Ulysses Fagundes-Neto
Professor Titular da
Disciplina de Gastroenterologia, Departamento de Pediatria da Escola Paulista
de Medicina/Universidade Federal de São Paulo
Diretor Médico do
Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo (I-Gastroped)
Introdução
A constipação
funcional é um transtorno comum na infância com uma estimativa global de 3% de
prevalência no mundo ocidental (1). Entre 17% e 40% das crianças a constipação
tem início no primeiro ano de vida (2). Em nosso meio, em atendimento
ambulatorial de gastroenterologia pediátrica, a constipação funcional afeta até
30% dos pacientes que buscam assistência médica. A constipação é uma condição clínica debilitante
caracterizada por evacuações dolorosas e pouco frequentes, escape fecal e dor
abdominal. A constipação provoca um grande transtorno para a criança e sua
família, e pode mesmo resultar em graves distúrbios emocionais com inclusive
desarmonia familiar. A fisiopatologia da constipação funcional é
indubitavelmente multifatorial e até o presente não está completamente
esclarecida. O comportamento de retenção é provavelmente a causa mais
importante para o desenvolvimento da constipação. Este comportamento pode ser
desencadeado por uma produção prévia de fezes de grosso calibre e endurecidas
que causam dor para evacuar e, consequentemente, provocam o surgimento de
fissura anal. Este evento pode ser a causa primária desencadeante do mecanismo
de retenção fecal ou ainda, em determinadas circunstâncias, a retenção fecal
pode ter seu início em uma resistência por parte da criança em utilizar outro
vaso sanitário que não seja o próprio. Até a presente data, somente 50% de todas
as crianças com constipação são tratadas com êxito e se veem livres de laxantes
depois de 12 meses de tratamento intensivo (3). Em nossa experiência
verificamos que 25% dos pacientes que apresentaram constipação antes dos 5 anos
de idade continuaram a sofrer queixas importantes de constipação,
caracterizadas por evacuações dolorosas e escape fecal além da puberdade (4).
Embora possa haver diversas etiologias para a constipação, na maioria dos casos as crianças que referem esses sintomas não apresentam doença orgânica detectável.
Definição
O termo constipação é derivado de uma palavra
latina “constipare” que significa “reunir, estreitar, apertar”. Constipação
trata-se de um diagnóstico clínico. Durante muitos anos médicos, pacientes e
pais usaram diferentes definições para caracterizar constipação. Por esta
razão, a elaboração de um consenso para definir constipação foi necessária para
tornar apropriado seu diagnóstico e também permitir que pesquisadores
comparassem os resultados dos seus estudos entre eles.
Atualmente, a
definição mais largamente aceita para a caracterização da constipação funcional
baseia-se no Critério de Roma III (5). Este critério divide a constipação
funcional em dois grupos de acordo com as idades dos pacientes. Lactentes e
pré-escolares até 4 anos devem preencher dois ou mais dos critérios por pelo
menos um mês, enquanto que aqueles maiores de 4 anos necessitam preencher dois
ou mais critérios por pelo menos 2 meses (Tabela 1). Dor abdominal é um sintoma
frequentemente associado à constipação, mas sua presença não é considerada
necessariamente um critério obrigatório para tal diagnóstico. O papel que a
constipação desempenha nas crianças com dor abdominal predominante não está bem
esclarecido.
Um subgrupo de
lactentes que apresentam dificuldades relacionadas a evacuação foram
categorizadas de acordo com os Critérios de Roma III como portadoras da
“disquezia do lactente”. Esta condição é caracterizada quando ocorre em
lactentes maiores de seis meses que apresentam um esforço de pelo menos 10
minutos, acompanhado de choro, antes da eliminação de fezes pastosas, na
ausência de quaisquer problemas de saúde. Os pais descrevem que os lactentes apresentam
um esforço por muitos minutos associado a gritos, choro e enrubescimento da
face. Os sintomas persistem por 10 ou 15 minutos até que fezes pastosas ou líquidas
sejam eliminadas e, usualmente, as evacuações são diárias. Os sintomas costumam
iniciar nos primeiros meses de vida e desaparecem espontaneamente após algumas
semanas (6).
Nem todas as crianças
com problemas de evacuação preenchem os Critérios de Roma III, e por isso,
outras definições tem sido propostas. Estas definições são menos exigentes e, na
verdade, incluem somente “dificuldade
para evacuar por pelo menos duas semanas e que causam significante estresse
para o paciente” (7). Embora essas definições sejam mais inclusivas, muito
provavelmente englobam um grupo mais heterogêneo de pacientes.
Diagnóstico
da constipação funcional e sinais de alarme que sugerem a presença de uma causa
orgânica associada à constipação
O diagnóstico da
constipação baseia-se inicialmente na história e no exame físico, e o papel
mais importante obtido por meio destas observações é para tentar excluir outros
transtornos que podem se apresentar com dificuldades para a evacuação e
identificar as possíveis complicações. As informações que devem ser ativamente
buscadas incluem a idade de início dos sintomas, o sucesso ou fracasso do
treinamento esfincteriano, a frequência e a consistência das fezes, neste
último caso preferentemente expresso de acordo com a escala de Bristol (8) ou
de Amsterdan (9), dor e/ou sangramento na eliminação das fezes, coexistência de
dor abdominal ou escape fecal, comportamento de retenção, história dietética,
alterações do apetite, náuseas e/ou vômitos e perda de peso. O conhecimento da
idade da criança quando do início dos sintomas é um dado extremamente
importante para se avaliar a gravidade do problema. Por exemplo, caso os
sintomas tenham se iniciado em um lactente com menos de 1 mês de idade deve-se
levantar a suspeita diagnóstica da existência de uma condição orgânica tal como
a doença de Hirschsprung (10). O momento da eliminação do primeiro mecônio é
especialmente relevante para avaliar o risco da doença de Hirschsprung; o
retardo da eliminação do mecônio por mais de 48 horas em um neonato de termo
leva à necessidade da realização de investigação para confirmar ou descartar este
diagnóstico. Embora 99% dos neonatos de termo sadios eliminem mecônio antes das
48 horas do nascimento, 50% dos neonatos que sofrem da doença de Hirschsprung também
eliminam mecônio nas primeiras 48 horas de vida (11,12). Deve-se ter em mente
que a ausência da eliminação do mecônio nas primeiras 48 horas de vida embora
seja sugestiva da doença de Hirschsprung, ainda assim não estabelece o
diagnóstico definitivo.
A informação também
deve ser obtida a respeito dos possíveis tratamentos prévios e mesmo o atual.
Idealmente deve-se utilizar um diário de 03 dias para que se possa avaliar com
maior confiança a ingestão alimentar e de líquidos. A história medicamentosa
prévia deve ser obtida incluindo o uso de laxantes, enemas, supositórios, ervas
e outras medicações, bem como algum possível tratamento comportamental.
É importante
investigar a história do desenvolvimento neuromotor e psicossocial, tais como
possíveis desajustes familiares, interação com seus pais e também o temperamento
da criança. A história familiar deve ser cuidadosamente obtida, na busca de
outras doenças gastrointestinais (alergia alimentar, doença inflamatória
intestinal, doença celíaca e doença de Hirschsprung) e também alterações em
outros órgãos, tais como, a tireoide, paratireoide, rins, ou doenças
sistêmicas, como por exemplo, a fibrose cística. O exame físico deve estar especificamente
voltado para os parâmetros de crescimento, exame do abdome (tonos muscular,
distensão e massa fecal palpável), inspeção da região perianal (posição do
ânus, presença de fezes ao redor do ânus, eritema, pregas cutâneas e fissuras
anais), e exame da região lombo sacral (tufos de pelos, desvio da linha glútea,
glúteos planos e agenesia sacral). É necessária a realização do toque retal
para avaliar a possível presença de estenose anal e massa fecal. A evacuação
explosiva após a retirada do dedo do examinador é sugestivo da doença de Hirschsprung
(resultado de um esfíncter hipertônico). O medo excessivo por parte da criança durante
a inspeção anal e/ou a presença de fissuras e hematomas deve levantar a
suspeita de abuso sexual. Os diagnósticos diferenciais estão listados na Tabela
2. Os sinais de alarme que devem alertar o clínico a respeito de uma condição
concomitante responsável pela constipação estão descritos na Tabela 3.
Investigação
diagnóstica laboratorial e de imagem
Em geral investigações laboratoriais devem ser
somente solicitadas em caso de dúvida ou para excluir uma enfermidade de base
tal como Doença Celíaca ou Hipotireoidismo. Frequentemente a indicação de
exames adicionais para o diagnóstico da constipação na infância inclui
radiografia do abdome, com ou sem o uso de marcadores rádio-opacos para avaliar
o tempo de trânsito colônico e ultrassonografia abdominal. É importante
ressaltar que um ou mais destes exames devem ser solicitados de acordo com as
possíveis necessidades clínicas individuais, a critério do médico assistente.
Entretanto há controvérsias quanto a contribuição destes exames de imagem para
à acurácia do diagnóstico da constipação na infância, os quais não são
recomendados pelas normas de conduta inglesa (13) e holandesa (14).
-
Radiografia simples do abdome
Uma revisão de 5 estudos
que avaliaram a importância do grau de presença de fezes na topografia dos
cólons por meio da radiografia simples do abdome, demonstrou que o retardo do
trânsito colônico pode estar presente em quaisquer dos segmentos analisados. Os
sistemas de escore propostos variaram consideravelmente entre os autores e da
mesma forma diversificaram a sensibilidade e a especificidade para a
caracterização de excessiva retenção fecal; portanto, na prática clínica
torna-se pouco confiável a utilização dos referidos sistemas de escore. A
realização da radiografia simples de abdome fornece, na verdade, informações
genéricas a respeito dos segmentos colônicos que potencialmente possam
apresentar retenção fecal. Além disso, a
radiografia simples do abdome permite avaliar a existência de alguma
anormalidade da coluna vertebral lombo-sacral (15).
-
Manometria anorretal
A manometria
anorretal é um teste de rastreamento extremamente útil e está indicado em
crianças que apresentam constipação e alguns sintomas que possam sugerir a
presença da doença de Hirschsprung, tais como a instalação precoce da
constipação, a falta de resposta ao tratamento rotineiro e a detecção da ampola
retal vazia ao toque digital. A presença do reflexo inibidor reto-anal exclui a
doença de Hirschsprung. Na ausência do reflexo inibidor reto-anal é imperiosa a
realização da biópsia retal para confirmar o diagnóstico da doença de Hirschsprung
(16).
-
Radiografia por Enema de Bário
A radiografia por enema
de Bário não está indicada como uma ferramenta diagnóstica porque não
representa uma alternativa válida à manometria ano-retal ou à biópsia retal
para excluir o diagnóstico da doença de Hirschsprung a despeito da idade do
paciente. Entretanto, pode ser considerada sua utilização nos casos confirmados
da doença de Hirschsprung para avaliar a extensão do segmento agangliônico
previamente à cirurgia (17).
Tratamento
Os objetivos do tratamento das
crianças com constipação estão voltados para restaurar o padrão rotineiro das
evacuações (fezes pastosas e evacuações indolores), desaparecimento do escape
fecal e prevenção de recidivas. Há quatro passos importantes para serem dados
durante o processo terapêutico, a saber: 1- Educação; 2- Desimpactação; 3- Prevenção
da formação do bolo fecal e 4- Acompanhamento clínico.
-Educação
-Educação
O
tratamento da constipação na infância deve-se iniciar pela abordagem não
acusatória dos pais e dos profissionais da saúde. É necessário fornecer informação detalhada a respeito da prevalência e dos sintomas,
inclusive antevendo a ocorrência de períodos intermitentes de agravos e de alívios
da constipação. É também importante explicar aos pais e, quando possível, à
criança, a respeito da etiologia do escape fecal. O escape fecal ocorre em
virtude da produção de fezes amolecidas e/ou semilíquidas decorrente da
existência do bolo fecal impactado no reto, o qual provoca a produção de uma
secreção serosa pela mucosa retal que arrasta pequenas quantidades de material
sólido dos bordos do bolo fecal. Desta forma a criança não consegue reter este
material semilíquido e, portanto, este evento não deve ser encarado como um
distúrbio comportamental da criança. Uma explanação clara deste processo
auxiliará os pais e a criança na melhor compreensão deste sinal tão frustrante,
o que deverá ser mais facilmente aceito. Uma revisão sistemática da literatura
mostrou que somente 50% de todas as crianças acompanhadas de 6 a 12 meses
apresentaram recuperação total do escape fecal e foram “desmamadas” com sucesso
do uso de laxantes (18). Os familiares e a criança necessitam ser informados
deste percentual antes do início do tratamento para se tentar conseguir um
aumento da adesão ao mesmo.
Além da educação, aconselhamento dietético também deve ser oferecido, o qual
consiste na ingestão rotineira de líquidos e fibras. Não há uma evidência de
que a ingestão aumentada de líquidos ou fibras no tratamento da constipação
esteja suficientemente confirmada para que se faça a recomendação destes
elementos no manejo da constipação funcional. Entretanto, um aumento do consumo
de líquidos para alcançar os níveis diários recomendados é essencial.
Usualmente, o lactente necessita receber 150 ml/kg/dia de líquidos. Crianças
sadias pesando 10 ou mais quilogramas necessitam de 1000 a 1500 ml/dia. A
quantidade recomendada da ingestão de fibras para crianças acima de 2 anos deve
ser calculada levando-se em consideração a idade em anos, acrescida de 5 g/dia
(por exemplo: uma criança de 7 anos de idade deve ingerir 12 g/dia de fibra)
(19).
A despeito do fato de que não haja uma evidência definitiva do aumento da
atividade física para o alivio da constipação, exercícios físicos devem ser
estimulados. Há consenso sobre a observação clínica de que a falta de atividade
física pode ser um fator contribuinte para a constipação. A atividade física
rotineiramente recomendada consiste em uma hora por dia de exercício de
intensidade moderada. Além disso, todas as crianças com idade de desenvolvimento
neuropsicomotor correspondente a 4 anos, devem ser instruídas a tentar evacuar
no vaso sanitário durante 5 a 10 minutos depois de cada refeição (2x ao
dia).
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