5.8- O retorno de Perón à Argentina e mais
transformações na vida do país e também na minha
Logo após a eleição de Campora o humor da população
de um modo geral sofreu uma radiante mudança, passaram a ser respirados os ares
de uma plena democracia. Antes, as pessoas não se atreviam a emitir qualquer
opinião política contra o governo militar por puro medo das possíveis
retaliações que poderiam vir a sofrer mas agora, porém, diante da nova
realidade de plena liberdade, tudo transpirava política. A partir daí pude me
dar conta do alto grau de politização que fazia parte da alma do argentino,
desde o mais simples cidadão do ponto de vista educacional e sociocultural,
passando por todas as estratificações, até o mais refinado intelectual. Em
todos os ambientes que eu frequentava, tanto no hospital quanto no bairro onde
eu morava, a política era o tema que predominava em todas as conversas. Como no
Brasil vivíamos uma ditadura militar que já durava nove anos, o que muito
embora a mim não agradasse para nada, eu não havia tido uma participação
política ativa contra a ditadura, entendia que minha função era trabalhar como
médico atendendo a população e continuar a estudar para manter-me atualizado na
minha área de atuação. Na verdade, afora a Medicina meu grande envolvimento era
com o esporte, mais particularmente o futebol, minha eterna paixão, a qual
perdura até os dias atuais. A política não me entusiasmava, na verdade eu não
tinha a consciência da importância do exercício da plena cidadania, poderia
mesmo me considerar um alienado politicamente falando, o tema até mesmo me
aborrecia. Foi o convívio com meus pares no hospital e no bairro onde morava
que, pouco a pouco, fui percebendo, quase de forma inconsciente, que a política
permeia todas as nossas ações na vida, queiramos ou não ela está intimamente
ligada aos nossos destinos. Assim é que no hospital, como que em um passe de
mágica, o assunto das conversas que girava, até então, apenas em torno da
Medicina, começou a dar lugar, mais e mais, às questões políticas pelos quais o
país passava, mas, além disso, vivíamos também a época da plena guerra fria,
portanto, a política mundial necessariamente entrava em cena, em particular o
antagonismo direita-esquerda, capitalismo-socialismo, democracia-comunismo. Eu
me considerava absolutamente neófito neste campo do conhecimento,
principalmente porque meus interlocutores conheciam, pelo menos desde meu ponto
de vista, profundamente o assunto, e, como eu me sentia um total ignorante, me
calava para escutar e aprender. Mas como me referi anteriormente, política
também se discutia no bairro, muito embora em nível bem menos elitizado. Eu
morava em um prédio de três andares pertencente a um único dono e aí
praticamente habitava apenas a sua família que era numerosa. O andar térreo era
todo constituído por lojas que o patriarca alugava para o comércio. Dentre as
várias lojas existentes havia uma quitanda e um açougue como parte do mesmo
negócio que era dirigido por um senhor mais idoso e seus dois filhos que tinham
aproximadamente a minha idade, o Negro e o Pepe. Como aí fazíamos as compras do
dia a dia, pouco a pouco fomo-nos tornando amigos, no princípio por causa do
futebol, mas depois do retorno à democracia a discussão política passou a
preponderar. Em alguns dias da semana, depois de chegar do hospital, no começo
da noite, como na Argentina não se costuma jantar antes das 21 horas, enquanto
minha mulher preparava a comida eu descia para a quitanda para conversar com
eles que sempre me esperavam com uma garrafa de vinho e algum aperitivo. Aí
passávamos longos minutos divagando sobre os mais variados temas políticos, e,
como já houvesse aprendido algo no hospital com meus colegas médicos, aqui eu
me atrevia a dar algumas opiniões, já me sentia seguro para tal. Frequentemente
outras pessoas, geralmente fornecedores de mercadorias, também participavam
desses deliciosos encontros. Uma delas, em particular, o fornecedor de cigarros
que vinha em seu furgãozinho, também da nossa idade, era um peronista fanático,
e por mais que se criticasse Perón, ele apresentava um argumento infalível para
defendê-lo. Dizia ele, meu pai era muito pobre, um simples operário, mas foi no
governo de Perón que ele conseguiu adquirir a sua casa própria, isto tinha um
valor incalculável, era uma dívida de honra contraída com Perón para todo o
sempre. Foi aí que pude entender duas coisas ao mesmo tempo, a primeira delas,
foi a razão pela qual praticamente não havia imóveis para serem alugados em
Buenos Aires, e, a segunda, foi compreender o real significado da expressão
“realizar o sonho de ter a casa própria”, o que a imensa maioria dos meus
compatriotas não possuía. Foi assim, paulatinamente que eu fui me politizando e
desfrutando com entusiasmo o direito da livre expressão, sem censuras externas
ou autocensura, fui sorvendo com enorme alegria esse ambiente de democracia na
sua mais pura conceituação. Havia atingido o que se denomina, em algumas
situações críticas, “o ponto do não retorno”, não conseguiria mais me calar
diante da falta de liberdade de expressão, esta salutar transformação me havia
atingido em cheio e me conquistado definitivamente. Havia assumido um
compromisso moral comigo mesmo que quando retornasse ao Brasil iria lutar
ativamente pela reconquista da democracia. Dito e feito, assim que retornei ao
nosso país passei a batalhar de forma incansável, pacificamente, dentro das
minhas possibilidades, cotidianamente pela volta ao estado de direito
democrático e pelo pleno respeito das liberdades individuais e coletivas. Eu
que havia viajado apenas para fazer uma especialização em Gastroenterologia
Pediátrica, retornaria com mais uma bagagem no meu currículo pessoal, ter me
transformado em um ser político, um defensor incondicional da democracia.
As discussões políticas, entretanto, não impediam
que eu continuasse a desempenhar ativamente minhas tarefas assistenciais e de
pesquisa, mesmo porque, estas conversas ocorriam nos intervalos das nossas
atividades, durante o café no meio da manhã e o almoço, conforme está
registrado no meu diário:
”...tenho aproveitado muito as seções de Raios-X,
uma vez por semana as rotineiras, mas na realidade tenho ido de duas a três
vezes por semana para acompanhar os meus pacientes. É muito interessante
principalmente acompanhar os exames contrastados visualizando também a
radioscopia, o que nos dá uma excelente noção da dinâmica do trato digestivo.
Nunca tinha visto tanta chapa de estômago em toda minha vida e mais uma vez a
verdade se repete, quem procura acha, e tenho achado úlceras gástricas e
duodenais em crianças.
Tenho estudado bastante e procurado muita
bibliografia sobre tudo aquilo que diz respeito à gastroenterologia. Fiz, ou
melhor, estou terminando de fazer, pelo Current Contents (era a melhor e mais
moderna forma de se pesquisar a literatura médica na época, ainda não existia
internet nem o Google), uma completa revisão de 1972 e praticamente enchi um
caderno com referências bibliográficas. Continuo, porém, angustiado em querer
estudar tudo e aprender tudo sobre esse mundo que é a gastroenterologia, e,
evidentemente, não consigo dominar nem sobre 1/10 das informações disponíveis.
No entanto, continuo buscando coisas novas para estudar.
Meu entendimento com o pessoal aqui é muito bom e já fiz grandes amizades, principalmente com dois especializandos de La Plata. Um deles, Eduardo Cueto Rua (Figura 1), desenvolve um trabalho sobre Balanço Metabólico, que por sinal é uma coisa muito interessante.
Figura 1- Eduardo Cueto Rua cuidando de uma criança
colocada em "Balance" (Balanço Metabólico), notar embaixo da cama a
proveta volumétrica que era utilizada para mensurar as perdas fecais separadas
de urina. Cueto era um dos especializandos de La Plata de quem tornei-me íntimo
amigo, amizade que perdura inabalável até os dias atuais. Cueto trabalha no
Hospital Soror Ludovica em La Plata aonde é chefe do Serviço de
Gastroenterologia; ele tem especial interesse pela Doença Celíaca.
Consiste em colocar a criança (tem que ser do sexo
masculino) em uma cama cujo colchão tem um orifício na sua porção central, de
tal forma a permitir que sejam coletadas separadamente as fezes da urina.
Sabendo-se rigorosamente o que a criança ingeriu de líquidos e nutrientes,
pode-se determinar com alto grau de precisão, confrontando-se os ingressos com
as excreções urinárias e fecais, bem como medindo-se o volume das excretas e
dosando-se a quantidade de gorduras, proteínas e açúcares nas fezes, se as
perdas são normais ou anormais, e neste último caso qual a intensidade da
anormalidade.
Aqui no hospital meu cartaz com o pessoal médico e
da manutenção está grande por causa do futebol, estamos disputando um
campeonato inter-hospitalar e temos ganhado todas as partidas, eu sou o
artilheiro do torneio (o futebol sempre me ajudou na vida).
Em resumo estou muito feliz aqui e penso que
sentirei muita saudade de tudo e de todos quando voltar ao Brasil; como
experiência médica, mas, principalmente de vida, acho que todos deveriam
experimentar uma coisa assim. Vale a pena!”
5.9-
A implantação do Balanço Metabólico no Hospital Umberto I e os conhecimentos
científicos proporcionados
Alguns anos após retornar ao Brasil, depois de
inúmeras tentativas frustradas, finalmente, trabalhando no hospital Umberto I
como chefe do Serviço de Pediatria, em meados da década de 1980, consegui criar
uma Unidade Metabólica com a finalidade de oferecer um ótimo cuidado
assistencial aos nossos pacientes portadores de Diarreia Aguda e Diarreia
Persistente, à qual, em homenagem ao meu saudoso mestre, foi denominada Unidade
Metabólica “Horácio Toccalino”. Para que nosso objetivo fosse atingido a
implantação da técnica do Balanço Metabólico passava a ser de fundamental
importância. Os Médicos Residentes foram persistentemente conscientizados da
suma importância da implantação desta técnica, de tal forma que em pouco tempo
passamos a ter a irrestrita colaboração de todo o corpo assistencial de saúde.
Entretanto, devido ao insano trabalho para controlar todas as variáveis a cama
metabólica recebeu o sugestivo apelido de “cama diabólica”, mas era unânime a
opinião de que sua utilidade mostrava-se de inestimável valor para oferecer o
melhor cuidado assistencial aos nossos pacientes (Figuras 2-3-4).
Figura 2- Visão da entrada da Unidade Metabólica do
Hospital Umberto I inaugurada no final da década de 1980 em homenagem a Dr.
Horácio Toccalino.
Figura 3- Paciente portador de diarréia persistente
e desnutrição grave colocado em balanço metabólico no Hospital Umberto I.
Figura 4- Visão de uma das salas da Unidade
Metabólica Dr. Horácio Toccalino no Hospital Umberto I, observando-se as
enfermeiras cuidando de pacientes que se recuperaram do quadro diarréico
enquanto um outro paciente encontra-se na cama "diabólica" realizando
balanço metabólico.
A implantação do Balanço Metabólico, com sucesso, passou a nos permitir o cálculo, com exatidão, das perdas hidroeletrolíticas e nutricionais dos pacientes, o que nos trouxe conhecimentos fantásticos a respeito dessas doenças. As taxas de mortalidade intra-hospitalar por Diarreia Aguda caíram a ZERO e as por Diarreia Persistente se mantiveram sempre abaixo dos 5%. Estes resultados espetaculares no tratamento destas enfermidades que, em passado não remoto, haviam sido as principais causas de mortalidade intra-hospitalar no nosso meio, consequentemente, possibilitaram a realização de inúmeras publicações em periódicos médicos nacionais e internacionais, nos quais relatávamos os meios pelos quais os êxitos haviam sido alcançados (vide Curriculum vitae seções Artigos publicados em periódicos e Orientações de Teses de Mestrado e Doutorado).
5.9-
A vida de bairro em Buenos Aires
Retornemos novamente aos acontecimentos cotidianos
da minha vida social. Morávamos em um bairro tipicamente de classe média, muito
tranquilo e totalmente seguro, tudo se assemelhava aos idos dos anos 1950 em
São Paulo, as compras eram feitas diariamente na quitanda, no empório,
localizados no mesmo quarteirão do nosso apartamento, não havia qualquer
supermercado por perto, caminhava-se pelas ruas com absoluta segurança a
qualquer hora do dia ou da noite. Assim que nos instalamos começamos a travar
relações sociais com nossos vizinhos e comerciantes; como se tratava de um
bairro predominantemente de origem judaica, nós éramos vistos como seres um
tanto exóticos, primeiro por não sermos judeus e segundo porque éramos
brasileiros, o que se constituía, naquela época, algo extremamente inusitado de
se observar. Apesar de haver a barreira do idioma que pouco a pouco foi sendo
vencida, éramos tratados com muita gentileza e também curiosidade por toda a
vizinhança, e, para nossa surpresa, ao tomarem conhecimento que eu era médico
passou a haver até mesmo certa reverência no tratamento pessoal. Conversando
com as pessoas, ao saberem que eu era fanático por futebol houve uma
mobilização no bairro para se formar um time, o que rapidamente aconteceu, em
pouco tempo já estávamos disputando algumas partidas amistosas contra outros
times das proximidades, nos fins de semana, inicialmente no Parque Palermo, em
campos improvisados (Figura 5).
Posteriormente, em virtude do sucesso da empreitada, pois vencíamos quase todas as partidas, tornamo-nos mais organizados e ambiciosos. Meus entusiasmados companheiros começaram a se movimentar em busca de adversários mais qualificados, aí passamos a jogar em campos de várzea contra equipes bem formadas, com isso os desafios foram aumentando, era necessário reforçar nosso time para seguirmos vencendo. Foi em uma dessas buscas por reforços que surgiram 2 novos jogadores de alta qualidade e que ao me virem jogando fizeram-me um convite extremamente excitante, disputar pela equipe à qual eles estavam oficialmente vinculados o Campeonato Amador de Buenos-Aires, no Parque Saavedra. Tive um momento de grande hesitação porque se aceitasse este convite teria obrigatoriamente que abandonar o compromisso anteriormente assumido com meus companheiros do bairro, porém tudo ficou resolvido a contento, porque foram os próprios companheiros que se sentiram altamente orgulhosos pelo convite por mim recebido, assim, a decisão de disputar o campeonato tornou-se automática. A equipe pela qual passei a jogar era do bairro Belgrano, ficava a uns poucos quilômetros da minha casa, chamava-se El Faro, posto que sua sede se localizasse em uma linda confeitaria de mesmo nome. Passei assim a satisfazer minha eterna paixão, o esporte competitivo, era uma alegria imensa ir aos domingos pela manhã jogar pelo time que me adotou de imediato um campeonato da cidade. Naquela ocasião o Brasil ainda desfrutava um extraordinário prestigio em decorrência da conquista do tricampeonato mundial no México em 1970, e o apelido mais elogioso que se podia aplicar para um bom jogador brasileiro era Pelé, que naquela época se encontrava no auge da sua carreira. Pois bem, El Faro tinha a tradição de ser um time intermediário neste campeonato que reunia os melhores times amadores de Buenos Aires, e, pela primeira vez em sua estória tinha um jogador brasileiro em suas fileiras que, além disso, era centro-avante. Domingo após domingo o El Faro ia colecionando vitórias, eu ia marcando muitos gols, para surpresa geral nos mantínhamos na liderança do campeonato, o comentário geral era que isso se devia graças aos inúmeros gols marcados pelo “brasileño”, que agora recebeu o apelido que me encheu de orgulho: “Pelé Blanco” (Figuras 6-7).
Figura 6- Meu time El Faro antes de uma partida do campeonato amador de Buenos Aires.
Infelizmente, na parte final do campeonato eu sofri minha primeira e única distensão muscular, na parte posterior da coxa direita, não pude mais jogar. O El Faro já não fazia tantos gols como havia se acostumado a fazer, perdeu algumas partidas, terminou o campeonato em um honroso terceiro lugar, sua melhor colocação até então, o que me deixou um tanto frustrado. Por outro lado, restou o enorme prazer de ter disputado um campeonato de alto nível, ter sido reconhecido pelos meus pares como excelente jogador de futebol e acima de tudo ter aprendido muito com a escola argentina de futebol, o que trouxe grandes benefícios posteriores na minha longa e apaixonante vida de jogador de bola, tudo isso enfim, permaneceu por todo o sempre como reminiscências inesquecíveis.
No tocante às questões sociais a vida na Argentina,
naquela época, era bastante barata, praticamente não havia inflação, o câmbio
nos favorecia significativamente, de tal forma que embora o salário de
residente, que eu percebia, fosse apenas simbólico, como eu recebia o aluguel
de uma casa em São Paulo, podíamos manter um nível de vida modesto, porém sem
penúria. Como nossos amigos mais próximos eram os especializandos de La Plata,
Eduardo Cueto Rua, Jorge Donatone, Luis Guimarey e “Negro” Rodrigues (Figuras
8-9-10-11-12) que também levavam uma vida muito modesta porque os salários eram
baixos, costumávamos com frequência nos reunir nos fins de semana, no nosso
apartamento em Buenos Aires ou viajávamos a La Plata, para longas conversas
regadas com um vinho nacional barato, porém decente, e comer fantásticos
“asados” (churrascos), porque a carne deles é realmente imbatível, além de
barata.
Figura 8- Nosso filho Uly passeando em pleno
inverno portenho no parque Centenário em um fim de semana. Neste parque que se
localizava próximo ao nosso apartamento eu costumava dar minhas corridas na
volta do hospital.
Figura 9- Desfrutando com os amigos de la Plata um
"Asado" na casa quinta do sogro de Cueto, o advogado Dr. Carrera.
Figura 10- Mais uma visão do galpão aonde se comiam
os "Asados", na casa quinta em Villa Eliza próximo de La Plata.
Figura 11- Nosso filho Uly brincando com Mercedita,
filha de Cueto, na casa quinta de Dr. Carrera.
Figura 12- Uma foto histórica, que nunca mais pode
ser repetida, com os quatro amigos "Platenses", da esquerda para a
direita, Guimarey, Donatone, Cueto, eu e "Negro" Rodrigues.
Vivíamos modestamente, mas a família estava
profundamente unida e feliz, tamanha era a felicidade que em Buenos Aires, como
uma homenagem a quem nos acolheu com tanto carinho, foi gerada nossa segunda
filha, Juliana, a “porteña”, hoje professora de inglês e atriz de enorme
talento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário