quinta-feira, 8 de junho de 2017

Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se revelou de alta prevalência no mundo ocidental (Parte 1)

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo

(I-GASTROPED)

A Doença Celíaca (DC) é uma enfermidade sistêmica autoimune decorrente da intolerância permanente ao glúten da dieta contido no trigo, centeio e cevada. A DC pode surgir em qualquer momento da vida nos indivíduos geneticamente susceptíveis que têm por hábito alimentar o consumo dos cereais que contém glúten. Trata-se de uma enfermidade de alta prevalência no mundo ocidental afetando aproximadamente 1 em cada 100 indivíduos, cujos sintomas apresentam um elevado grau de variabilidade.

Esta enfermidade apresenta uma característica peculiar, porque, para ser desencadeada associa um fator ambiental, o glúten, a outro genético, o complexo HLA DQ2/DQ8. 

Fator ambiental (glúten) + Genético (HLA DQ2/DQ8)

Na figura 1 abaixo estão representadas a evolução da raça humana desde seu surgimento há 2,5 milhões de anos até os dias atuais e suas respectivas modificações quanto ao seu comportamento social e seus hábitos alimentares. Depreende-se deste esquema que até há 10.000 anos não havia grãos contendo glúten na natureza, portanto, Não existia a DC. A partir das mudanças dos hábitos das sociedades humanas que passaram, de atividades coletoras/caçadoras e costumes nômades, a viver em comunidades sedentárias, durante o período Neolítico, deu-se início à revolução da agricultura como parte essencial na produção e consumo de alimentos. Os cereais passaram, então, a ser cultivados de forma extensiva devido à sua alta qualidade nutricional. Na figura 1 abaixo, também estão representadas a família das Gramíneas e suas respectivas subdivisões até a Tribo das Hordaceas, a qual engloba o trigo, a cevada e o centeio.

Figura 1- Representação esquemática da evolução do ser humano e ocultivo dos cereais.

O glúten do trigo é uma mistura proteica heterogênea elástico-viscosa solúvel em álcool de gliadinas e gluteninas. As gliadinas fazem parte de um grupo de proteinas vegetais denominadas prolaminas, as quais apresentam uma elevada concentração do amino-ácido prolina. As prolaminas encontram-se nos cereais e recebem diversos nomes de acordo com seu respectivo cereal, a saber: gliadinas no caso do trigo, hordeinas no caso da cevada e secalinas no caso do centeio. Estas proteínas, em geral, somente são solúveis em soluções alcoólicas.  

A viscosidade e a elasticidade são propriedades naturais dos elementos proteicos do glúten; a gliadina é uma proteína bastante extensível, mas pouco elástica, responsável pela ductibilidade e coesividade, enquanto que a glutenina é o polímero responsável pela elasticidade da estrutura. A complexa mistura dessas duas cadeias proteicas longas através de pontes de dissulfito com água (através as pontes de hidrogênio) resulta na formação de uma massa com propriedades de coesão e viscoelasticidade, onde o glúten retém a água nos interstícios das cadeias proteicas, conforme a representação da figura 2.

Figura 2- Representação esquemática da estrutura química do glúten.

As propriedades elástico-viscosas são essenciais para a formação da massa da farinha de trigo e são responsáveis por dar ao pão sua peculiar textura e sabor. Em virtude destas propriedades específicas o glúten é largamente utilizado na indústria alimentícia, não somente em produtos que estão diretamente associados ao trigo, tais como, pães, biscoitos e macarrão, mas também em alguns outros, de forma oculta, como por exemplo, ingredientes de molhos, sopas instantâneas e inclusive medicamentos. Uma consequência direta desta alta prevalência na dieta, faz com que a ingestão de glúten embutido nos alimentos, no mundo ocidental, seja elevada, ao redor de 15 a 20 gramas por dia.

A figura 3 representa a estrutura do grão do trigo e todos os seus componentes químicos. O endosperma é a fonte nutritiva para a planta durante seu crescimento e tem por base amido e semolina, e proteínas de depósito, entre elas o glúten, frutanos, glicolípides, fosfolípides, minerais e vitaminas. O farelo é a cobertura externa fibrosa do grão e é a maior fonte de polissacarídeos desprovida de amido (fibra). O germe é a parte do grão que irá brotar a nova planta. Ele contém proteínas metabólicas, tais como aglutininas do germe do trigo e inibidores da amilase/tripsina, triglicerídeos, polissacarídeos, bem como minerais e vitaminas.

Figura 3- Representação esquemática do grão de trigo.

A massa proteica do trigo é composta por 80% de glúten (68% de gliadina e 32% de glutenina), 13% de globulina e 7% de albumina. Cada variedade de trigo expressa múltiplas gliadinas (, ϒ, Ѡ) que são ligadas a gluteninas de baixo e de alto peso molecular.

As variedades modernas de trigo contêm 3 genomas completos que codificam gliadinas e gluteninas. Até 100 proteínas diferentes de glúten podem estar presentes em uma simples variedade de trigo, e, portanto, muitas delas podem estar envolvidas na patogênese da DC. Como exemplo, na figura 4 está representado o mapeamento genético da gliadina.

A gliadina apresenta o seguinte mapeamento, como se lê abaixo: vermelho – efeito citotóxico; amarelo – atividade imunomoduladora; azul – liberação da zonulina e permeabilidade intestinal; verde – liberação de IL8 na DC.


Figura 4- Representação esquemática do mapeamento genético da gliadina.

Histórico

A DC foi inicialmente relatada por Areteu da Capadócia, no século I da era cristã. Areteu descreveu as fezes características, o caráter crônico da enfermidade, a maior incidência no sexo feminino e a maior probabilidade de que crianças viriam a ser afetadas. Areteu propôs a denominação desta enfermidade de “koiliakos” que em grego significa “ventre abaulado”, pelo aspecto clínico frequentemente observado nos estágios mais avançados da forma clássica da enfermidade, conforme pode ser comprovado na figura 5.   

Figura 5- Aspecto clínico da manifestação clássica da DC.

Entretanto, deveu-se a Samuel Gee, em 1888, na Inglaterra a descrição do quadro clínico clássico da DC nos tempos modernos, em uma aula para estudantes de Medicina intitulada “On the celiac affection”, a saber: ”indigestão crônica encontrada em pessoas de todas as idades, especialmente entre 1 e 5 anos”. Além da descrição detalhada do quadro clínico da DC, Gee afirmava que “se porventura pudesse haver cura para a DC, esta deveria vir através da dieta, e que a permissão para a ingestão de farináceos deveria ser escassa”. Gee também observou que “uma criança portadora de DC que havia sido alimentada exclusivamente com os melhores mexilhões holandeses diariamente, desenvolveu-se maravilhosamente bem, mas que havia sofrido recidiva da enfermidade quando a temporada dos mexilhões se extinguiu”. Desta forma, Gee pode documentar a melhoria clínica do paciente utilizando-se uma dieta isenta de glúten e o surgimento da recidiva após a reintrodução do glúten na dieta da criança.

 Entretanto, apesar desta descrição de Gee, durante mais de 60 anos a etiologia da DC permaneceu desconhecida apesar das inúmeras hipóteses etiológicas levantadas pelos investigadores para explicar sua causa, assim como as mais variadas tentativas frustrantes de tratamento. Por exemplo, Shultz, em 1904, atribuia a uma alteração da flora putrefativa intestinal a responsável pela DC, enquanto que, Herter e Host, em 1908, propunham que a etiologia se devia à flora lactobacilar. Por outro lado, Henfner, em 1909, considerou que a DC se devia a existência de uma grave insuficiência digestiva após o desmame e preconizava a utilização do leite humano para seu tratamento. Na década de 1920, o médico alemão Sydnei Hass revolucionou o tratamento dietético propondo algo inédito à época, ou seja, o uso de uma dieta de bananas, inclusive excluindo os carboidratos dos cereais. Esta proposta terapêutica chamou a atenção por ter baixado de forma espetacular a alta mortalidade da DC, e, por isto, tornou-se muito recomendada durante algumas décadas. Stheeman, em 1932, observou que um dos seus pacientes com DC apresentava um agravo da diarreia após a ingestão de alimentos contendo amido, pois a criança revelava intensa idiossincrasia a alimentos contendo biscoitos, pães e farináceos. Parsons, ainda em 1932, ao fazer a revisão de 94 casos de DC ocorridos durante a infância reconheceu que as crianças enquanto recebiam aleitamento natural exclusivo não apresentavam sintomas sugestivos da DC, o que somente viria a ocorrer após a introdução dos alimentos do desmame. Afirmava, também, que a DC podia afetar crianças e adultos, e, chamava a atenção para a grande variabilidade dos sintomas e para o papel que os carboidratos desempenhavam para o desencadeamento da enfermidade. Luel e Campos, em 1934, descreveram as alterações radiológicas presentes na DC, tais como, motilidade intestinal diminuída, alterações no padrão da mucosa jejunal com desaparecimento do seu pregueado característico e a nítida fragmentação da coluna de bário. 

No entanto, deveu-se ao pediatra holandês Willem Karen van Dicke a comprovação do efeito deletério do trigo, ao demonstrar que sua fração proteica, o glúten, em especial a gliadina, se constitui no agente etiológico provocador da DC. Dicke buscava incessantemente o agente causador da DC desde o início dos anos 1940, em sua clínica em Ultrecht, mas foi somente em 1950 que este pesquisador conseguiu comprovar, na apresentação de sua tese de doutoramento, de forma definitiva, que o trigo é o agente causador da DC. Dicke observou que no período da Segunda Guerra Mundial (1939-45), durante a ocupação nazista na Holanda, em virtude da grande escassez de alimentos, em especial o pão e outros derivados do trigo, paradoxalmente à sua expectativa, as crianças portadoras de DC apresentaram uma nítida melhoria clínica. Por outro lado, Dicke, para sua surpresa, notou também, que após o término da guerra quando os Aliados passaram a suprir alimentos à população, inclusive os cereais, como o trigo, estas mesmas crianças vieram a apresentar novamente os sintomas da DC e deterioração clínica evidente. Foi a partir destas observações que Dicke finalmente pode concluir que o trigo era o fator deletério causador da DC, mesmo sem ainda dispor da possibilidade de realização da biópsia duodenal e consequentemente comprovar as alterações morfológicas características da DC. Em 1954, Dicke e Charlotte Anderson, trabalhando em Birminghan, Inglaterra, descreveram a lesão histológica da mucosa intestinal da DC e confirmaram que o tratamento deveria ser apenas dietético com a introdução de uma dieta isenta de glúten.

Uma grande conquista para o diagnóstico da DC ocorreu em meados da década de 1950 quando Margot Shiner descreveu um equipamento para a realização da biópsia duodenal e publicou o resultado desta novidade em um paciente portador de DC na revista Lancet, em 1956 (Figura 6).

Figura 6- O grande avanço que Margot Shiner introduziu para o diagnóstico histológico da DC.

Outro grande avanço para o diagnóstico da DC, veio logo a seguir, e deveu-se ao tenente-coronel médico Crosby. No início do inverno de 1952-53, Crosby era o diretor médico do Hospital das Forças Armadas americanas na Coréia, e, foi neste período de tempo que ele teve conhecimento de que alguns soldados e suas esposas poderiam sofrer de DC. Ao retornar aos Estados Unidos, em 1963, no Hospital Walter Reed, em Washington, Crosby organizou uma equipe de trabalho para investigar o que era denominado “Sprue”. Para tal ele desenvolveu juntamente com o engenheiro mecânico Kugler um instrumento menos invasivo que o de Shiner, para a obtenção de fragmentos de biópsia intestinal, o qual passou a ser conhecido pela denominação de “cápsula de Crosby-Kugler”. A partir da introdução desta nova cápsula foi possível a realização das biópsias de intestinal delgado de forma rotineira para a investigação da DC. Esta nova técnica de investigação resultou no avanço mais espetacular para a época, pois, passou a proporcionar o estudo detalhado das lesões da mucosa do intestino delgado tornando-se, desde então, até os dias atuais, no padrão ouro para o diagnóstico da DC. Nas figuras 7 e 8 podem ser visualizadas a “cápsula de Crosby-Kugler” com o orifício de abertura lateral que obtém o fragmento de mucosa intestinal e parte do procedimento de biópsia.    
Figura 7- Cápsula de Crosby-Kugler.


Figura 8- Procedimento da realização da biópsia de intestino delgado.

Nesta ocasião alcançava-se assim o conhecimento de 3 importantes elementos, a saber: 1- que o glúten é o agente desencadeador da DC; 2- que havia uma indiscutível e facilmente identificável lesão da mucosa do intestino delgado; 3- a disponibilidade de um instrumento para a realização rotineira de biópsias do intestino delgado e com isto possibilitar o início da solução do mistério da patogênese da DC.

No nosso meio, após minha especialização no Policlínico Alejandro Posadas em Buenos-Aires, em 1973, aonde tive a possibilidade de reconhecer a existência da DC e desenvolver a experiência no seu manuseio, em 1974, ao retornar à minha prática no Hospital São Paulo, da Escola Paulista de Medicina, descrevemos o primeiro caso com documentação completa da DC. Nas figuras 9 e 10 abaixo, podem ser observadas as diferentes fases do nosso paciente antes, durante e após o tratamento.


Figura 9- Paciente antes do tratamento no momento do diagnóstico e após o início da dieta isenta de glúten com comprovação diagnóstica pela realização da biópsia de intestino delgado.


Figura 10- Paciente após alguns meses em dieta isenta de glúten em comparação com o momento do diagnóstico.

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