quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Doença Celíaca, Alergia ao Trigo e Síndrome da Intolerância ao Trigo (parte 1)

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

Introdução

Desde a primeira descrição da Doença Celíaca (DC) realizada por Samuel Gee, em 1888, e posteriormente com “a descoberta miraculosa” de que o pão é o responsável por esta entidade clínica, em seguida à Segunda Guerra Mundial na Europa, por Dicke, em 1950, tem havido um crescimento exponencial do conhecimento a respeito da DC. Entretanto, quando se pensou que já se havia esgotado todo o arsenal de conhecimentos a respeito da DC, novos desafios têm surgido com relação às suas formas de apresentação e de manifestação. Isto porque estas expressões clínicas têm sofrido significantes modificações ao longo dos anos, desde casos que se apresentam com sintomas gastrointestinais floridos, desnutrição e atrofia das vilosidades do duodeno à biópsia, como até mesmo situações cada vez mais frequentes, cujos casos se apesentam com manifestações extra intestinais, sutis ou sintomas leves.  Conjuntamente com essas modificações, surgiu, há alguns anos, de forma inesperada, uma nova entidade paralela, a qual vem pouco a pouco ganhando terreno, a assim chamada Sensibilidade ao Glúten sem Doença Celíaca (SGSDC).  É praticamente consenso universal que esta é uma denominação impropria, porque na verdade ela deve ser referida como a Síndrome da Intolerância ao Trigo (SIT), posto que o papel do glúten em todos os tais casos, está longe de ser demonstrado, e o possível envolvimento de um componente imunológico associado, sugerido pelo termo “sensibilidade”, até o presente momento, não foi encontrado. Finalmente, o trigo também pode ser um fator agressor por meio de alergia IgE mediada, cuja ocorrência necessita ser avaliada e descartada em casos suspeitos. Desta forma, o clínico na sua prática diária está, portanto, sendo constantemente desafiado para a tarefa de discriminar quais pacientes necessitam ser avaliados para uma ou para outra dessas entidades clínicas, bem como definir qual a melhor conduta a ser tomada. 

Doença Celíaca

A DC trata-se de uma enfermidade autoimune desencadeada pela ingestão de glúten, que é o maior estoque proteico do trigo, centeio e cevada, em indivíduos com predisposição genética para tal, ou seja, aqueles que apresentam o complexo genético HLA (Antígeno de Histocompatibilidade Leucocitária) classe II com genótipos definidos por DQ2 e DQ8, que levam à inflamação da mucosa do intestino delgado. Vale referir que este complexo genético está presente em cerca de 40% a 50% da população geral, mas somente 3% a 5% deste universo desenvolve a DC.

O glúten é um complexo proteico heterogêneo.  As frações do glúten que são tóxicas para os celíacos constituem-se em uma mistura de proteínas solúveis em álcool denominadas gliadinas. As gliadinas são ricas em resíduos de glutamina e prolina, as quais mesmo no intestino humano sadio não são totalmente digeridas. Como resultado os peptídeos intactos da gliadina permanecem no lúmen intestinal e alguma porção deles atravessa a barreira de permeabilidade intestinal. Estes fragmentos entram em contato com a enzima intracelular denominada transglutaminase tecidual, a qual deamida estes fragmentos, acarretando uma modificação na sua forma e aumentando sua carga negativa. Os peptídeos modificados são então capturados pelas moléculas de HLA DQ2 e/ou DQ8, as quais são expressas na superfície das células apresentadoras de antígeno, existentes na lâmina própria da mucosa do intestino delgado, e são apresentados às células T CD4+ que desencadeiam uma cascata de reações envolvendo ambas as imunidades, inatas e adaptativas, resultando como última etapa a lesão da mucosa do intestino delgado.

Uma grande variedade de apresentações clínicas tem sido descritas na DC, as quais incluem as “típicas”, “atípicas”, “silentes” e “potenciais”. A forma típica consiste no aparecimento de sintomas gastrointestinais enquanto que a forma atípica é caracterizada por sintomas predominantemente extra-digestivos (Tabela 1).




A forma silente da DC envolve pacientes assintomáticos com sorologia positiva e inflamação da mucosa duodenal obtida por biópsia, e, finalmente, a forma potencial da DC inclui pacientes com sorologia positiva, os quais podem ou não apresentar sintomas, mas não mostram inflamação intestinal à biópsia.

Vale ressaltar que a apresentação típica se mostrou como a mais prevalente no início e meados do Século XX, porém, parece ter ocorrido uma dramática modificação a partir dos anos 1980, com um desvio da forma clássica com sintomas predominantemente gastrointestinais, para maiores prevalências de apresentações atípicas e assintomáticas. Além disso, tem sido demonstrado que, em geral, as manifestações da DC têm se tornado mais leves e o agravo do ritmo do crescimento menos frequente. A razão para este desvio anda é incerto, mas pode ser em parte devido ao aumento do conhecimento da DC, o que tem resultado em sua detecção mais precocemente, e também pela realização com maior frequência de rastreamento em indivíduos de alto risco para DC (Tabela 2).


Quanto ao diagnóstico da DC, atualmente está universalmente recomendada a realização da sorologia do anticorpo anti-transglutaminase IgA (aTG) e a determinação da IgA sérica como primeira linha de rastreamento laboratorial, posto que esta enzima é altamente sensível. A determinação da IgA sérica torna-se necessária para garantir que o paciente é capaz de produzir a aTGIgA, posto que pacientes celíacos apresentam taxas mais elevadas de deficiência de IgA sérica do que a população em geral (2%) e, portanto, poderão apresentar resultados falsamente negativos para a determinação da aTGIgA. Caso esta circunstância ocorra deve-se determinar a aTGIgG e a DGPIgG, posto que ambos anticorpos podem ser marcadores úteis para a DC. Finalmente, para a certeza diagnóstica impõem-se a realização da biópsia do intestino delgado, preferentemente por obtenção de fragmentos ao nível do bulbo duodenal, por meio da Endoscopia Digestiva Alta (Figuras 1 e 2).

Figura 1- Lesão característica da DC: atrofia vilositária subtotal, transformação culboidal dos enterócitos e hipertrofia das glândulas crípticas.

Figura 2- Aspecto morfológico da mucosa do intestino delgado normal: vilosidades digitiformes, enterócitos cilíndricos com núcleo em posição basal e glândulas crípticas normais. Relação vilosidade/cripta 5:1.

As lesões características da DC são classificadas de acordo com os critérios propostos por Marsh, como está demonstrado na representação esquemática abaixo (Figura 3).

Figura 3- Representação esquemática dos critérios de Marsh.


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