terça-feira, 20 de junho de 2017

Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se revelou de alta prevalência no mundo ocidental (Parte 2)

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo

(I-GASTROPED)

Histórico (Continuação)

É importante assinalar que após esta primeira descrição da DC, muitos outros casos até então considerados pacientes portadores de desnutrição por verminose e/ou problemas de ordem socioeconômica vieram também a ser diagnosticados. Atualmente sabe-se que a prevalência da DC no nosso meio é tão elevada quanto aquela descrita nos outros países do mundo ocidental. 

No final dos anos 1980, um grande estudo multicêntrico realizado na Itália, levando-se em consideração estritos critérios clínicos e laboratoriais pode-se estabelecer com 95% de segurança que o diagnóstico de DC poderia ser estabelecido com apenas 1 biópsia de intestino delgado. Este achado conduziu a ESPGHAN à publicação, em 1990, de novos critérios de conduta para o diagnóstico da DC, utilizando os marcadores sorológicos positivos e apenas 1 biópsia de intestino delgado.   

No início dos anos 2000 a DC passou a ser universalmente considerada um exemplo de uma enfermidade autoimune associada ao complexo genético HLA DQ2/DQ8 e o auto anticorpo até então desconhecido revelou-se ser o anticorpo anti-transglutaminase. Nas figuras abaixo estão representadas a molécula do HLA, a predisposição genética e sua frequência na população geral.







Epidemiologia

No passado, há cerca de 40 anos a DC era considerada uma enfermidade rara que afetava majoritariamente indivíduos de origem europeia que usualmente se caracteriza pelo aparecimento nos dois primeiros anos de vida. Naquela ocasião o diagnóstico baseava-se inteiramente no surgimento de sintomas típicos de má absorção, com diarreia crônica e perda de peso, cuja comprovação ocorria através da biópsia do intestino delgado. Entretanto, mais recentemente, a partir da década de 1980, com a disponibilidade dos marcadores sorológicos, o rastreamento da DC pode ser inicialmente realizado utilizando-se estes testes, os quais apresentam elevadas taxas de sensibilidade e especificidade, tais como os anticorpos anti-endomíseo e o anticorpo anti-transglutaminase tecidual da classe IgA. Com o advento desses métodos rápidos de rastreamento sorológico ocorreu um significativo aumento no conhecimento da DC, o que possibilitou, por sua vez, também, que se estabelecesse o diagnóstico de DC em um número crescente de indivíduos, até então, aparentemente assintomáticos. Estes avanços diagnósticos possibilitaram tornar conhecidas inúmeras outras manifestações clínicas da DC, evidenciando outras variedades sintomáticas, e não mais apenas aquelas relacionadas com o trato digestivo. A DC tem sido descrita também associada com outras múltiplas enfermidades autoimunes, como por exemplo, tireoidite autoimune e diabetes tipo I. Há também fortes evidências de uma ocorrência aumentada de DC em crianças portadoras de dermatite herpetiforme, defeitos no esmalte dentário, deficiência de IgA, síndrome de Down, síndrome de Turner e nos familiares de primeiro grau dos pacientes portadores de DC. Uma série de estudos tem demonstrado que a prevalência da DC pode estar presente também entre 5 a 13% dos irmãos dos pacientes. Tomando-se por base inúmeros estudos realizados na Europa e nos Estados Unidos, a prevalência da DC entre as crianças de dois a quinze anos na população geral é de 3 a 13 para cada 1.000 crianças, ou aproximadamente 1:300 a 1:80 crianças (Figura 11).


Figura 11- Prevalência da DC em países da Europa e nos Estados Unidos.

No Brasil, contrariamente às previsões do passado, a prevalência da  DC, à semelhança dos países da Europa e dos Estados Unidos, embora com variação na dependência geográfica dos estudos realizados, também se configura com níveis compatíveis como um problema de saúde pública a ser devidamente enfatizado (Figura 12).


Figura 12- Prevalência da DC em algumas regiões brasileiras.

Um dos mais importantes estudos de rastreamento populacional foi realizado por um grupo de pesquisadores liderados por Carlo Catassi, em 1996, na Itália, para comprovar que a prevalência da DC representa um importante problema de saúde pública, cujo resumo pode ser lido a seguir:



Objetivos:

Estudos recentes sugerem que a DC é um dos transtornos crônicos mais comuns na Itália. Os objetivos deste estudo multicêntrico foram: a) estabelecer a prevalência da DC no âmbito nacional; b) caracterizar o espectro clínico da DC na Itália.

Pacientes e Métodos:

15 centros rastrearam 17.201 estudantes com idades que variaram de 6 a 15 anos (68,6%) da população elegível por meio da determinação do anticorpo antigliadina (AGA) IgG e IgA; 1289 (7,5%) estudantes resultaram positivos para IgG e/ou IgA-AGA, e foram convocados para um segundo nível de investigação; 111 deles apresentaram critérios para a realização da biópsia do intestino delgado: IgA-AGA positivo e/ou anticorpo antiendomisio (AEA) positivo ou IgG-AGA positivo com deficiência de IgA.

Resultados:

A biópsia do intestino delgado foi realizada em 98 dos 111 estudantes. DC foi diagnosticada em 82 indivíduos (75 comprovados por biópsias, e 7 não submetidos à biópsia mas com associação AGA e AEA positivos). A maioria dos pacientes com DC detectados pelo rastreamento apresentavam baixo grau de intensidade da enfermidade associados com uma diminuição da qualidade de vida biopsíquica. A prevalência global de DC foi em 5,44 x 1.000 (95% IC 4,57-6,44), 1:184 indivíduos. A relação entre os casos conhecidos de DC para os não diagnosticados foi de 1:7.

Conclusões

Estes achados confirmam que, na Itália, a DC é uma das mais frequentes enfermidades crônicas evidenciando um vasto e heterogênico espectro clínico. Muitos casos de DC permanecem não diagnosticados ao menos que sejam ativamente pesquisados (Figura 13). 


Figura 13- Imagem simbólica da prevalência da DC como a parte invisível do iceberg.

Este estudo pioneiro serviu de modelo para que inúmeras outras pesquisas epidemiológicas populacionais passassem a ser realizadas nos mais diferentes países, inclusive no Brasil. Estas novas pesquisas têm demonstrado cabalmente que a DC está longe de ser uma enfermidade rara, mas sim, muito ao contrário, tratar-se de um problema de saúde pública universal. As apresentações Clássicas da DC têm se tornado cada vez menos frequentemente relatadas em todas as regiões do globo terrestre. As formas Atípicas e Silentes têm representado a maior prevalência da DC nestes últimos anos, desnudando, portanto, os 2/3 da parte submersa do “iceberg” celíaco. Esforços devem continuar a serem dedicados para trazer à luz esta maior porção da DC, que afeta igualmente crianças e adultos.  

Em resumo, a partir da disponibilidade dos marcadores sorológicos altamente sensíveis e específicos, inicialmente com os anticorpos antigliadina, e posteriormente com os anticorpos antiendomiseo e antitransglutaminase pode-se afirmar que:

 1) a prevalência da DC é muito maior do que aquela previamente imaginada, devido principalmente a alta taxa de casos clinicamente atípicos ou silentes;

2) a DC apresenta uma distribuição universal no mundo ocidental em virtude do consumo disseminado de glúten e da predisposição genética relacionada ao complexo genético HLA DQ2/DQ8;

3) a DC é um transtorno digestivo frequente com prevalência aproximada de 1:100 indivíduos de origem caucasiana, tanto em crianças como em adultos, e que pode se manifestar por diferentes formas clínicas de expressão.

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