Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo
(I-GASTROPED)
Histórico (Continuação)
É
importante assinalar que após esta primeira descrição da DC, muitos outros casos até então considerados pacientes portadores
de desnutrição por verminose e/ou problemas de ordem socioeconômica vieram
também a ser diagnosticados. Atualmente sabe-se que a prevalência da DC no nosso meio é tão elevada quanto
aquela descrita nos outros países do mundo ocidental.
No
final dos anos 1980, um grande estudo multicêntrico realizado na Itália,
levando-se em consideração estritos critérios clínicos e laboratoriais pode-se
estabelecer com 95% de segurança que o diagnóstico de DC poderia ser estabelecido com apenas 1 biópsia de intestino
delgado. Este achado conduziu a ESPGHAN à publicação, em 1990, de novos
critérios de conduta para o diagnóstico da DC,
utilizando os marcadores sorológicos positivos e apenas 1 biópsia de intestino
delgado.
No
início dos anos 2000 a DC passou a
ser universalmente considerada um exemplo de uma enfermidade autoimune
associada ao complexo genético HLA DQ2/DQ8 e o auto anticorpo até então
desconhecido revelou-se ser o anticorpo anti-transglutaminase. Nas figuras
abaixo estão representadas a molécula do HLA, a predisposição genética e sua
frequência na população geral.
Epidemiologia
No
passado, há cerca de 40 anos a DC
era considerada uma enfermidade rara que afetava majoritariamente indivíduos de
origem europeia que usualmente se caracteriza pelo aparecimento nos dois
primeiros anos de vida. Naquela ocasião o diagnóstico baseava-se inteiramente
no surgimento de sintomas típicos de má absorção, com diarreia crônica e perda
de peso, cuja comprovação ocorria através da biópsia do intestino delgado. Entretanto,
mais recentemente, a partir da década de 1980, com a disponibilidade dos
marcadores sorológicos, o rastreamento da DC
pode ser inicialmente realizado utilizando-se estes testes, os quais apresentam
elevadas taxas de sensibilidade e especificidade, tais como os anticorpos
anti-endomíseo e o anticorpo anti-transglutaminase tecidual da classe IgA. Com
o advento desses métodos rápidos de rastreamento sorológico ocorreu um
significativo aumento no conhecimento da DC,
o que possibilitou, por sua vez, também, que se estabelecesse o diagnóstico de DC em um número crescente de
indivíduos, até então, aparentemente assintomáticos. Estes avanços diagnósticos
possibilitaram tornar conhecidas inúmeras outras manifestações clínicas da DC, evidenciando outras variedades
sintomáticas, e não mais apenas aquelas relacionadas com o trato digestivo. A DC tem sido descrita também associada
com outras múltiplas enfermidades autoimunes, como por exemplo, tireoidite
autoimune e diabetes tipo I. Há também fortes evidências de uma ocorrência
aumentada de DC em crianças
portadoras de dermatite herpetiforme, defeitos no esmalte dentário, deficiência
de IgA, síndrome de Down, síndrome de Turner e nos familiares de primeiro grau
dos pacientes portadores de DC. Uma
série de estudos tem demonstrado que a prevalência da DC pode estar presente também entre 5 a 13% dos irmãos dos
pacientes. Tomando-se por base inúmeros estudos realizados na Europa e nos
Estados Unidos, a prevalência da DC
entre as crianças de dois a quinze anos na população geral é de 3 a 13 para cada 1.000
crianças, ou aproximadamente 1:300 a 1:80 crianças (Figura 11).
Figura
11- Prevalência da DC em países da
Europa e nos Estados Unidos.
No
Brasil, contrariamente às previsões do passado, a prevalência da DC,
à semelhança dos países da Europa e dos Estados Unidos, embora com variação na
dependência geográfica dos estudos realizados, também se configura com níveis
compatíveis como um problema de saúde pública a ser devidamente enfatizado
(Figura 12).
Figura
12- Prevalência da DC em algumas
regiões brasileiras.
Um
dos mais importantes estudos de rastreamento populacional foi realizado por um
grupo de pesquisadores liderados por Carlo Catassi, em 1996, na Itália, para
comprovar que a prevalência da DC
representa um importante problema de saúde pública, cujo resumo pode ser lido a
seguir:
Objetivos:
Estudos
recentes sugerem que a DC é um dos
transtornos crônicos mais comuns na Itália. Os objetivos deste estudo
multicêntrico foram: a) estabelecer a prevalência da DC no âmbito nacional; b) caracterizar o espectro clínico da DC na Itália.
Pacientes
e Métodos:
15
centros rastrearam 17.201 estudantes com idades que variaram de 6 a 15 anos
(68,6%) da população elegível por meio da determinação do anticorpo
antigliadina (AGA) IgG e IgA; 1289 (7,5%) estudantes resultaram positivos para
IgG e/ou IgA-AGA, e foram convocados para um segundo nível de investigação; 111
deles apresentaram critérios para a realização da biópsia do intestino delgado:
IgA-AGA positivo e/ou anticorpo antiendomisio (AEA) positivo ou IgG-AGA
positivo com deficiência de IgA.
Resultados:
A
biópsia do intestino delgado foi realizada em 98 dos 111 estudantes. DC foi diagnosticada em 82 indivíduos
(75 comprovados por biópsias, e 7 não submetidos à biópsia mas com associação
AGA e AEA positivos). A maioria dos pacientes com DC detectados pelo rastreamento apresentavam baixo grau de
intensidade da enfermidade associados com uma diminuição da qualidade de vida
biopsíquica. A prevalência global de DC
foi em 5,44 x 1.000 (95% IC 4,57-6,44), 1:184 indivíduos. A relação entre os
casos conhecidos de DC para os não
diagnosticados foi de 1:7.
Conclusões
Estes
achados confirmam que, na Itália, a DC
é uma das mais frequentes enfermidades crônicas evidenciando um vasto e
heterogênico espectro clínico. Muitos casos de DC permanecem não diagnosticados ao menos que sejam ativamente
pesquisados (Figura 13).
Figura
13- Imagem simbólica da prevalência da DC
como a parte invisível do iceberg.
Este
estudo pioneiro serviu de modelo para que inúmeras outras pesquisas
epidemiológicas populacionais passassem a ser realizadas nos mais diferentes países,
inclusive no Brasil. Estas novas pesquisas têm demonstrado cabalmente que a DC está longe de ser uma enfermidade
rara, mas sim, muito ao contrário, tratar-se de um problema de saúde pública
universal. As apresentações Clássicas da DC têm se tornado cada vez menos frequentemente relatadas em todas
as regiões do globo terrestre. As formas Atípicas e Silentes têm
representado a maior prevalência da DC
nestes últimos anos, desnudando, portanto, os 2/3 da parte submersa do
“iceberg” celíaco. Esforços devem continuar a serem dedicados para trazer à luz
esta maior porção da DC, que afeta
igualmente crianças e adultos.
Em resumo, a partir da disponibilidade
dos marcadores sorológicos altamente sensíveis e específicos, inicialmente com
os anticorpos antigliadina, e posteriormente com os anticorpos antiendomiseo e
antitransglutaminase pode-se afirmar
que:
1) a prevalência da DC é muito maior do que aquela previamente imaginada, devido
principalmente a alta taxa de casos clinicamente atípicos ou silentes;
2) a
DC apresenta uma distribuição
universal no mundo ocidental em virtude do consumo disseminado de glúten e da
predisposição genética relacionada ao complexo genético HLA DQ2/DQ8;
3) a
DC é um transtorno digestivo
frequente com prevalência aproximada de 1:100 indivíduos de origem caucasiana,
tanto em crianças como em adultos, e que pode se manifestar por diferentes
formas clínicas de expressão.
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