quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (27)

A história da realização de um Pós-Doutorado no North Shore University Hospital, Cornell University, Nova Iorque: pessoal e científica


O Início das Minhas Atividades no North Shore University Hospital (NSUH)


O NSUH é um hospital de ensino afiliado à Cornell University e como tal possui um amplo programa de Residência Médica e de Especializações. Para poder manter esta afiliação, além das atividades docentes e de treinamento em serviço, tem também que desenvolver produção científica tanto clínica quanto experimental. Para atender este requisito determinado pela universidade o Departamento de Pediatria possui um laboratório de Pesquisa Experimental associado a um Centro de Microscopia Eletrônica (CME). Este laboratório, naqueles tempos (1977), era chefiado por Fima Lifshitz (Figura 20), com quem fui trabalhar e que também acumulava a chefia da Divisão de Endocrinologia e Nutrição, enquanto que o CME era chefiado pelo PhD Saul Teichberg (Figura 21).

Figura 20- Fima Lifshitz atendendo suas pacientes portadoras de Anorexia nervosa internadas no NSUH para tratamento. Era a primeira vez que eu via este tipo de doença.

 Figura 21- Saul Teichberg em seu Centro de Microscopia Eletrônica.

Originalmente de acordo com as tratativas prévias acertadas com Fima minhas atividades de pesquisa experimental envolveriam ações em ambos os locais em decorrência da natureza do projeto de pesquisa desenvolvido conjuntamente entre eles e eu. Naquela ocasião estava em franca expansão o estudo da microflora bacteriana do trato digestivo, havia uma avalanche de trabalhos na literatura médica a respeito da microflora bacteriana normal desde o final dos anos 1960; também começavam a aparecer trabalhos evidenciando os efeitos nocivos sobre a mucosa do intestino delgado provocados por alterações desta mesma microflora. Como eu já havia realizado 2 trabalhos de investigação clínica estudando a microflora bacteriana do intestino delgado em pacientes portadores de diarreia aguda e crônica associados à desnutrição quando da minha especialização em Buenos-Aires, continuasse a fazê-lo na minha volta ao Brasil a partir de 1974 e, da mesma forma, Fima também havia publicado vários trabalhos similares em crianças mexicanas com as mesmas condições clínicas, nossos interesses científicos eram totalmente confluentes. Tratava-se agora de ampliar as fronteiras dos conhecimentos a respeito de outros possíveis efeitos prejudiciais à mucosa do intestino delgado causados pelo crescimento anormalmente elevado da microflora colônica nas porções altas do trato digestivo (em inglês o termo consagrado para esta alteração foi denominado de “bacterial overgrowth”), duodeno e jejuno, as quais em condições normais devem ser estéreis ou muito próximas disso (Figura 22).


Figura 22- Distribuição da microflora normal do trato digestivo.



O projeto de pesquisa elaborado apresentava-se, a meu ver, duplamente sofisticado porque em primeiro lugar envolvia uma técnica laboratorial sobre a qual eu não tinha o menor domínio, denominada perfusão intestinal em ratos (Figura 23) e, porque, em segundo lugar, adicionava mais um fator de complicação que dizia respeito ao estudo da morfologia intestinal utilizando a microscopia eletrônica de transmissão, ou seja, a biologia celular.


Figura 23- A técnica da perfusão intestinal em ratos em pleno funcionamento. Quando voltei para o Brasil graças a uma bolsa de pesquisa que recebi da FAPESP pude comprar estas mesmas máquinas e realizar vários experimentos utilizando esta técnica, os quais se converteram em tese de Mestrado e Doutorado de alunos de pós-graduação por mim orientados.

Teria eu que, por conseguinte, rapidamente desenvolver as competências para dominar concomitantemente as 2 novas habilidades, as quais eram técnicas que não tinham nada em comum, ambas extremamente trabalhosas, de execução que demandava muita paciência e tempo prolongado. Além disso, minhas tarefas teriam que estar necessariamente compreendidas entre 2 laboratórios funcional e fisicamente independentes entre si. Este era mais um grande desafio que se me apresentava, pois teria que me integrar com técnicas de laboratório e pessoas distintas, mas era esta a razão da minha vinda aos USA, portanto, não tinha do que me queixar, tinha que “pôr a mão na massa” de imediato e enfrentar os possíveis problemas vindouros, visto que todas as condições materiais e de infraestrutura estavam dadas. Mais ainda, tive a sorte grande de ter como professora, para dominar a técnica da perfusão intestinal e as determinações bioquímicas que o projeto exigia, uma figura encantadora com quem desenvolvi uma profunda relação de amizade a bióloga Mary Ann Bayne (Figuras 24-25).


Figura 24- A bióloga Mary Ann Bayne minha maestra e grande amiga para sempre.

Figura 25- Mary Ann pacientemente me ensinando a realizar o procedimento de preparo para o início da perfusão intestinal.


Figura 26- Material de biópsia do intestino delgado normal de rato. Trata-se de um enterócito em cuja porção apical visualiza-se a região das microvilosidades, e, já no interior do citoplasma podem ser vistas diversas organelas, tais como: mitocôndrias, retículos endoplasmáticos com seus ribossomos acoplados, bem como corpos multivesiculares.

Felizmente, no CME também tive a mesma sorte com Saul e sua assistente Dale. Saul logo que cheguei me deu um livro intitulado “Cells and Organels” para eu estudar e assim me familiarizar com a Biologia Celular (Figura 26), o qual devorei em curto espaço de tempo, enquanto ia aprendendo as delicadíssimas técnicas de inclusão do material para ser visualizado à microscopia eletrônica (Figura 27).


Figura 27- Eu em plena atividade de preparo do material para visualização no microscópio eletrônico. Ao fundo vê-se a técnica Hyacinth Spencer uma jamaicana, pessoa admirável e de espírito altamente divertido, que também trabalhava no laboratório.

Além disso, também fui em seguida apresentado ao “monstro”, um microscópio eletrônico de transmissão de fabricação japonesa marca JEOL, equipamento de última geração, que eu teria que manusear para poder estudar as amostras de biópsias de intestino delgado dos ratos que eu submeteria à perfusão intestinal (Figuras 28-29). 


Figura 28- Eu ao ser apresentado ao “monstro” no primeiro contato com a máquina que eu teria que manusear para poder produzir os trabalhos de pesquisa.


Figura 29- O “monstro” sendo desmitificado, a esta altura eu já conseguia manuseá-lo com total intimidade.

Findo o treinamento que durou cerca de 45 dias estava pronto para dar início ao tão ambicionado projeto de pesquisa o qual se intitulou “Bile Salt-Enhanced Jejunal Macromolecular Absorption” (Sais Biliares Provocam Aumento da Absorção Jejunal de Macromoléculas).

Fazendo um breve parêntesis na atividade de investigação experimental, vale a pena referir que logo que cheguei ao NSUH fui apresentado ao chefe do Departamento de Pediatria Dr. Mervin Silverberg (Figura 30) que era Gastroenterologista Pediátrico.
 
Figura 30- Dr. Silverberg e eu muitos anos depois, em 1985, em um Congresso da nossa especialidade em Bruxelas, Bélgica. A amizade se tornou sólida e ele algumas vezes esteve aqui no Brasil a meu convite.

Como ele se inteirou da minha formação clínica na especialidade, convidou-me a frequentar seu ambulatório o qual atendia 2 vezes por semana. Considerando que eu não queria me afastar da atividade clínica e que, com absoluta certeza, teria a oportunidade de incorporar alguns novos conhecimentos na área, senti-me honrado com o convite e de imediato me coloquei à disposição para desempenhar mais essa função durante minha estada no NSUH. Tendo em vista que ainda durante a realização da residência na Escola Paulista de Medicina eu houvesse prestado o exame denominado Educational Council for Foreign Medical Graduates que, na época, uma vez tendo sido aprovado dava a devida autorização para exercer a profissão de médico nos USA, eu havia sido aprovado, este certificado me dava o direito de atender pacientes de forma autônoma. Este foi mais um fator que me auxiliou no atendimento aos pacientes porque em breve tempo Silverberg passou-me plena responsabilidade para que eu desenvolvesse meu próprio ambulatório conjuntamente com o dele. Ao fim do expediente discutíamos os casos com muita camaradagem e esta foi uma tarefa que me acrescentou grandes conhecimentos, em especial sobre algumas doenças que eram raramente vistas em nosso meio naqueles anos. Ademais, também me ajudou a “matar as saudades” da vida de clínico. Além de tudo isso, esta atividade conjunta, serviu para construir uma sólida amizade com Dr. Silverberg, a qual se manteve por muitos anos depois que retornei ao Brasil.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (26)

A história da realização de um Pós-Doutorado no North Shore University Hospital, Cornell University, Nova Iorque: pessoal e científica


A chegada em Nova Iorque e o Nosso Novo Lar


Finalmente, após quase 2 anos de espera (o convite para trabalhar nos Estados Unidos foi formulado em outubro de 1975) a família completa (mulher, 3 filhos e eu) embarcava para Nova Iorque em junho de 1977. Havia, portanto, chegado o tão aguardado momento de iniciarmos nossa aventura de vida nos Estados Unidos. Uma enorme ansiedade e excitação envolviam todos nós, íamos para um novo país, costumes e cultura muito diferentes das nossas, as expectativas e as fantasias de como seria viver lá eram as mais variadas e muitas vezes ambivalentes. Como seria o apartamento que havia sido reservado para nós? Como funcionaria o hospital? Como seria o dia a dia? Haveria escola para as crianças? O local seria suficientemente seguro? Qual seria o custo de vida, teríamos condições de manter um padrão de vida digno para todos? Como nos comportaríamos em um meio ambiente totalmente estranho a nós, sem termos nenhum parente, amigo ou conhecido a quem recorrer em caso de necessidade? Eu me adaptaria a uma nova atividade totalmente diferente daquela que estava acostumado a desempenhar, pois ao invés de atuar como clínico, tarefa que me enchia de satisfação e me fazia sentir plenamente realizado, agora iria me transformar em um cientista devotado à pesquisa experimental, a bancada do laboratório passaria a ser meu consultório, isto me traria a mesma satisfação que a atividade clínica me proporcionava? Teria eu a suficiente competência para aprender as técnicas laboratoriais altamente sofisticadas que certamente seriam propostas? Teria eu a capacidade para readquirir as necessárias habilidades que havia aprendido nos primeiros anos do curso de Medicina, e que de há muito tempo não mais faziam parte das minhas práticas, para manusear os mais diversos equipamentos e materiais de um laboratório de investigação experimental? Tudo isto eram as incertezas que secretamente atormentavam meus pensamentos, as quais não podiam ser compartilhadas com ninguém, era um problema meu, só meu, eu é que havia me metido nesta potencial enrascada, portanto, cabia somente a mim solucionar ou não a questão. Enfim, as dúvidas e as incertezas eram incontáveis, porém a sorte já estava lançada, não havia mais possibilidade de recuar da decisão tomada, todas as pontes haviam sido destruídas. A partir de então era seguir em frente para desvendar o mistério e enfrentar o desconhecido da melhor forma possível. Foi o que tratamos de fazer ao longo de todo o período de vida nos Estados Unidos entre 1977 e 1978, e que será relatado a seguir.
A primeira e boa surpresa foi a localização do hospital e da moradia que nos havia sido reservada. O North Shore University Hospital está localizado no distrito de Manhasset, no condado de Nassau, em Long Island. Para que se tenha uma idéia mais precisa desta localização, a cidade de Nova Iorque está dividida em 5 distritos, a saber: Manhattan, Staten Island, Bronx, Brooklyn e Queens (Figura 1).
Figura 1- Mapa da cidade de Nova Iorque e o trajeto a ser trilhado entre nosso apartamento e Manhattan.
Figura 2- Mapa da região onde estão situados o hospital e o distrito de Manhasset. Pode-se observar o trajeto da LIE (495), bem como a Northern Boulevard e a linha férrea.
Figura 3- Vista aérea da região onde se localiza o hospital. Em A está a entrada para o estacionamento do apartamento, o círculo verde está sobre o hospital e o círculo vermelho sobre o prédio do nosso apartamento. Em frente ao hospital há um lindo campo de golfe.
Os 2 últimos distritos de Nova Iorque encontram-se localizados em Long Island, aonde também se encontram os 2 aeroportos principais de Nova Iorque, JF Kennedy e La Guardia. O condado de Nassau está situado ao leste de Long Island e faz divisa com Queens, sendo que Manhasset dista cerca de 30 km de Manhattan. A ilha de Manhattan pode ser alcançada por carro pela Long Island Expressway ou por trem pela Long Island Railroad, cujo ponto inicial encontra-se no Madison Square Garden, em Manhattan, e o ponto final em Port Washington (Manhasset é a penúltima estação da linha férrea) (Figura 2).

Por sua vez, o apartamento que nos foi reservado encontrava-se no terreno do próprio hospital (na parte posterior do mesmo) em uma área de 6 prédios residenciais especialmente destinados para os médicos residentes e os “Fellows” que desempenham atividades profissionais de assistência e/ou pesquisa. Além disso, dispunha de uma lavanderia comunitária, salão de jogos e de festas, um amplo gramado com quadra de tênis, quadra esportiva multiuso e um pequeno “playground” para as crianças (Figuras 3-4-5- 6-7).
Figura 4- Juliana e Marina no jardim do conjunto de prédios tendo ao fundo o pequeno playground.
Figura 5- Uly em frente a porta de entrada do nosso prédio.
Figura 6- Uly e eu bem debaixo da janela do nosso apartamento durante o auge do inverno que foi extremamente severo e prolongado.
Figura 7- Uma visão do prédio onde morávamos e Uly se divertindo na neve com o seu trenó.

Mais ainda, o apartamento distava exatamente 100 metros da entrada do hospital, bastava apenas descer um lance de escadas, visto que o prédio estava situado numa colina atrás do hospital. Tratava-se de um apartamento de 2 dormitórios, banheiro, sala de estar, copa e cozinha, cujas dependências eram de tamanho absolutamente satisfatórios para uma experiência de vida temporária (Figuras 8-9-10-11-12-13).
Figura 8- A família reunida já totalmente adaptada à nova forma de vida.
Figura 9- Juliana e Uly assistindo televisão; este era um mecanismo muito útil para dominar o novo idioma.
Figura 10- Uly na sala de estar do apartamento e os aparelhos de som que à época eram altamente modernos e sofisticados. O Brasil estava sempre presente nas nossas lembranças.
Figura 11- Uly e Marina com minha mãe Walkyria e minha tia Yvonne, a visita tão esperada dos entes queridos.
Figura 12- As crianças desfrutando da visita da avó paterna.
Figura 13- Nossos filhos e seus amigos, um indiano e outro coreano.
Próximo ao hospital, seguindo um pouco mais adiante, descendo a avenida que se denomina Community Drive, distando não mais de 500 metros, havia um clube municipal, cuja frequência era gratuita, um pouco mais abaixo do clube havia um centro comercial, com várias lojas pequenas de comércio variado e uma grande loja de departamento denominada A&S (Figura 14-15).
Figura 14- Uly e Juliana no centro comercial próximo do nosso apartamento, em pleno verão.
Figura 15- Uly e Juliana em frente à loja de departamento A&S.
Seguindo adiante e cruzando a Northern Boulevard havia um parque público denominado Whiteney-Pond Park (Figura 16- 17).
Figura 16- Marina no colo da Eurídice e Juliana ao fundo no Whiteney-Pond Park.
Figura 17- A família em passeio ao Whiteney-Pond Park.
Isto posto, todas as condições logísticas e de conforto material estavam dadas para que eu pudesse desempenhar minhas funções a contento. E, como não se bastasse, nosso filho mais velho, por já ter completado 5 anos, pode ser matriculado na escola pública do distrito, com direito a transporte da própria escola e aulas de inglês suplementares para poder dominar o idioma. As meninas, por sua vez, tiveram que ser matriculadas em uma escola maternal privada. Assim sendo, como se pode depreender, rapidamente todas aquelas dúvidas e angústias que nos afligiam, na questão familiar, antes de viajar, quanto a desvendar o desconhecido foram rapidamente dissipadas. Mais ainda, descobrimos que estávamos vivendo em um microcosmos multiétnicos e multicultural porque nossos vizinhos eram na sua imensa maioria estrangeiros como nós, provenientes dos mais variados rincões do globo terrestre que para lá se aventuraram pelas mesmas razões que a mim me atraíram. Havia indianos, coreanos, argentinos, italianos, japoneses etc. e até mesmo outros brasileiros (Figuras 18- 19).
Figura 18- Uly e Juliana com seus amigos dos mais diversos países.
Figura 19- Juliana e sua grande amiga Ciara, filha de um casal de italianos.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (25)

A história da realização de um Pós-Doutorado no North Shore University Hospital, Cornell University, Nova Iorque: pessoal e científica



O Trabalho de Campo 


Conclusões


A elaboração prévia de um detalhado programa de ação para ser desenvolvido no campo deve ser o ponto de partida de qualquer projeto de pesquisa para que, na prática, sua execução possa alcançar o êxito desejado. Especificamente, no caso do presente trabalho de campo que visava estudar o maior número possível de crianças, a escolha da época do ano teve uma função estratégica do mais alto valor, pois devido ser o mês de julho período de seca, as condições climáticas facilitaram as atividades práticas da equipe de saúde, tanto no que se refere a vinda das tribos ao Posto Leonardo quanto ao próprio deslocamento da equipe de saúde às aldeias, seja por via fluvial e/ou terrestre (Figura 24).

Figura 24- Uma visão do rio Kuluene durante um deslocamento da equipe de saúde por via fluvial.

Durante o período das chuvas (outubro a abril) estas atividades estariam altamente prejudicadas, posto que usualmente chove torrencialmente todos os dias e, por esta razão, os deslocamentos seriam quase que impraticáveis (Figura 25).

Figura 25- Visão da trilha que liga o Posto Leonardo a uma aldeia em uma época de chuvas na região.

Os vários deslocamentos realizados pela equipe de saúde dentro do PIX, em visita às aldeias, possibilitaram o levantamento de toda a população infantil que potencialmente poderia ser incluída no estudo, e, em cada ano, pelo menos dois deslocamentos internos foram realizados. As aldeias mais próximas e de acesso fácil (Iaualapiti e Kamaiurá) foram visitadas todos os anos. Deslocamentos mais longos, a partir do Posto Leonardo, foram realizados para visitar outras aldeias, tais como, Kuicuru, Matipu, Nafuqua.

Em resumo, o trabalho assim desenvolvido possibilitou a elaboração de um estudo transversal de avaliação do estado nutricional das crianças representado por cortes anuais, e, ao mesmo tempo, propiciou o estudo longitudinal que permitiu determinar o ritmo de crescimento das crianças índias.

Os inquéritos nutricionais que se destinam a estudar uma determinada comunidade baseiam-se, via de regra, na escolha de uma amostra populacional. Uma vez respeitados os critérios científicos para a constituição da amostragem, os resultados podem ser, de forma válida, extrapolados para a população em questão.

Em se tratando de populações indígenas, defronta-se desde o início, com o obstáculo decorrente do pequeno número de indivíduos pertencentes a estas comunidades. Este é o caso específico das inúmeras comunidades indígenas brasileiras, sobre as quais escassas informações, de real valor científico, a respeito das suas condições nutricionais, encontram-se disponíveis na literatura. A necessidade de se conhecer aspectos mais detalhados em relação ao estado nutricional destes grupamentos populacionais nativos remanescentes torna-se prioritário, pois, se em passado não muito remoto contavam-se aos milhões e chegavam a ocupar parcela significativa do território brasileiro, na atualidade encontram-se reduzidos a alguns parcos núcleos residuais empurrados para um nítido e dramático processo de diminuição populacional (Tabela 6).

Tabela 6- Variação da população indígena do PIX desde 1963, início da constituição do parque, até mais recentemente, demonstrando um significativo aumento da mesma a partir da proteção oferecida contra as frentes de ocupação da nossa sociedade.

Para superar a barreira da possível falta de uma amostragem populacional significativa decidiu-se incluir no estudo o maior número de crianças que potencialmente se encontravam dentro dos critérios de inclusão previamente estabelecidos. O objetivo foi plenamente alcançado, visto que foi estudada a quase totalidade das crianças da região do Alto Xingu com idade estimada igual ou inferior a 5 anos.

Inúmeros ensinamentos práticos puderam ser obtidos desta civilização chamada de “cultura primitiva”, os quais merecem ser comentados. A prática, em escala universal, do aleitamento natural exclusivo e por tempo prolongado, representa, sem dúvida alguma, um dos principais fatores para contribuir com o estado de eutrofia vigente entre as crianças índias, apesar dos múltiplos problemas de ordem ambiental, tais como a malária e a parasitose intestinal endêmicas (Figuras 26-27).


Figura 26- A nítida sensação de eutrofia é a regra vigente entre as crianças índias.

Figura 27- Aleitamento natural exclusivo de forma prolongada é universal nesta civilização.

Outro aspecto a ser ressaltado é a utilização racional e equilibrada dos recursos naturais, o qual é de suma importância para a manutenção de um estado nutricional adequado. No Alto Xingu, a dieta, apesar de ser monótona, proporciona quantidades suficientes de proteínas e gorduras de alta qualidade, fornecidas pelo peixe que é abundante na região (Figuras 28-29), a mandioca como fonte de carboidrato e as frutas silvestres como fonte de vitaminas, em especial o pequi, este último altamente rico em vitamina A (Figura 30).

Figura 28- Peixes sendo assados diretamente sobre a fogueira.

Figura 29- Beiju da mandioca sendo assado para depois ser ingerido juntamente com o peixe.

Figura 30- Crianças índias Uaura observando cestas de pequi que são estocadas submersas nas águas do lago próximas à aldeia, e, cujo fruto é consumido de acordo com a necessidade individual.

Na sociedade indígena a disponibilidade de alimentos é universal, posto que não existe estratificação socioeconômica, não há valores pecuniários e todos os indivíduos de uma determinada aldeia têm os mesmos deveres e direitos, os quais são norteados por critérios de convivência que foram acordados entre eles e que se consagraram pela prática, para possibilitar a perpetuação da espécie ao longo dos muitos séculos de existência na área.

Este trabalho foi apresentado sob a forma de tese de Doutorado ao Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina, em abril de 1977, tendo sido aprovado com nota 10,0 (Dez) pelos 5 examinadores de reconhecida competência científica, oriundos das mais prestigiosas universidades brasileiras.

Como preâmbulo da minha tese, após ter vivido esta experiência única e indescritível, fiz a seguinte reflexão em relação à civilização que tanto me ensinou: “O ÍNDIO NÃO ESPERA A NOSSA CARIDADE E MUITO MENOS QUE NOSSA CIVILIZAÇÃO SE APIADE DE SUA ATUAL CONDIÇÃO. DESEJA APENAS SEJAM RESPEITADAS SUA CULTURA, TRADIÇÃO E DIREITOS. AINDA É TEMPO DE AJUDAR A CORRIGIR UM GRAVE ERRO HISTÓRICO COMETIDO PELOS NOSSOS ANCESTRAIS, QUE NA ÂNSIA DE CONQUISTAR UM NOVO MUNDO, ESQUECERAM-SE DE OBSERVAR ALGUMAS LEIS DA ÉTICA HUMANA”.

Fiz também a seguinte dedicatória: “A MEUS FILHOS ULYSSES, JULIANA E MARINA QUE ME PERDOEM A AUSÊNCIA, MAS QUE NO FUTURO SAIBAM QUE SEU PAI LUTOU POR UMA CAUSA JUSTA”.

Posteriormente, versões simplificadas e abordando aspectos diversos deste trabalho foram publicadas nas seguintes revistas científicas: 1- American Journal of Clinical Nutrition 34:2220-2235,1981 “Observations of the Alto Xingu with special reference to nutritional evaluation in children” sendo autores: Fagundes-Neto U., Baruzzi RG., Wehba J., Silvestrini WS., Morais MB & Cainelli M. 2- Jornal de Pediatria 50:179-82,1981 “Avaliação nutricional das crianças índias do Alto Xingu” sendo autores: Fagundes-Neto U., Baruzzi RG., Wehba J., Silvestrini WS., Morais MB & Cainelli M.

A pergunta que permanece no ar e que não quer calar é saber se este estado de coisas ainda persiste nesta comunidade, posto que este trabalho foi realizado há mais de 30 anos. Alguma resposta pode ser dada de imediato, porque este trabalho com a mesma metodologia seguiu-se até 1980, e as condições nutricionais das crianças índias permaneceram praticamente inalteradas (Tabela 7).

Tabela 7- Evolução da avaliação do estado nutricional das crianças índias ao longo dos anos desde 1974 até 1980.

E depois? Outro trabalho já no século XXI, em 2001, utilizando a mesma metodologia e incorporando uma tecnologia mais sofisticada e atual, a impedância bioelétrica, foi realizado, mas já se conhecendo a idade exata das crianças índias. Pela primeira vez na nossa Instituição pai e filho estavam trabalhando juntos no PIX (Figuras 31-32-33-34-35-36). Este foi o trabalho de tese de Mestrado de Ulysses Fagundes, meu filho, que carrega consigo o mesmo nome do seu bisavô (foi um pedido do meu avô, caso eu tivesse um filho do sexo masculino que colocasse o nome dele, por coincidência é assim que fazem os índios, porque ninguém desgosta dos avós, principalmente no meu caso, que tinha verdadeira idolatria pelo velho Ulysses Fagundes).

 Figura 31- Uly e eu às margens do lago do Ipavu na aldeia Kamaiurá.

Figura 32- Uly e eu no barco navegando no rio Tuatuari.


Figura 33- A equipe de trabalho em plena ação obtendo os dados antropométricos das crianças índias.

 
Figura 34- Uly incluindo um lactente índio em seu estudo.



Figura 35- Jorge, colega de residência na EPM, realizando a avaliação do estado nutricional utilizando a impedância bioelétrica em uma criança índia.

 
Figura 36- O reencontro, depois de longo tempo, com o grande pajé Tacuman e seu filho Cocoti.

Os resultados ratificaram plenamente o excelente estado de eutrofia das crianças índias. O trabalho de Tese de Mestrado foi apresentado ao programa de Pos-Graduação do Departamento de Pediatria da EPM e aprovado com louvor. Posteriormente foi publicado no Jornal de Pediatria 2004;80:483-89, inclusive merecendo um Editorial.

Ulysses Fagundes nos agradecimentos da sua Tese de Mestrado, a mim dedicou as seguintes linhas: “AO PROF. DR. ULYSSSES FAGUNDES NETO, MEU MESTRE NA VIDA, PELO APOIO E ESTÍMULO DESDE O PROJETO PILOTO, PELA REVISÃO DO TRABALHO E POR ME TER PROPORCIONADO CONHECER O XINGU DESDE O MEU NASCIMENTO, COM QUEM TIVE O PRAZER DE LÁ ESTAR, O QUE NOS PROPORCIONOU UMA EMOÇÃO, QUE, QUEM SABE, SÓ NÓS DOIS PODEREMOS ENTENDER”.

UM ALERTA QUE VALE A PENA SER LEVADO A SÉRIO

No final da década de 1990, em uma das minhas idas a Nova Iorque, decidi visitar o lendário teatro Carnigie Hall. Por coincidência, neste dia, havia o anúncio de uma apresentação do famoso cantor pop Sting; junto ao anúncio havia também um grande poster escrito em inglês subscrito pelo chefe Caiapó Raoni, pois Sting é um fervoroso defensor da causa indígena e grande amigo de Raoni. Quando vi o poster, imediatamente copiei-o traduzido para o português e que abaixo está literalmente transcrito.


Após todas essas aventuras que duraram alguns anos à espera do próximo mergulho ao desconhecido, agora é chegado o tempo de Nova Iorque.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (24)

A história da realização de um Pós-Doutorado no North Shore University Hospital, Cornell University, Nova Iorque: pessoal e científica



O Trabalho de Campo 



Exame Clínico

Considerando-se os 336 exames clínicos realizados não foram evidenciados sinais clínicos de desnutrição proteico-calórica de maior gravidade. Manifestações de desnutrição proteico-calórica leve foram observadas em apenas 3 crianças. Uma delas apresentava dermatite seborreica e as outras duas, estomatite angular.

Intercorrências independentes do estado nutricional foram caracterizadas em algumas ocasiões, tais como: conjuntivite purulenta em 3 crianças, escabiose em 2 e prolapso retal em 1. Quadro agudo de malária foi diagnosticado em 6 crianças.

Esplenomegalia foi o achado propedêutico mais frequente na população estudada. Em 185 (55%) dos exames clínicos realizados encontrou-se baço palpável, cuja distribuição de acordo com o índice esplênico está disposta na Tabela 1.


Tabela 1- Valores dos índices esplênicos detectados ao exame clínico das crianças índias estudadas.

Avaliação do Estado Nutricional

Os resultados da avaliação do estado nutricional das crianças em cada ano do projeto de pesquisa estão disponíveis na Tabela 2. A análise dos resultados do estudo antropométrico realizado em cada etapa do trabalho de campo permitiu afirmar que a prevalência de desnutrição proteico-calórica entre as crianças índias da região do Alto Xingu, supostamente menores de 5 anos de idade, é baixa.


Tabela 2- Avaliação do estado nutricional das crianças índias em cada ano do estudo.

A aplicação do índice peso-estatura revelou que 96,1% em 1974, 95,5% em 1975 e 96,1% em 1976 das crianças foram classificadas como Eutróficas (Figuras 22-23).



Figuras 22-23- Aspectos físicos das crianças índias estudadas, denotando um nítido padrão de eutrofia em diferentes idades.

Os poucos casos de desnutrição proteico-calórica, em nenhum dos anos do estudo, superaram a taxa de 5,0%, e todos eles encontravam-se de intensidade leve.

Análises laboratoriais

-1-  Sangue
Foram realizadas as determinações do Hematócrito, cujos valores variaram de 25% a 40% apresentando a média de 33,4%.

Eletroforese das proteínas séricas foi realizada em 104 crianças em 1974, e os valores das proteínas totais variaram de 5,2g% a 8,3g%, com valor médio de 7,1g%. A fração Albumina apresentou valores que variaram de 2,6g% a 4,2g%, e o valor médio foi de 3,4g%. Em 1975 foi realizada eletroforese das proteínas em 48 crianças, e os valores totais variaram de 5,5g% a 8,2g%, com média de 7,3g%; a fração Albumina variou de 2,8g%a 4,4g%, e a média foi de 3,5g% (Tabela 3).

Tabela 3- Valores médios e respectivos desvios-padrão das dosagens das proteínas séricas das crianças índias estudadas.

2- Fezes

Foram realizados exames de fezes para pesquisa de helmintos e protozoários em 40 crianças. Em apenas 8 delas a pesquisa resultou negativa enquanto que nas outras 32 (80%) foram detectados parasitas intestinais cuja distribuição encontra-se discriminada nas Tabelas 4 & 5.


Tabela 4- Prevalência de helmintos encontrados nas fezes das crianças índias estudadas.


Tabela 5- Prevalência de protozoários identificados nas fezes das crianças índias estudadas.