Prof. Dr. Ulysses
Fagundes Neto
Introdução
Desde
a primeira descrição da Doença Celíaca (DC) realizada por Samuel Gee, em 1888,
e posteriormente com “a descoberta miraculosa” de que o pão é o responsável por
esta entidade clínica, em seguida à Segunda Guerra Mundial na Europa, por
Dicke, em 1950, tem havido um crescimento exponencial do conhecimento a
respeito da DC. Entretanto, quando se pensou que já se havia esgotado todo o arsenal
de conhecimentos a respeito da DC, novos desafios têm surgido com relação às suas
formas de apresentação e de manifestação. Isto porque estas expressões clínicas
têm sofrido significantes modificações ao longo dos anos, desde casos que se
apresentam com sintomas gastrointestinais floridos, desnutrição e atrofia das
vilosidades do duodeno à biópsia, como até mesmo situações cada vez mais
frequentes, cujos casos se apesentam com manifestações extra intestinais, sutis
ou sintomas leves. Conjuntamente com
essas modificações, surgiu, há alguns anos, de forma inesperada, uma nova
entidade paralela, a qual vem pouco a pouco ganhando terreno, a assim chamada
Sensibilidade ao Glúten sem Doença Celíaca (SGSDC). É praticamente consenso universal que esta é
uma denominação impropria, porque na verdade ela deve ser referida como a
Síndrome da Intolerância ao Trigo (SIT), posto que o papel do glúten em todos
os tais casos, está longe de ser demonstrado, e o possível envolvimento de um
componente imunológico associado, sugerido pelo termo “sensibilidade”, até o
presente momento, não foi encontrado. Finalmente, o trigo também pode ser um
fator agressor por meio de alergia IgE mediada, cuja ocorrência necessita ser
avaliada e descartada em casos suspeitos. Desta forma, o clínico na sua prática
diária está, portanto, sendo constantemente desafiado para a tarefa de
discriminar quais pacientes necessitam ser avaliados para uma ou para outra
dessas entidades clínicas, bem como definir qual a melhor conduta a ser
tomada.
Doença Celíaca
A DC
trata-se de uma enfermidade autoimune desencadeada pela ingestão de glúten, que
é o maior estoque proteico do trigo, centeio e cevada, em indivíduos com
predisposição genética para tal, ou seja, aqueles que apresentam o complexo
genético HLA (Antígeno de Histocompatibilidade Leucocitária) classe II com
genótipos definidos por DQ2 e DQ8, que levam à inflamação da mucosa do
intestino delgado. Vale referir que este complexo genético está presente em
cerca de 40% a 50% da população geral, mas somente 3% a 5% deste universo
desenvolve a DC.
O
glúten é um complexo proteico heterogêneo.
As frações do glúten que são tóxicas para os celíacos constituem-se em
uma mistura de proteínas solúveis em álcool denominadas gliadinas. As gliadinas
são ricas em resíduos de glutamina e prolina, as quais mesmo no intestino
humano sadio não são totalmente digeridas. Como resultado os peptídeos intactos
da gliadina permanecem no lúmen intestinal e alguma porção deles atravessa a
barreira de permeabilidade intestinal. Estes fragmentos entram em contato com a
enzima intracelular denominada transglutaminase tecidual, a qual deamida estes
fragmentos, acarretando uma modificação na sua forma e aumentando sua carga
negativa. Os peptídeos modificados são então capturados pelas moléculas de HLA
DQ2 e/ou DQ8, as quais são expressas na superfície das células apresentadoras
de antígeno, existentes na lâmina própria da mucosa do intestino delgado, e são
apresentados às células T CD4+ que desencadeiam uma cascata de reações
envolvendo ambas as imunidades, inatas e adaptativas, resultando como última etapa
a lesão da mucosa do intestino delgado.
Uma
grande variedade de apresentações clínicas tem sido descritas na DC, as quais
incluem as “típicas”, “atípicas”, “silentes” e “potenciais”. A forma típica
consiste no aparecimento de sintomas gastrointestinais enquanto que a forma
atípica é caracterizada por sintomas predominantemente extra-digestivos (Tabela
1).
A
forma silente da DC envolve pacientes assintomáticos com sorologia positiva e
inflamação da mucosa duodenal obtida por biópsia, e, finalmente, a forma
potencial da DC inclui pacientes com sorologia positiva, os quais podem ou não
apresentar sintomas, mas não mostram inflamação intestinal à biópsia.
Vale
ressaltar que a apresentação típica se mostrou como a mais prevalente no início
e meados do Século XX, porém, parece ter ocorrido uma dramática modificação a
partir dos anos 1980, com um desvio da forma clássica com sintomas predominantemente
gastrointestinais, para maiores prevalências de apresentações atípicas e
assintomáticas. Além disso, tem sido demonstrado que, em geral, as
manifestações da DC têm se tornado mais leves e o agravo do ritmo do crescimento
menos frequente. A razão para este desvio anda é incerto, mas pode ser em parte
devido ao aumento do conhecimento da DC, o que tem resultado em sua detecção mais
precocemente, e também pela realização com maior frequência de rastreamento em
indivíduos de alto risco para DC (Tabela 2).
Quanto
ao diagnóstico da DC, atualmente está universalmente recomendada a realização da
sorologia do anticorpo anti-transglutaminase IgA (aTG) e a determinação da IgA
sérica como primeira linha de rastreamento laboratorial, posto que esta enzima
é altamente sensível. A determinação da IgA sérica torna-se necessária para
garantir que o paciente é capaz de produzir a aTGIgA, posto que pacientes
celíacos apresentam taxas mais elevadas de deficiência de IgA sérica do que a
população em geral (2%) e, portanto, poderão apresentar resultados falsamente
negativos para a determinação da aTGIgA. Caso esta circunstância ocorra deve-se
determinar a aTGIgG e a DGPIgG, posto que ambos anticorpos podem ser marcadores
úteis para a DC. Finalmente, para a certeza diagnóstica impõem-se a realização
da biópsia do intestino delgado, preferentemente por obtenção de fragmentos ao
nível do bulbo duodenal, por meio da Endoscopia Digestiva Alta (Figuras 1 e 2).
Figura
1- Lesão característica da DC: atrofia vilositária subtotal, transformação
culboidal dos enterócitos e hipertrofia das glândulas crípticas.
Figura
2- Aspecto morfológico da mucosa do intestino delgado normal: vilosidades
digitiformes, enterócitos cilíndricos com núcleo em posição basal e glândulas
crípticas normais. Relação vilosidade/cripta 5:1.
As
lesões características da DC são classificadas de acordo com os critérios propostos
por Marsh, como está demonstrado na representação esquemática abaixo (Figura 3).
Figura
3- Representação esquemática dos critérios de Marsh.
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