Prof.
Dr. Ulysses Fagundes Neto
Instituto
de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo
(I-GASTROPED)
A Doença Celíaca
(DC) é uma enfermidade sistêmica autoimune decorrente da intolerância
permanente ao glúten da dieta contido no trigo, centeio e cevada. A DC pode
surgir em qualquer momento da vida nos indivíduos geneticamente susceptíveis
que têm por hábito alimentar o consumo dos cereais que contém glúten. Trata-se
de uma enfermidade de alta prevalência no mundo ocidental afetando
aproximadamente 1 em cada 100 indivíduos, cujos sintomas apresentam um elevado
grau de variabilidade.
Esta
enfermidade apresenta uma característica peculiar, porque, para ser
desencadeada associa um fator ambiental, o glúten, a outro genético, o complexo
HLA DQ2/DQ8.
Fator
ambiental (glúten) + Genético (HLA DQ2/DQ8)
Na figura 1 abaixo estão representadas a evolução da
raça humana desde seu surgimento há 2,5 milhões de anos até os dias atuais e
suas respectivas modificações quanto ao seu comportamento social e seus hábitos
alimentares. Depreende-se deste esquema que até há 10.000 anos não havia grãos
contendo glúten na natureza, portanto, Não existia
a DC. A partir das mudanças dos hábitos das sociedades humanas que passaram, de
atividades coletoras/caçadoras e costumes nômades, a viver em comunidades
sedentárias, durante o período Neolítico, deu-se início à revolução da
agricultura como parte essencial na produção e consumo de alimentos. Os cereais
passaram, então, a ser cultivados de forma extensiva devido à sua alta
qualidade nutricional. Na figura 1 abaixo, também estão representadas a família
das Gramíneas e suas respectivas subdivisões até a Tribo das Hordaceas, a qual
engloba o trigo, a cevada e o centeio.
Figura 1- Representação
esquemática da evolução do ser humano e ocultivo dos cereais.
O glúten do trigo é uma mistura
proteica heterogênea elástico-viscosa solúvel em álcool de gliadinas e gluteninas.
As gliadinas fazem parte de um grupo
de proteinas vegetais denominadas prolaminas,
as quais apresentam uma elevada concentração do amino-ácido prolina. As prolaminas encontram-se nos cereais e recebem diversos
nomes de acordo com seu respectivo cereal, a saber: gliadinas no caso do
trigo, hordeinas no caso da cevada e secalinas no
caso do centeio. Estas proteínas, em geral, somente são solúveis em
soluções alcoólicas.
A viscosidade e a elasticidade são propriedades
naturais dos elementos proteicos do glúten; a gliadina é uma proteína bastante
extensível, mas pouco elástica, responsável pela ductibilidade e coesividade,
enquanto que a glutenina é o polímero responsável pela elasticidade da
estrutura. A complexa mistura dessas duas cadeias proteicas longas através de
pontes de dissulfito com água (através as pontes de hidrogênio) resulta na
formação de uma massa com propriedades de coesão e viscoelasticidade, onde o glúten
retém a água nos interstícios das cadeias proteicas, conforme a representação
da figura 2.
Figura 2- Representação esquemática da estrutura química do
glúten.
As propriedades elástico-viscosas são essenciais
para a formação da massa da farinha de trigo e são responsáveis por dar ao pão
sua peculiar textura e sabor. Em virtude destas propriedades específicas o glúten
é largamente utilizado na indústria alimentícia, não somente em produtos que
estão diretamente associados ao trigo, tais como, pães, biscoitos e macarrão,
mas também em alguns outros, de forma oculta, como por exemplo, ingredientes de
molhos, sopas instantâneas e inclusive medicamentos. Uma consequência direta
desta alta prevalência na dieta, faz com que a ingestão de glúten embutido nos
alimentos, no mundo ocidental, seja elevada, ao redor de 15 a 20 gramas por
dia.
A figura 3 representa a estrutura do grão do trigo e
todos os seus componentes químicos. O endosperma é a fonte
nutritiva para a planta durante seu crescimento e tem por base amido e semolina,
e proteínas de depósito, entre elas o glúten, frutanos, glicolípides,
fosfolípides, minerais e vitaminas. O farelo é a cobertura externa fibrosa do grão
e é a maior fonte de polissacarídeos desprovida de amido (fibra). O germe é a
parte do grão que irá brotar a nova planta. Ele contém proteínas metabólicas,
tais como aglutininas do germe do trigo e inibidores da amilase/tripsina, triglicerídeos,
polissacarídeos, bem como minerais e vitaminas.
Figura
3- Representação esquemática do grão de trigo.
A
massa proteica do trigo é
composta por 80% de glúten (68%
de gliadina e 32% de glutenina), 13% de globulina e 7% de albumina. Cada variedade de trigo expressa múltiplas gliadinas (ᾀ, ϒ, Ѡ)
que
são ligadas a gluteninas de
baixo e de alto peso molecular.
As
variedades modernas de trigo
contêm 3 genomas completos que codificam gliadinas e gluteninas.
Até 100 proteínas diferentes de glúten
podem estar presentes em uma simples variedade de trigo, e, portanto, muitas delas podem estar envolvidas na
patogênese da DC. Como exemplo,
na figura 4 está representado o mapeamento genético da ᾀ gliadina.
A ᾀ gliadina
apresenta o seguinte mapeamento, como se lê abaixo: vermelho
– efeito citotóxico; amarelo – atividade
imunomoduladora; azul – liberação da
zonulina e permeabilidade intestinal; verde – liberação de IL8 na DC.
Figura
4- Representação esquemática do mapeamento genético da ᾀ gliadina.
Histórico
A DC
foi inicialmente relatada por Areteu da Capadócia, no século I da era cristã.
Areteu descreveu as fezes características, o caráter crônico da enfermidade, a
maior incidência no sexo feminino e a maior probabilidade de que crianças viriam
a ser afetadas. Areteu propôs a denominação desta enfermidade de “koiliakos” que
em grego significa “ventre abaulado”, pelo aspecto clínico frequentemente
observado nos estágios mais avançados da forma clássica da enfermidade, conforme
pode ser comprovado na figura 5.
Figura
5- Aspecto clínico da manifestação clássica da DC.
Entretanto,
deveu-se a Samuel Gee, em 1888, na Inglaterra a descrição do quadro clínico clássico
da DC nos tempos modernos, em uma aula para estudantes de Medicina intitulada
“On the celiac affection”, a saber: ”indigestão crônica encontrada em pessoas
de todas as idades, especialmente entre 1 e 5 anos”. Além da descrição detalhada
do quadro clínico da DC, Gee afirmava que “se porventura pudesse haver cura
para a DC, esta deveria vir através da dieta, e que a permissão para a ingestão
de farináceos deveria ser escassa”. Gee também observou que “uma criança
portadora de DC que havia sido alimentada exclusivamente com os melhores
mexilhões holandeses diariamente, desenvolveu-se maravilhosamente bem, mas que havia
sofrido recidiva da enfermidade quando a temporada dos mexilhões se extinguiu”.
Desta forma, Gee pode documentar a melhoria clínica do paciente utilizando-se
uma dieta isenta de glúten e o surgimento da recidiva após a reintrodução do
glúten na dieta da criança.
Entretanto, apesar desta descrição de Gee, durante
mais de 60 anos a etiologia da DC permaneceu desconhecida apesar das inúmeras
hipóteses etiológicas levantadas pelos investigadores para explicar sua causa,
assim como as mais variadas tentativas frustrantes de tratamento. Por exemplo,
Shultz, em 1904, atribuia a uma alteração da flora putrefativa intestinal a
responsável pela DC, enquanto que, Herter e Host, em 1908, propunham que a
etiologia se devia à flora lactobacilar. Por outro lado, Henfner, em 1909,
considerou que a DC se devia a existência de uma grave insuficiência digestiva
após o desmame e preconizava a utilização do leite humano para seu tratamento. Na
década de 1920, o médico alemão Sydnei Hass revolucionou o tratamento dietético
propondo algo inédito à época, ou seja, o uso de uma dieta de bananas,
inclusive excluindo os carboidratos dos cereais. Esta proposta terapêutica chamou
a atenção por ter baixado de forma espetacular a alta mortalidade da DC, e, por
isto, tornou-se muito recomendada durante algumas décadas. Stheeman, em 1932,
observou que um dos seus pacientes com DC apresentava um agravo da diarreia
após a ingestão de alimentos contendo amido, pois a criança revelava intensa
idiossincrasia a alimentos contendo biscoitos, pães e farináceos. Parsons,
ainda em 1932, ao fazer a revisão de 94 casos de DC ocorridos durante a
infância reconheceu que as crianças enquanto recebiam aleitamento natural
exclusivo não apresentavam sintomas sugestivos da DC, o que somente viria a
ocorrer após a introdução dos alimentos do desmame. Afirmava, também, que a DC
podia afetar crianças e adultos, e, chamava a atenção para a grande
variabilidade dos sintomas e para o papel que os carboidratos desempenhavam
para o desencadeamento da enfermidade. Luel e Campos, em 1934, descreveram as
alterações radiológicas presentes na DC, tais como, motilidade intestinal
diminuída, alterações no padrão da mucosa jejunal com desaparecimento do seu
pregueado característico e a nítida fragmentação da coluna de bário.
No
entanto, deveu-se ao pediatra holandês Willem Karen van Dicke a comprovação do
efeito deletério do trigo, ao demonstrar que sua fração proteica, o glúten, em
especial a gliadina, se constitui no agente etiológico provocador da DC. Dicke
buscava incessantemente o agente causador da DC desde o início dos anos 1940,
em sua clínica em Ultrecht, mas foi somente em 1950 que este pesquisador
conseguiu comprovar, na apresentação de sua tese de doutoramento, de forma
definitiva, que o trigo é o agente causador da DC. Dicke observou que no
período da Segunda Guerra Mundial (1939-45), durante a ocupação nazista na
Holanda, em virtude da grande escassez de alimentos, em especial o pão e outros
derivados do trigo, paradoxalmente à sua expectativa, as crianças portadoras de
DC apresentaram uma nítida melhoria clínica. Por outro lado, Dicke, para sua
surpresa, notou também, que após o término da guerra quando os Aliados passaram
a suprir alimentos à população, inclusive os cereais, como o trigo, estas mesmas
crianças vieram a apresentar novamente os sintomas da DC e deterioração clínica
evidente. Foi a partir destas observações que Dicke finalmente pode concluir
que o trigo era o fator deletério causador da DC, mesmo sem ainda dispor da
possibilidade de realização da biópsia duodenal e consequentemente comprovar as
alterações morfológicas características da DC. Em 1954, Dicke e Charlotte
Anderson, trabalhando em Birminghan, Inglaterra, descreveram a lesão
histológica da mucosa intestinal da DC e confirmaram que o tratamento deveria
ser apenas dietético com a introdução de uma dieta isenta de glúten.
Uma
grande conquista para o diagnóstico da DC ocorreu em meados da década de 1950
quando Margot Shiner descreveu um equipamento para a realização da biópsia
duodenal e publicou o resultado desta novidade em um paciente portador de DC na
revista Lancet, em 1956 (Figura 6).
Figura
6- O grande avanço que Margot Shiner introduziu para o diagnóstico histológico
da DC.
Outro
grande avanço para o diagnóstico da DC, veio logo a seguir, e deveu-se ao
tenente-coronel médico Crosby. No início do inverno de 1952-53, Crosby era o
diretor médico do Hospital das Forças Armadas americanas na Coréia, e, foi
neste período de tempo que ele teve conhecimento de que alguns soldados e suas
esposas poderiam sofrer de DC. Ao retornar aos Estados Unidos, em 1963, no
Hospital Walter Reed, em Washington, Crosby organizou uma equipe de trabalho
para investigar o que era denominado “Sprue”. Para tal ele desenvolveu
juntamente com o engenheiro mecânico Kugler um instrumento menos invasivo que o
de Shiner, para a obtenção de fragmentos de biópsia intestinal, o qual passou a
ser conhecido pela denominação de “cápsula de Crosby-Kugler”. A partir da
introdução desta nova cápsula foi possível a realização das biópsias de
intestinal delgado de forma rotineira para a investigação da DC. Esta nova
técnica de investigação resultou no avanço mais espetacular para a época, pois,
passou a proporcionar o estudo detalhado das lesões da mucosa do intestino delgado
tornando-se, desde então, até os dias atuais, no padrão ouro para o diagnóstico
da DC. Nas figuras 7 e 8 podem ser visualizadas a “cápsula de Crosby-Kugler”
com o orifício de abertura lateral que obtém o fragmento de mucosa intestinal e
parte do procedimento de biópsia.
Figura
7- Cápsula de Crosby-Kugler.
Figura
8- Procedimento da realização da biópsia de intestino delgado.
Nesta
ocasião alcançava-se assim o conhecimento de 3 importantes elementos, a saber:
1- que o glúten é o agente desencadeador da DC; 2- que havia uma indiscutível e
facilmente identificável lesão da mucosa do intestino delgado; 3- a
disponibilidade de um instrumento para a realização rotineira de biópsias do
intestino delgado e com isto possibilitar o início da solução do mistério da
patogênese da DC.
No
nosso meio, após minha especialização no Policlínico Alejandro Posadas em
Buenos-Aires, em 1973, aonde tive a possibilidade de reconhecer a existência da
DC e desenvolver a experiência no seu manuseio, em 1974, ao retornar à minha
prática no Hospital São Paulo, da Escola Paulista de Medicina, descrevemos o
primeiro caso com documentação completa da DC. Nas figuras 9 e 10 abaixo, podem
ser observadas as diferentes fases do nosso paciente antes, durante e após o
tratamento.
Figura 9- Paciente antes do
tratamento no momento do diagnóstico e após o início da dieta isenta de glúten
com comprovação diagnóstica pela realização da biópsia de intestino delgado.
Figura
10- Paciente após alguns meses em dieta isenta de glúten em comparação com o
momento do diagnóstico.
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