A história da realização de um Pós-Doutorado
no North Shore University Hospital, Cornell University, Nova Iorque: pessoal e
científica
A primeira visita ao
Parque Indígena do Xingu: meu encantamento com aquela gente
Estávamos nos meados de
Dezembro de 1970, eu, juntamente com meus colegas de turma,
comemorava o fim do nosso curso de Medicina pela Escola Paulista de Medicina
(EPM) com uma chopada e música, em frente ao Hospital São Paulo,
quando veio um comunicado urgente do Parque Indígena do Xingu (PIX) informando
que havia uma grave epidemia de
gripe afetando a população indígena das tribos do Alto Xingu, e solicitando o
envio imediato de médicos para prestar assistência aos enfermos. Dr.
Roberto Baruzzi, coordenador das atividades de atenção à saúde da EPM no PIX,
buscava desesperadamente médicos que pudessem atender este pedido de urgência,
e como não houvesse encontrado auxílio disponível naquele momento decidiu
lançar mão dos recém formados que estavam festejando o término de um longo
percurso de 6 anos como acadêmicos do curso médico. Eu fui contatado e de pronto aceitei aquele
que seria meu primeiro desafio como médico, que vinha acumulado com alguns
agravantes, tais como, trabalhar em um local fora dos meus domínios
corriqueiros, com uma população de cultura e idioma totalmente diferentes
daquela que eu estava acostumado a lidar até então, mais ainda, não teria a
supervisão de meus tutores para discutir minhas prováveis dúvidas de conduta. Porém, como era muito grande meu desejo de conhecer PIX e seus habitantes, no dia seguinte voamos para lá. A primeira impressão da região, vista do alto, foi esplendorosa, a vegetação intacta, as curvas do rio Xingu, a imagem das aldeias, tudo isso mostrava-se fascinante, parecia uma sonho, dava a sensação de haver entrado na máquina do tempo, como se eu houvesse voltado à época dos primeiros conquistadores (Figuras 1-2-3).
De
fato, quando lá chegamos eu e Rubens Belfort (Figuras 4-5), meu colega de turma,
éramos apenas os dois para cuidar da população das 9 aldeias que compõe a
região do Alto Xingu, a situação mostrava-se dramática à primeira vista.
Figura 1- Vista aérea da região do Alto Xingu, em primeiro plano o rio Xingu e ao fundo a lagoa do Ipavu, aonde se localiza a aldeia Camaiurá.
Figura 2- Vista aérea mais próxima da lagoa do Ipavu e da aldeia Camaiurá.
Figura 3- Imagem de uma oca da aldeia Camaiurá. Em geral, em cada oca vivem cerca de 3 a 4 famílias.
Figura 4- Rubens Belfort e eu em um momento de
descanso das atividades assistenciais saboreando um delicioso beiju recém
assado.
Figura 5- Depois de um dia árduo de trabalho, nos
fins de tarde, sempre havia tempo para jogarmos uma “pelada” no campo
improvisado em frente ao refeitório. Sou o de camisa azul número 6.
Havia um grande número de crianças e adultos
atingidos pela epidemia, a maioria de forma leve, porém alguns mais gravemente
enfermos necessitavam de assistência mais cuidadosa. Adaptamos no Posto
Leonardo uma grande enfermaria em um dos galpões que serviam de alojamento para
os visitantes, ali internávamos os casos mais graves que necessitavam medicação
intravenosa (Figuras 6-7-8).
Figura 6- Vista panorâmica do Posto Leonardo,
ressaltando os grandes pequizeiros, à direita o galpão da enfermaria
improvisada e ao fundo a edificação da farmácia, local do primeiro atendimento
médico.
Figura 7- Vista aérea do galpão que foi improvisado
como enfermaria para atendimento dos casos mais graves.
Figura 8- Vista geral da enfermaria improvisada
para atender os casos de gripe mais graves.
Os casos mais leves eram cuidados nas próprias
aldeias que visitávamos duas vezes por dia (Figuras 9-10).
Figura 9- Visão geral de um atendimento dos casos
leves de gripe na aldeia Uaura.
Figura 10- Cena de atendimento na aldeia Iualapiti.
Foi uma experiência
fantástica, heroica mesmo, e ao cabo de 2 semanas de trabalhos ininterruptos
pudemos celebrar uma grande vitória, pois não havíamos perdido nenhum paciente,
a epidemia foi superada com mortalidade zero. Pudemos assim voltar a São Paulo
para participar das cerimônias de formatura com as glórias de havermos vencido
nosso primeiro grande desafio como médicos.
À parte desta experiência assistencial durante todo
o tempo que lá estive, cada vez mais me impressionavam alguns aspectos
socioculturais daquela gente. Aprendi que o aleitamento natural é
verdadeiramente “natural”, pois era prática universal naquela comunidade, não
havia outro tipo de alimentação (os índios não têm atividade pecuária) para os
lactentes e, além disso, era realmente prolongado porque havia visto inúmeras
crianças que já caminhavam e ainda mamavam no seio materno (Figuras 11-12).
Figura 11- Lactente evidentemente eutrófico no
momento da amamentação.
Figura 12- Criança pré-escolar ainda recebendo
aleitamento natural.
Como me especializaria em Pediatria, prestava muita
atenção nas crianças e percebia o quanto elas transmitiam um ar de rara e
constante felicidade, viviam aos bandos brincando o dia inteiro, fosse no pátio
ou nos lagos próximos da aldeia, não havia brigas, riam o tempo todo,
desfrutavam de plena liberdade de ir e vir (Figuras 13-14-15).
Figura 13- Crianças índias nos recebendo em aldeia
Coicuro.
Figura 14- Crianças se divertindo à beira do rio, sempre em grupos e com grande alegria.
Aprendi também que as crianças eram o centro das
atenções de toda a comunidade, eram tratadas com enorme carinho e compreensão
pelos adultos, nunca vi uma criança ser espancada por seus pais (Figuras 16-17).
Figura 15- O futebol, mesmo na chuva, também passou a fazer parte da paixão xinguana.
Figura 16- Pai pintando filho para participar da
festa do Jawari, manifestação cultural das mais tradicionais na região do Alto
Xingu.
Figura 17- Desde tenra idade as crianças aprendem a participar da cultura do seu povo.
A olho nu a impressão que
me era transmitida transbordava o bem estar e o aspecto saudável das crianças
desde tenra idade até os maiores. Percebia que o tipo de alimentação embora
monótona quanto à variedade era altamente nutritivo e salutar, composta por mandioca,
peixe e frutas silvestres, dentre estas destacando o pequi (fonte rica em
vitamina A), havia abundância de comida mas não havia desperdício (Figuras 18-19-20-21-22-23-24-25-26-27-28).
Figura 18- Pescaria altamente bem sucedida para uma
festa tribal.
Figura 19- Os peixes são assados diretamente na brasa ou moqueados.
Figura 21- Índia preparando a mandioca para posterior extração do ácido cianídrico, potente veneno presente neste vegetal plantado na
região do Alto Xingu.
Figura 22- Índia fazendo a lavagem e peneirando a
massa da mandioca para extração do ácido cianídrico.
Figura 23- Caldo do polvilho da mandioca submetido à fervura para extração final do ácido cianídrico.
Figura 24- Após a evaporação da água o polvilho está pronto para ser armazenado e utilizado quando necessário para a feitura do beiju.
Figura 25- O beiju sendo preparado no interior da oca.
Figura 26- Beiju sendo assado diretamente sobre o
fogo.
Figura 27- Pequi armazenado em cestas de bambu e depositado no lago.
Figura 28- O pequi depois de colhido é colocado em cestas de bambu e depositado no lago para ser ingerido de acordo com a necessidade de cada pessoa. Esta é a fonte de vitamina A do Xingu.
Na verdade, eu que havia
viajado para cuidar de uma população enferma e pretensiosamente acreditava que
iria ensinar coisas a uma população de cultura primitiva, acabei aprendendo uma
lição de vida que me serviu como um grande ensinamento pessoal e profissional
futuro. Enfim, eu definitivamente me apaixonei por aquela “civilização” que
veio desmitificar todos os ensinamentos preconceituosos que eu havia aprendido
nos livros de História do Brasil nos bancos escolares. Eles conquistaram meu coração
e minha mente (Figuras 29-30).
Figura 29- Grupo de mulheres índias com suas filhas, de aspecto altivo e amistoso.
Figura 30- Índia com sua prole e eu, após meu
coração e mente terem sidos conquistados por essa gente.
Nos anos seguintes, ainda durante a minha formação
na Residência Médica, voltei ao PIX como parte integrante da expedição EPM que
rotineiramente para lá se dirigia com o intuito de vacinar a população e cuidar
das possíveis intercorrências médicas. Aquela primeira impressão se reafirmava
agora ainda com maior intensidade, visto que já havia adquirido alguma
experiência clínica, assim, podia ter um melhor juízo de valores quanto às
condições de saúde das crianças índias. Foi a partir desta vivência clínica de
que Eutrofia era o padrão nutricional vigente nesta comunidade é que desenhamos
um projeto de pesquisa para avaliar de forma objetiva e cientificamente
comprovada esta sensação subjetiva que tanto nos chamava a atenção.
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