Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo
(I-GASTROPED)
Manifestações
Clínicas
A DC pode afetar qualquer grupo etário e
determinar uma multiplicidade de manifestações clínicas, isto é, apresenta um
amplo espectro de sintomas que podem ser tanto digestivos quanto
extra-digestivos, circunstância esta que provavelmente possa explicar um
retardo no diagnóstico.
As
formas de apresentação da DC são: 1)
Clássica: neste caso predominam as
manifestações digestivas e a consequente síndrome de má absorção; 2) Atípica ou Extra-digestiva: atualmente
é a forma mais habitual de apresentação; 3) Silente ou Assintomática.
A)
Clássica
A
forma clássica de apresentação da DC
nas crianças consiste no surgimento de sinais e sintomas do trato digestivo que
se iniciam entre os 6 e 24 meses de vida, depois da introdução do glúten na
dieta. Nos quadros típicos os lactentes e pré-escolares apresentam queixa de
diarreia crônica, anorexia, distensão abdominal, dor abdominal, ganho ponderal
insuficiente ou mais frequentemente perda de peso, parada do ritmo de
crescimento e vômitos (Figuras 14-15-16-17-18-19).
Figura 14- Paciente com forma
clássica da DC caracterizada por
diarreia crônica, hipotrofia da musculatura dos glúteos, distensão abdominal e
extrema irritabilidade.
Figura
15- Aspecto clínico de uma paciente com DC
e abaixo seu gráfico de crescimento.
Figura
16- Gráfico da paciente acima com DC
evidenciando parada do ritmo de crescimento e perda de peso.
Figura
17- Fragmento de biópsia da mucosa do intestino delgado evidenciando atrofia
vilositária total, hiperplasia das criptas, e transformação cuboidal dos
enterócitos.
Figura
18- Gráfico de crescimento da paciente com DC mostrando total recuperação do
ganho de peso e do crescimento, bem como do aspecto clínico.
Figura 19- Fragmento de biópsia do intestino delgado
evidenciando vilosidades digitiformes e enterócitos cilíndricos. Relação
vilosidade/cripta 4 a 5:1.
Desnutrição
grave e até mesmo caquexia (Figura 20), podem ocorrer nos casos em que o
diagnóstico é muito retardado. Alterações do comportamento, em especial
irritabilidade intensa, costumam também estar presentes.
Figura
20- Pacientes com DC por ocasião do
diagnóstico em franco estado de caquexia.
A forma
Clássica de apresentação passou a
ser considerada como “a parte visível do iceberg da DC”, tamanho o grau de variabilidade das manifestações clínicas
desta enfermidade. É importante assinalar que nas crianças maiores, escolares e
adolescentes, as manifestações clínicas costumam ser mais sutis, o que pode ser
um fator de retardo no diagnóstico. Os sintomas digestivos podem incluir dor
abdominal, diarreia, e até mesmo constipação, flatulência e excessiva produção
de gás. Cerca de 2 a
8% dos escolares e adolescentes geralmente apresentam baixa estatura e retardo
constitucional na puberdade. Ter o conhecimento da curva de crescimento
pondero-estatural é uma informação da mais alta valia para se poder verificar
se ocorreu parada do ritmo de crescimento ou mesmo diminuição da velocidade do
crescimento, a qual resulta em uma horizontalização na curva do crescimento.
Atualmente,
raros são os pacientes que apresentam as manifestações daquilo que se
convencionou denominar de “crise celíaca”, a qual era vista com maior frequência
em passado não muito remoto. A “crise celíaca” se caracteriza por diarreia
aquosa explosiva, distensão abdominal importante, hipotensão, letargia e
desidratação com grave associação de distúrbios eletrolíticos, em especial
hipopotassemia. Este tipo de manifestação, de instalação aguda, coloca o
paciente em alto risco de vida e tem sido responsável pela causa direta de
morte desta enfermidade.
B)
Atípica
ou Extra-Digestivas
Neste
tipo de apresentação da DC os
sintomas digestivos são escassos ou ausentes com predomínio das manifestações
extra-digestivas, a saber: anemia, baixa estatura, anorexia, osteoporose,
alterações do esmalte dentário, alopecia, epilepsia, atraso da puberdade,
constipação.
Na
Tabela 1, abaixo, estão discriminadas as principais manifestações extra-digestivas
da DC
A) Manifestações que apresentam grande
ou moderada evidência de DC
|
B) Manifestações que apresentam
evidência menos intensa
|
Dermatite
herpetiforme
Hipoplasia
do esmalte dentário (dentição definitiva)
Osteopenia/Osteoporose
Baixa
estatura
Puberdade
retardada
Anemia
ferropriva refratária a tratamento oral com ferro
Constipação
|
Hepatite
Artrite
Epilepsia
com calcificações occipitais
|
Na
Tabela 2, abaixo, estão discriminadas associações que apresentam prevalência
aumentada com DC
Diabete tipo 1
Tireoidite
autoimune
Síndrome
de Down
Síndrome
de Turner
Síndrome
de Williams
Deficiência
seletiva de IgA
Parentesco de primeiro grau
Há
fortes evidências de que a Dermatite
Herpetiforme representa a manifestação dermatológica da DC (Figura 21), posto que a maioria
destes pacientes também apresenta concomitantemente alterações morfológicas da
mucosa intestinal compatíveis com a DC,
mesmo na ausência de manifestações gastrointestinais. Tanto as lesões de pele
quanto a morfologia da mucosa intestinal são reversíveis com a utilização de
uma dieta isenta de glúten. Raramente ocorre durante a infância e tem sido
descrita quase que exclusivamente em adolescentes e adultos.
Figura
21- Lesões vesiculosas típicas de Dermatite herpetiforme no tronco de paciente
adulto.
Defeito do Esmalte Dentário
envolvendo a dentição definitiva tem sido descrito em cerca de 20% a 70% das
crianças com DC, podendo mesmo ser a
primeira manifestação da enfermidade (Figura 22); portanto, nestes casos, a
suspeita diagnóstica de DC deve ser primariamente
levantada pelo dentista.
Figura
22- Alterações do esmalte dentário em paciente com DC.
Artrite
envolvendo o esqueleto axial e periférico tem sido relatada em até 25% dos
casos de DC; a artrite tem sido
descrita como aguda e não erosiva que geralmente cede com a introdução de dieta
isenta de glúten.
Osteoporose e
diminuição da densidade mineral óssea têm sido relatadas em pacientes com DC não tratada, as quais se revertem
com o uso de dieta isenta de glúten.
Baixa estatura
pode ser uma das formas de apresentação da DC,
tendo sido identificada em 8% a 10% dos pacientes.
Anemia por deficiência de ferro,
refratária ao tratamento por via oral, é a causa mais frequente de manifestação
não digestiva da DC; cerca de 8% a
11% das causas inexplicáveis de anemia ferropriva associadas ou não à deficiência
de ácido fólico se devem a DC.
Afecções neurológicas e psiquiátricas
incluindo depressão, ansiedade, irritabilidade, neuropatia periférica, ataxia
cerebelar, enxaqueca e epilepsia devido a calcificações intracranianas (Figura 23)
têm sido descritas em associação à DC.
Essa série de problemas neurológicos têm sido atribuídos à DC em adultos e em um menor número nas crianças. A DC pode causar calcificações occipitais
e epilepsia de difícil controle. Estes pacientes, em geral, costumam ser
resistentes ao tratamento com anti-convulsivantes, mas podem se beneficiar com
a introdução de uma dieta isenta de glúten depois do começo das crises
convulsivas.
A
associação com ataxia cerebelar está bastante reconhecida em adultos levando à
criação do termo “ataxia glúten induzida”.
Figura
23- Imagem de calcificações occipitais características da DC.
C)
Silente
ou Assintomática
Neste
caso os pacientes não costumam apresentar quaisquer sintomas, porém, apresentam
sorologia positiva e atrofia vilositária na mucosa duodenal. Nesta
circunstância, a DC é detectada em
estudos populacionais, em familiares de pacientes portadores de DC, em indivíduos de alto risco para DC, ou ainda, naqueles pacientes que
foram submetidos à endoscopia digestiva alta por motivos não relacionados à DC, mas que vieram a apresentar atrofia
vilositária da mucosa duodenal.
Os Marcadores Sorológicos: os testes
laboratoriais que permitiram desvendar a parte não visível do “iceberg” da
Doença Celíaca
Embora
a biópsia do intestino delgado ainda seja considerada absolutamente necessária
para a confirmação diagnóstica da DC,
a introdução dos testes sorológicos, a partir da década de 1980, trouxe uma
enorme contribuição para identificar quais indivíduos devem ser submetidos a
este procedimento diagnóstico. Além disso, esses testes passaram também a ser
utilizados para rastreamentos populacionais o que possibilitou desvendar o que
se convencionou designar como a porção submersa do “iceberg” da DC. A partir da investigação pioneira
conduzida por Catassi e cols., em 1996, acima descrita em maiores detalhes, inúmeras
outras investigações epidemiológicas populacionais passaram a ser realizadas
nos mais diversos países, inclusive no Brasil, as quais demonstraram cabalmente
que a DC está longe de ser uma
enfermidade rara, mas sim, muito ao contrário, trata-se de um problema de saúde
pública universal (Tabela 3).
Tabela
3- Prevalência da DC em diversos
países, inclusive no Brasil.
Os
testes laboratoriais comercialmente disponíveis incluem os anticorpos
anti-gliadina IgA e IgG (AGA IgA e AGA IgG), anti-gliadina IgA e IgG deamidada,
anti-reticulina IgA (ARA), anti-endomíseo IgA (EMA) e anti-transglutaminase
tecidual IgA e IgG (ATTG).
A
sensibilidade e a especificidade destes testes sorológicos estão discriminadas
na Tabela 4.
Tabela
4- Sensibilidade e Especificidade dos principais marcadores sorológicos para DC.
Dentre
os vários marcadores sorológicos disponíveis atualmente, os mais utilizados são
o EMA e o ATTG, porque apresentam as mais altas taxas de sensibilidade e
especificidade.
Estudos
populacionais com doadores de sangue têm-se constituído em uma casuística muito
frequentemente utilizada pelos pesquisadores em virtude da facilidade de se
utilizar o sangue estocado. Ricardo Palmero Oliveira, pesquisador da Disciplina
de Gastropediatria da Escola Paulista de Medicina da UNIFESP e colaboradores
(European Journal of Gastroenterology and Hepatology 19: 43-9, 2007),
realizaram um estudo com 3.000 candidatos a doadores de sangue para determinar
a prevalência da DC em São Paulo com o emprego
do ATTG e confirmação diagnóstica pela biópsia do intestino delgado. O teste
sorológico resultou negativo em 95,4% (2861/3000), mostrou-se fracamente
positivo em 3,1% (94/3000) e positivo em 1,5% (45/3000) dos indivíduos. Dentre
os 94 candidatos a doadores de sangue que apresentaram dosagem do ATTG
fracamente positivo 91 eram assintomáticos, 1 apresentava queixa de constipação
e dor abdominal e 2 queixavam-se de dor abdominal. Dentre os 45 candidatos a
doadores de sangue que apresentaram dosagem do ATTG positivo 46,7% (21/45)
concordaram em realizar a biópsia do intestino delgado. Na Tabela 5 estão
discriminados os aspectos clínicos e laboratoriais relevantes dos indivíduos
que realizaram a biópsia do intestino delgado.
Tabela
5- Aspectos clínicos e laboratoriais relevantes dos indivíduos que realizaram a
biópsia do intestino delgado.
Na
Tabela 6 estão discriminados os aspectos clínicos e laboratoriais relevantes
dos indivíduos que não realizaram a biópsia do intestino delgado.
Tabela
6- Aspectos clínicos e laboratoriais relevantes dos indivíduos que não
realizaram a biópsia do intestino delgado.
Na
Tabela 7 estão discriminadas as manifestações clínicas que podem estar
associadas à DC, mostrando que
indivíduos da população geral que apresentam sintomas compatíveis com DC têm maior probabilidade de serem
portadores da enfermidade.
Tabela
7- Manifestações clínicas associadas à DC.
Dentre
os indivíduos que se submeteram à biópsia do intestino delgado confirmou-se o
diagnóstico de DC em 66,7% (14/21)
deles, ou seja, a prevalência da DC
nesta população revelou ser de 1:214 indivíduos. Por outro lado, caso todos os
indivíduos que apresentaram dosagem elevada do ATTG e que se recusaram a
realizar a biópsia do intestino delgado (24/45), tivessem também se submetido
ao referido procedimento, e considerando-se que o ATTG revelou-se falso
positivo em 33,3% dos indivíduos que se submeteram à biópsia do intestino
delgado e que confirmaram ser portadores da DC, a prevalência seria maior, porque se poderia especular que
66,7% (16/24) dos indivíduos que não realizaram a biópsia de intestino delgado
seriam também portadores de DC.
Neste caso, ao acrescentarmos mais 16 indivíduos aos 14 com diagnóstico de DC confirmado, totalizaríamos 30 dos
3000 candidatos a doadores de sangue no grupo com DC. Desta forma, então, a prevalência da DC em São Paulo passaria a ser de 1:100 indivíduos, portanto, tão
elevada quanto à verificada em outros países, em especial na comunidade europeia.