terça-feira, 11 de setembro de 2018

Bodas de Diamantes da Revista Gastroenterology (1943-2018) (Parte 1)



Gastroenterology 2018;154:1209-14.

Bodas de Diamantes da Revista Gastroenterology (1943-2018): as contribuições para os Transtornos Pépticos Ácidos e Esofagite Eosinofílica

Traduzido e Editorado: Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto



Ao longo dos últimos 50 anos os manuscritos publicados na revista Gastroenterology tiveram um substancial impacto no nosso conhecimento clínico, compreensão e manejo da Ulcera Péptica (UP), infecção por Helicobacter pylori (Hp), Doença do Refluxo Gastro-Esofágico (DRGE), Esôfago de Barret e Esofagite Eosinofílica (EEo).  Este artigo salienta os mais citados trabalhos sobre as enfermidades acima referidas e que estão historicamente contextualizadas nas Linhas do Tempo 1 e 2. 
Linha do Tempo 1

Linha do Tempo 2

Úlcera Péptica e Helicobacter pylori

Avanços significativos na era pré-Hp incluem os manejos eficazes sobre a produção de ácido por meio da utilização dos inibidores da bomba de próton bem como a vagotomia altamente seletiva. Muito embora os impactos do Hp sobre as úlceras gastroduodenais e a neoplasia gástrica sejam bem conhecidos, o impacto do Hp sobre a DRGE era mais controverso, porque associações positivas dos sintomas de refluxo estavam ligadas com fatores contribuintes de gastrites graves, enquanto que o Hp estava relacionado com um menor risco de câncer esofágico.

Antes da descoberta da eficácia terapêutica proporcionada pelas drogas anti-secretoras, a cirurgia era a única opção efetivamente viável porá o manejo da UP. A vagotomia altamente seletiva foi a primeira cirurgia para tratar a UP e que possibilitava evitar a ressecção gástrica e preservava de forma intacta os esfíncteres antral e pilórico. Um relato pioneiro publicado na Gastroenterology, por Amdrup e Jensen, em 1970, demonstrou que a vagotomia altamente seletiva proporcionava uma evolução clinicamente superior em comparação com as abordagens até então tradicionais.

A descoberta do Hp como o fator etiológico individual mais importante das úlceras gastroduodenais, levantou a especulação de que o Hp também poderia causar a DRGE. Entretanto, vários estudos relataram uma associação negativa entre Hp e a DRGE, o que aventou o questionamento se de fato a infecção pelo Hp estaria positiva ou negativamente correlacionada com a DRGE.  A resposta parece depender da localização da infecção. A pangastrite predominantemente do corpo do estômago está associada a uma hipocloridria mais intensa e, portanto, com redução dos sintomas de refluxo, em oposição à gastrite predominantemente antral (Figuras 1-2-3). 


Figura 1– Gastrite nodular antral lesão característica da infecção por Helicobacter pylori.

 
Figura 2- Representação esquemática da fisiopatologia da infecção por Helicobacter pylori.


Figura 3- Imunohistoquímica demonstrando a presença do Helicobacter pylori na mucosa gástrica.

Doença do Refluxo Gastro-Esofágico

O primeiro estudo para identificar a prevalência da DRGE nos EUA, foi publicado na Gastroenterology por Locke e cols., em 1997, e a população que serviu de base para esta investigação foi a que habitava o Condado de Olmsted, Minnesota. Esta pesquisa demonstrou que 19,8% dos investigados apresentavam sintomas típicos de refluxo (queimação retroesternal ou regurgitação ácida), pelo menos semanalmente por mais de 5 anos. Além disso, os pacientes referiam que seus sintomas típicos de refluxo também estavam associados com sintomas atípicos, tais como: dor torácica não cardíaca, disfagia e dispepsia.

Aproximadamente 30% dos pacientes com sintomas típicos da DRGE apresentam à endoscopia uma visível esofagite por refluxo a qual pode resultar em complicações esofágicas, tais como: estenose e esôfago de Barret. O sistema de classificação endoscópico da DRGE (grau de Los Angeles) foi publicado na Gastroenterology em 1996, o que possibilitou uma avaliação padronizada e reproduzível da DRGE e suas complicações.

Souza e cols., publicaram na Gastroenterology em 2009, uma investigação revolucionária que desmistificou um dogma que perdurou durante décadas a respeito da patogênese da DRGE. Esses autores diferentemente do que se admitia até então, ou seja, que as lesões esofágicas se deviam ao efeito químico cáustico do material de refluxo por ácido e bile, identificaram um outro fator como causa da esofagite. Na verdade, segundo estes autores a esofagite por refluxo se desenvolve por uma forma predominantemente linfocitária de inflamação que ao que tudo indica deve ser mediada por citocinas.

Outros estudos publicados na Gastroenterology têm demonstrado que a DRGE pode causar anormalidades motoras no esôfago por meio de processos mediados por citocinas. Por exemplo, Rieder e cols., em 2007, demonstraram que os transtornos motores do esôfago podem resultar na produção de citocinas pró-inflamatórias pela mucosa esofágica, o que estabelece uma ligação direta entre a produção de citocinas pelas células escamosas do esôfago que induzem à DRGE e as anormalidades motoras esofágicas.

Esôfago de Barret

Esta enfermidade foi primeiramente descrita por Tileston, em 1906, porém, foi Norman Barret que propôs que esta patologia fosse um segmento intratorácico do estômago de etiologia congênita ao invés da proposição universalmente aceita, de que se trata de um tecido metaplásico (Figura 4).


Figura 4- Lesão esofágica característica do Esôfago de Barret.

Na década de 1980 foi reconhecida a associação entre o esôfago de Barret e o adenocarcinoma esofágico. Em 1995, Cameron e cols., publicaram na Gastroenterology, um estudo a partir de espécimes de tecido de esofagectomia que todos os adenocarcinomas esofágicos e a maioria dos adenocarcinomas da junção esôfago gástrica são provenientes do esôfago de Barret. Shaheen e cols., em 2000, publicaram uma revisão sistemática na Gastroenterology estimando que a verdadeira incidência anual de câncer devido ao esôfago de Barret se encontra ao redor de 0,5%.

O reconhecimento da potencial lesão pré-cancerígena do esôfago de Barret, e da sua associação com sintomas de refluxo com ambos, esôfago de Barret e adenocarcinoma esofágico, levou ao intenso esforço de triagem endoscópica e vigilância clínica nos pacientes com sintomas de refluxo e naqueles com esôfago de Barret. Considerando-se que uma substancial morbidade e mortalidade estão associadas à esofagectomia, passou a haver um grande interesse no desenvolvimento de tratamentos endoscópicos no que concerne ao adenocarcinoma esofágico precoce ou o esôfago de Barret displásico. Estudos de terapia fotodinâmica demostraram boa eficácia, porém, mostraram-se limitados devido à sua toxidade sobre a fotossensibilidade da pele e a estenose esofágica. Ell e cols., em 2000, descreveram na Gastroenterology, sua experiência a respeito da ressecção endoscópica da mucosa esofágica em 64 pacientes com alto grau de displasia ou câncer T1. Este artigo passou a ser considerado a técnica mais refinada recomendada como padrão para o tratamento da neoplasia precoce do esôfago de Barret com lesões visíveis. Finalmente, em 2006, foi publicado na Gastroenterology, o resultado de um grupo de trabalho internacional,  denominado critérios de Praga, para documentar o comprimento endoscópico do esôfago de Barret. 
   
Esofagite Eosinofílica

O primeiro caso descrito de EEo foi publicado na Gastroenterology em 1977, por Dobbins e Behar. Tratava-se de um paciente de 51 anos de idade que sofria de asma e rinite alérgica e que também se queixava de disfagia. As biópsias esofágicas realizadas demonstraram papilas alongadas e hiperplasia da zona basal típicas da DRGE, porém, também evidenciavam uma acentuada infiltração eosinofílica no epitélio escamoso, lâmina própria e muscular da mucosa (Figura 5). Repetidas manometrias demonstraram contrações esofágicas simultâneas enquanto que a pHmetria mostrava-se normal.

Figura 5– Espécime de biópsia esofágica característica de EEo evidenciando infiltração eosinofílica da mucosa esofágica acima de 15 eosinófilos por campo de grande aumento.

Um segundo caso foi relatado por Landres na Gastroenterology em 1978, o qual era similar ao anterior, porém, cuja manometria demonstrou ser consistente com acalasia (Figura 6).


Figura 6– Estudo radiológico contrastado do esôfago evidenciando estenose esofágica.

Em 1982, Winter publicou um estudo altamente citado em Pediatria no qual associou a presença de eosinófilos intraepiteliais com uma depuração ácida anormal (Tabela 1).

Tabela 1– Sintomas mais frequentes de EEo em crianças e adultos.

Nas próximas duas décadas a presença de eosinófilos na mucosa esofágica foi amplamente vista como um biomarcador para a DRGE. A caracterização inicial da EEo como atualmente é reconhecida, foi esclarecida por Atwood e Straumann, em uma série de casos entre 1993 e 1994, porém, essa enfermidade permaneceu praticamente no esquecimento durante esta década, com exceção de um número cada vez maior de estudos de centros pediátricos de prestígio nos EUA.  

Embora o progresso inicial tenha sido lento, Kelly e cols., publicaram uma grande série de casos na Gastroenterology em 1995, introduzindo o conceito de que EEo poderia ser uma forma de Alergia Alimentar. O estudo demonstrou uma resposta dos sintomas e da histologia esofágica com a utilização de uma fórmula elementar em 10 crianças que fracassaram em responder a um tratamento clínico ou cirúrgico antirefluxo. O papel terapêutico da dieta de eliminação dos alimentos alergênicos, foi substanciado no primeiro estudo prospectivo que propôs a utilização da dieta de eliminação dos 6 alimentos, publicado por Gonçalves e cols. na Gastroenterology, em 2012. Trabalhos subsequentes têm confirmado a eficácia da dieta de eliminação, cuja utilização tem sido recomendada como tratamento primário para a EEo em adultos e crianças.       

Um dos mais influentes e altamente citados estudos no campo da EEo, trata-se de um consenso publicado na Gastroenterology por Furuta e cols., em 2007. Este artigo reuniu um painel internacional de gastroenterologistas pediátricos e de adultos, patologistas, cientistas básicos, alergistas e investigadores, para estabelecer os critérios diagnósticos da EEo. Estudos adicionais altamente influentes incluíram a pesquisa da história natural da EEo, os quais foram publicados na Gastroenterology por Straumann e cols., em 2003, e por Schoepfer e cols. em 2013, aonde identificaram a natureza crônica desta enfermidade e o prognóstico de progressão para fibroestenose grave do esôfago quando a enfermidade não é devidamente reconhecida (Figura 7).


Figura 7– Visões endoscópicas demonstrando as mais diversas alterações morfológicas do esôfago na EEo.

Desde um ponto de vista terapêutico, diversos ensaios inovadores para o tratamento medicamentoso da EEo, têm sido publicados na Gastroenterology. Dentre outros se incluem o primeiro ensaio prospectivo e o primeiro ensaio randomicamente controlado com o uso de esteroides tópicos para o tratamento da EEo realizados por Teitelbaum e Konikoff, respectivamente. Esses ensaios controlados utilizando suspensão de budesonida tem demonstrado uma eficácia indiscutível no controle da EEo

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