terça-feira, 6 de setembro de 2016

Pancreatite Crônica: diagnóstico e tratamento (Parte 2)

Ana Catarina Gadelha de Andrade & Ulysses Fagundes Neto


FIBROSE CÍSTICA

A fibrose cística (FC) é causada por uma mutação autossômica recessiva do gene regulador da condutância transmembrana da fibrose cística (CFTR) localizado no cromossomo 7.

A pancreatite é uma complicação rara (2%) na evolução de pacientes com FC. Pode ocorrer de forma aguda, isolada ou recorrente, ou evoluir para a cronicidade com destruição progressiva da glândula.

Os dois mecanismos pelos quais a disfunção do CFTR leva a episódios de pancreatite são a produção de secreção viscosa com déficit de água e bicarbonato, tamponando os ductos pancreáticos, e o processo inflamatório associado.

Na tabela 3, abaixo estão descritos os pacientes de acordo com suas características clínicas e genotípicas em relação ao número de episódios de pancreatites.


Tabela 3



PANCREATITE HEREDITÁRIA

Para se estabelecer o diagnóstico da PC hereditária, é necessário descartar qualquer outra causa detectável de PC, e o paciente deve ter um parente de primeiro ou segundo grau com PC comprovada.

A descoberta de pancreatite associada a mutações do gene tripsinogênio catiônico (PRSS1), em 1996, demonstrou que o tripsinogênio desempenha um papel central na patogênese da pancreatite humana. Estas mutações afetam o equilíbrio das proteases e seus inibidores no interior do pâncreas, levando à autodigestão do órgão. O risco de câncer de pâncreas com uma mutação PRSS1 parece ser elevada.

A PC hereditária é definida como uma doença autossômica dominante com uma penetrância de 80%, e manifesta-se tipicamente em uma idade mais avançada. Calcificação pancreática e Diabetes mellitus são complicações menos freqüentes, em relação à PC alcoólica.


Figura 6- Modelo da pancreatite hereditária. No pâncreas normal (esquerda) a tripsina que é prematuramente ativada no interior do pâncreas é inibida pelo SPINK1, e, em uma segunda linha pela tripsina e pela mesotripsina, o que previne sua autodigestão. Na pancreatite hereditária (direita), mutações no PRESS1 ou no SPINK1 acarretam um desequilíbrio das proteases e suas inibidoras, resultando em autodigestão. O papel do CFTR é pouco conhecido.   

PANCREATITE TROPICAL

A pancreatite tropical é uma forma especial de PC, que ocorre em países em desenvolvimento na Ásia, África e América Central. É prevalente em crianças e adolescentes e é caracterizada por dor abdominal, calcificação pancreática e diabetes. O mecanismo patogenético é semelhante às outras formas de PC, ou seja, uma lesão aguda causa necrose seguida por fibrose (hipótese necrose-fibrose). No entanto, as causas da lesão pancreática inicial seriam devidas a alguns fatores específicos, tais como: desnutrição grave, consumo de glicosídeos cianogênicos  da mandioca, estase pancreática,  infecções e mecanismos auto-imunes. Entretanto, atualmente, apenas dois fatores etiológicos são considerados verdadeiros, a saber: estresse oxidativo e mutações genéticas (Figura 7).



Figura 7- Ilustração diagramática dos fatores genéticos e ambientais e suas suspeitadas influências na patogênese da PC: ACP- alcoólica; TCP- tropical; ICP- idiopática; HCP- hereditária.

ERROS INATOS DO METABOLISMO

PC e PA recorrente têm sido relatadas em pacientes que apresentam uma variedade de erros inatos do metabolismo (hiperlipidemias,  distúrbios da degradação da cadeia ramificada de aminoácidos, homocistinúria, doenças hemolíticas, porfiria aguda intermitente e vários defeitos do transportador de aminoácidos).

Algumas destas entidades são doenças extremamente raras. A maioria dessas síndromes são herdadas e, muitas vezes, famílias inteiras são portadoras de mutações que podem estar associadas a pancreatites de diferentes graus.

PANCREATITE IDIOPÁTICA

É das formas de apresentação mais frequentes de PC, secundada apenas pela pancreatite alcoólica, na civilização ocidental.

A PC idiopática é diagnosticada através da exclusão de outras potenciais causas de pancretite (10-25%). Está associada a mutações de genes que regulam a ativação do tripsinogênio (PRSS1)/inativação (SPINK-1) e CFTR.

O início das manifestações é precoce, ocorre nas primeiras duas ou três décadas da vida, e acarreta prejuízos na função e morfologia pancreáticas lentamente.

Existe também o início tardio, que se manifesta após a quinta década da vida, e a insuficiência pancreática pode ser a primeira manifestação da enfermidade.

PANCREATITE AUTOIMUNE

A PC é caracterizada pela presença de autoanticorpos, níveis elevados de imunoglobulinas e a lesão histopatológica apresenta um infiltrado inflamatório linfoplasmocitário com destruição ductal e atrofia acinar.

Admite-se que a incidência varia entre 1,9% e 6,6% dos casos de PC. A maioria dos relatos envolve pacientes com idade adulta avançada, porém a doença pode afetar uma ampla faixa etária. Anticorpos contra antígenos da anidrase carbônica II são positivos em 30 a 59% e anticorpos contra a lactoferrina estão presentes em 50 a 76% dos casos.

Em 60% dos casos, existe a associação com outras doenças auto-imunes, tais como colangite esclerosante primária, cirrose biliar primária, hepatite auto-imune,  síndrome de Sjogren e outras doenças inflamatórias.

Manifestações Clínicas

Dor Abdominal

A dor abdominal é o sintoma clínico predominante, e também a indicação mais comum para intervenção cirúrgica em pacientes com PC.

A dor leva à diminuição do apetite, contribuindo para a desnutrição e perda de peso. Geralmente, é de localização epigástrica e pode ser irradiada para o dorso. Pode ser atenuada na posição sentada, com o tronco curvado para a frente ou com a posição de cócoras, e pode ser agravada no período pós-prandial.

A dor pode ser recorrente ou contínua. A maioria dos pacientes pode ter alívio ou resolução da dor abdominal com o passar do tempo. O alívio da dor pode coincidir com o início da insuficiência pancreática exócrina.

Má Absorção Intestinal

É o resultado da insuficiência pancreática exócrina (IPE). Esteatorréia e perda de peso são as características mais importantes da PC. Esteatorréia é um sintoma de doença avançada e não ocorre até que a secreção de lipase pancreática esteja reduzida para menos de 10% do normal. Má absorção de lipídios ocorre mais precocemente do que a de outros nutrientes (proteínas e carboidratos), já que a secreção de lipase diminui mais rapidamente do que a secreção de protease e amilase.

Diabete

O Diabetes mellitus pode se desenvolver no curso de longa duração da doença. O diabete é classificado como tipo IIIc, de acordo com a American Diabetes Association, e é caracterizado pela destruição das células produtoras de insulina e glucagon. A deficiência co-existente da síntese de glucagon agrava os episódios de hipoglicemia.



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