vivos em indivíduos caucasianos (Figura 3).

Figura 3- Tipo de herança da FC.

Figura 4- Principais manifestações clínicas e órgãos afetados pela FC.

As manifestações clínicas da FC são reflexo de mutações no gene CFTR (cystic fibrosis transmembrane condutance regulator). Geralmente ocorrem 2 mutações (forma clássica) ou 1 mutação (forma não-clássica), sendo a mais frequente aquela que afeta o gene ΔF508. Estas mutações no gene CFTR resultam em transporte anormal de sódio e cloro. Em condições normais, o cloro intraluminal é trocado por bicarbonato, o que torna o ambiente alcalino, permitindo, desta forma, que altas concentrações de proteínas fiquem em seu estado solúvel. Em virtude da mutação no gene, o resultado é a presença de uma secreção viscosa e ácida, levando à obstrução ductal. Esta obstrução resulta em destruição tecidual por retenção de enzimas proteolíticas, fibrose, substituição gordurosa, formação de cistos e insuficiência pancreática exócrina.

Figura 5- Esquema representativo comparando a glândula sudorípara de um indivíduo normal com a do portador de FC.

O mesmo ocorre com as secreções pulmonares (doença pulmonar crônica com infecções bacterianas recorrentes) e infertilidade no sexo masculino devido a azoospermia obstrutiva.

Nos recém-nascidos deve-se suspeitar do diagnóstico de FC na presença de íleo meconial, prolapso retal, “suor salgado”, icterícia prolongada, anemia hemolítica sem causa aparente, hipoalbuminemia e edema.

Nas crianças maiores a existência de dedos em baquetas de tambor, pólipos nasais, assim como secreção do trato respiratório colonizada por S. aureus ou P. aeruginosa, são achados importantes.

 Figura 7- Dedos em baqueta de tambor causados pela FC de longa duração.

Triagem Neonatal

Desde 2001 o Ministério da Saúde criou o Programa Nacional de Triagem Neonatal, incluindo o diagnóstico precoce para FC, anemia falciforme e outras hemoglobinopatias.

Realiza-se rotineiramente a dosagem sérica do tripsinogênio imunorreativo (IRT), indicador indireto da doença pois avalia a integridade da função pancreática (Tabela 1).

Caso a dosagem revele-se positiva (>70ng/ml), deve-se realizar nova dosagem após 15 dias, e se o teste permanecer positivo, deve-se realizar teste genético ou teste do suor.

O Íleo meconial pode estar relacionado a testes falsonegativos, pois com a desobstrução intestinal ocorre rápida queda dos níveis de IRT no sangue. Mesmo diante de um IRT normal, o que não descarta completamente o diagnóstico de FC, se uma criança apresentar sintomas sugestivos da doença, deve ser submetida ao teste do suor.

 Figura 8- Representação esquemática das provas laboratoriais para a confirmação diagnóstica de FC desde o nascimento.




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