Alergia ao Trigo
Um
segundo transtorno bem conhecido relacionado à ingestão de glúten em crianças e
adultos é a alergia ao trigo, também identificado pela denominação de “Asma do
Padeiro”. O trigo é de fato um alérgeno alimentar bastante comum e nos
indivíduos predispostos pode induzir uma resposta alérgica tipicamente por um
fenômeno IgE mediado, uma reação de hipersensibilidade imediata. Nas crianças
pré-escolares e escolares, as reações IgE mediadas pelo trigo podem incluir
sintomas gastrointestinais, tais como: náuseas, vômitos, dor abdominal e
diarreia. Entretanto, diferentemente do que ocorre na DC o surgimento dos
sintomas é geralmente mais rápido, dentro de minutos ou horas após a ingestão
do trigo, e pode também incluir envolvimento de órgãos extra-intestinais, tais
como a pele (com sintomas de eritema, prurido, urticária) e o sistema
respiratório (com sintomas que incluem tosse, sibilos e rinorreia). Anticorpos
IgE específicos para o trigo surgem dentro dos dois primeiros anos de vida, mas
diferentemente da DC, que é um transtorno permanente, a maioria das crianças a
médio e/ou longo prazo, virão a tolerar o trigo, muito embora a alergia possa
persistir até a adolescência em uma ínfima minoria de pacientes. Para se
estabelecer o diagnóstico de alergia ao trigo é necessária a obtenção de uma
detalhada história clínica associada a investigações laboratoriais, e, em
muitos casos, é até mesmo necessária a realização de um teste de provocação
oral com o trigo.
Síndrome de Intolerância ao Trigo
A
Síndrome da Intolerância ao Trigo (SIT) também reconhecida como a
“Sensibilidade ao Glúten sem Doença Celíaca” (SGSDC) refere-se aos indivíduos
que relatam sintomas digestivos e/ou extra intestinais, os quais desaparecem
quando o trigo é eliminado da dieta. Estes indivíduos apresentam recidiva dos
sintomas quando o trigo é reintroduzido, não apresentam atrofia vilositária da
mucosa duodenal, e nos quais foram descartadas DC e AL.
Ellis
e Linaker, em 1978, publicaram o caso de uma paciente que se queixava de
diarreia e dor abdominal intermitente. A investigação laboratorial não mostrou
anormalidades à biópsia do intestino delgado, mas apesar de não ter sido
caracterizada a DC, ela foi submetida a uma dieta isenta de glúten, a qual
levou ao desaparecimento dos sintomas. Esse foi, ao que tudo indica, o primeiro
caso cientificamente reconhecido de SGSDC.
Seguindo-se
a essa observação, Cooper e cols., na Suécia, em 1988, publicaram esta síndrome
envolvendo 8 mulheres adultas, que sofriam de dor abdominal e diarreia crônica.
As investigações laboratoriais excluíram DC, porém, ainda assim, elas foram
submetidas a uma dieta isenta de glúten. As pacientes apresentaram uma melhora
clínica dramática com o uso da dieta isenta de glúten, e ao serem desafiadas
com glúten ocorreu retorno dos sintomas. Biópsias de jejuno realizadas nessas
pacientes evidenciaram pequenas, porém significantes alterações na
celularidade, que regrediram com a utilização da dieta isenta de glúten.
Nenhuma outra alteração imunológica ou clínica que sugerisse DC foi encontrada.
Desde
então, a SGSDC permaneceu no esquecimento, e, somente foi “redescoberta” em
2010, por Sapone e cols. Estes autores caracterizaram-na pela presença de
sintomas intestinais e extra intestinais relacionados com a ingestão de
alimentos contendo glúten em indivíduos que não sofriam de DC ou AT. Sapone e
cols., realizaram biópsia de intestino delgado em pacientes com SGSDC e demonstraram
mínimas alterações da mucosa jejunal (Marsh 0-1), enquanto que nos celíacos
ocorreu atrofia vilositária subtotal e hiperplasia críptica. A partir deste
novo relato da SGSDC, rapidamente um número cada vez maior de artigos passaram
a ser publicados, por inúmeros grupos independentes, confirmando que a SGSDC
deveria ser definitivamente incluída no espectro dos transtornos relacionados
ao glúten. A SGSDC é uma entidade clínica na qual os sintomas são desencadeados
pela ingestão do glúten, na ausência de anticorpos celíacos específicos e da
clássica atrofia vilositária do intestino delgado observada na DC, com condição
variável do HLA e possível positividade da primeira geração de anticorpos
antigliadina IgG (AGA) (56,4%). Por outro lado, a prevalência de IgA AGA nos
pacientes com SGSDC tem se revelado muito baixa (7,7%). É importante salientar
que os melhores marcadores sorológicos (anticorpo antitransglutaminase e
antiendomisio) para DC têm sempre se revelado negativos nos pacientes com
SGSDC.
Entretanto,
os mais diversos aspectos da epidemiologia, fisiopatologia, espectro clínico e
tratamento da SGSDC ainda permanecem obscuros. Vale ressaltar que até o
presente momento não se tem conhecimento dos mecanismos fisiopatológicos
envolvidos na gênese desta entidade e nem tampouco encontra-se disponível um
marcador bioquímico que possibilite caracterizar seu diagnóstico laboratorial.
Os esclarecimentos destes aspectos até o momento não elucidados deverão ser
alcançados através de investigações clínicas e laboratoriais utilizando
metodologia científica reconhecidamente válida, através de estudos
multicêntricos e prospectivos envolvendo a SGSDC. O diagnóstico deste
transtorno nutricional se estabelece por meio do teste de provocação que
preferentemente deve ser realizado pela técnica duplo-cego, placebo-controlada,
o que na prática clínica torna-se extremamente difícil de ser aplicada.
A
manifestação clássica da SGSDC é uma combinação de sintomas similares aos
observados na Síndrome do Intestino Irritável (SII) incluindo dor abdominal,
flatulência, alterações do hábito intestinal (diarreia ou constipação), e
manifestações sistêmicas tais como, confusão mental, cefaleia, cansaço, dores
musculares e nas articulações, dermatite, depressão e anemia. Quando os pacientes
são atendidos em uma clínica especializada, muitos deles espontaneamente
relatam uma relação causal entre a ingestão de alimentos contendo glúten e o
agravamento dos sintomas. Nas crianças, a SGSDC manifesta-se tipicamente por
meio de sintomas gastrointestinais, tais como, dor abdominal e diarreia
crônica; manifestações extra intestinais parecem ser menos frequentes nas
crianças, e nestas últimas o sintoma mais comum tem sido cansaço.
Vasquez-Roque
e cols., em 2013, demonstraram que pacientes não celíacos portadores da SII com
predominância da variante diarreia, podem desenvolver sintomas
gastrointestinais após a ingestão de glúten. Estes pacientes ao receberem uma
dieta contendo glúten apresentaram maior número de evacuações por dia,
particularmente aqueles cujo genótipo era HLA-DQ2 e/ou DQ8. A dieta contendo
glúten mostrou-se associada com um aumento da permeabilidade do intestino
delgado e uma significativa diminuição na expressão da zonula ocludens 1
da mucosa colônica. Estes efeitos foram significativamente maiores nos
pacientes HLA-DQ2 e DQ8 positivos. Por outro lado, pacientes que receberam
dieta contendo glúten versus aqueles que receberam dieta isenta de glúten, não
apresentaram alterações significativas sobre o trânsito gastrointestinal ou na
morfologia do intestino delgado. Os autores concluíram que o glúten provoca
ruptura da barreira de permeabilidade intestinal nos pacientes com SII com
diarreia, particularmente naqueles HLA-DQ2 e DQ8 positivos. As alterações na
barreira de permeabilidade intestinal permitiram oferecer explanações mecânicas
a respeito das observações de que a retirada do glúten da dieta pode provocar
alivio dos sintomas nos pacientes portadores de SII com diarreia.
Por
outro lado, Biesiekierski e cols., em 2013, investigando pacientes portadores
de SII com diarreia demonstraram que as alterações do hábito intestinal se
deviam principalmente à presença de carboidratos fermentáveis não absorvíveis
na dieta. Ao eliminar essas substâncias, porém, ainda que mantivessem ingerindo alimentos
contendo glúten ocorria um alívio dos sintomas digestivos. Esses autores
passaram a utilizar a sigla FODMAPs (fermentable oligosaccharides,
disaccharides, monossaccharides and polyols), que significa carboidratos
fermentáveis não absorvíveis, em especial os frutanos. Frutanos são polímeros
da frutose sintetizados a partir da sacarose e que ocorrem na natureza no mundo
vegetal em inúmeros alimentos comumente utilizados na dieta ocidental. Essas
substâncias não são digeridas e consequentemente não são absorvidas pelo trato
digestivo do ser humano. Alcançam o intestino grosso e aí são fermentadas pelas
bactérias da flora colônica, sendo transformadas em ácidos graxos voláteis de
cadeia média e curta (acético, butírico e propiônico) com alto poder osmótico,
bem como acarretando a produção de gases (Metano, Dióxido de Carbono e
Hidrogênio). A presença destas substâncias no lúmen intestinal provoca
flatulência, dor abdominal e diarreia, em especial nos pacientes portadores de
SII (Figura 4).
Figura
4- Representação esquemática das manifestações clínicas.
O
trigo é a maior fonte dietética de frutano, e este, além do glúten, é um
aspecto que deve ser levado em consideração como mais um fator potencial
causador de sintomas, posto que o trigo está presente em praticamente todas as
refeições tradicionais do mundo ocidental, tais como: pães, cereais, macarrão,
bolos, biscoitos e etc. Vale salientar que, além do trigo os frutanos estão
presentes em inúmeros outros alimentos de uso comum em nossas dietas, tais
como: feijão, feijão branco, grão de bico, ervilha, lentilha, banana, cebola,
alho, repolho, alho poró e etc. Por esta
razão, Biesiekierski e cols. propõem que nos pacientes portadores de SII com
diarreia e intolerantes aos frutanos seja utilizada uma dieta restritiva destes
alimentos (Figura 5).
Figura
5- Representação esquemática da má absorção de frutose.
Recentemente,
o grupo australiano liderado por Halmos e cols., em 2014, ao realizar um ensaio
clínico controlado e randomizado demonstraram que reduzindo a ingestão de
carboidratos de cadeia curta, que são de muito baixa absorção e/ou
oligossacarídeos, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis (Fermentable oligosaccharides,
monosaccharides and polyols – FODMAPS)
reduziram significativamente a intensidade dos principais sintomas nos
pacientes portadores da SII (Figura 6).
Figura
6- Paciente portadora da SIT antes e após a retirada dos FODMAPs da dieta.
A
hipótese de que a redução da ingestão dos FODMAPS
pode aliviar os sintomas digestivos nos pacientes portadores da SII baseia-se
na observação clínica de que uma proporção significativa de pacientes não
tolera a ingestão de carboidratos de cadeia curta. Estes carboidratos não são
totalmente absorvidos no intestino delgado devido a um deficiente processo de
hidrólise (lactose-lactase), excesso de frutose em relação a glicose, ou
difusão passiva (alguns monossacarídeos e os polióis). Vale ressaltar que além
destes carboidratos, os Frutanos tipo
inulina não são absorvidos no intestino delgado e sim fermentados no intestino
grosso pela flora bacteriana, e acarretam os seguintes efeitos, a saber: a) sobrecarga
osmótica; b) aumento da produção de ácidos graxos de cadeia curta, H2, CO2
e metano pela microflora colônica; c) alteração da motilidade, pois aceleram o
trânsito intestinal.
Infelizmente,
devido à falta de parâmetros diagnósticos objetivos torna-se difícil conhecer a
verdadeira prevalência da SIT. Utilizando-se critérios um tanto quanto subjetivos
admite-se que a prevalência da SIT alcança 13% no Reino Unido, 7,3% na
Austrália e 0,6% nos Estados Unidos.
Atualmente,
a inexistência de marcadores biológicos dificulta sobremaneira estabelecer os
critérios diagnósticos da SIT, muito embora como anteriormente referido a
presença de anticorpos anti-gliadina estejam presentes com maior frequência
neste grupo de pacientes do que em controles sadios, porém sem outras
alterações laboratoriais concomitantes. É importante assinalar que o
diagnóstico da SIT somente pode ser estabelecido após uma detalhada
investigação clínica e laboratorial ter sido consistente para descartar DC.
O
tratamento baseia-se fundamentalmente na eliminação do trigo da dieta, porém, a
maioria dos pacientes responde de forma altamente positiva quanto ao alívio dos
sintomas quando são submetidos a uma dieta com baixo teor dos FODMAPS (Tabela 3).
Conclusões
O
espectro dos transtornos relacionados ao “glúten” atualmente engloba a DC, a AL
e também a recém-chegada SIT.
A DC
acha-se muito distante de ser uma enfermidade estática como se pensava ser há
20 ou 30 anos. Atualmente, está se tornando um campo extremamente excitante com
novos fluxos de conhecimento, a saber: o papel da genética está sendo melhor
compreendido, fatores ambientais, em especial a microbiota, estão sendo
revelados, novas propostas de tratamento alternativo estão sendo buscadas e,
até mesmo, já há alguma luz no horizonte quanto à perspectiva de cura.
O
interesse global na SIT tem se revelado explosivo como pode ser constatado pela
pletora das publicações científicas de revisões, editoriais, e a florescente
opinião de experts, ao mesmo tempo em que há um enorme interesse na imprensa
leiga, sem precedentes, que tem causado uma maciça onda em todo o mundo
ocidental dos seguidores das dietas isentas de glúten. Apesar da existência da
SIT ser inquestionável, muito trabalho ainda deve ser trilhado para se obter um
melhor conhecimento e mais profunda compreensão científica desta entidade.
Principalmente a busca de marcadores biológicos precisa ser desvendada, para
que se possa ter um diagnóstico de certeza mais confiável em breve futuro. Estamos,
portanto, vivendo momentos de muita excitação e muito mais estará por vir!!!
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