sexta-feira, 30 de maio de 2014

Sensibilidade ao Glúten sem Doença Celíaca

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

Diretor Médico do Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo (IGastroped) 


Introdução

A Sensibilidade ao Glúten sem Doença Celíaca (SGSDC) foi originalmente descrita por Cooper e cols., em 1980 (1), em um grupo de 8 mulheres adultas que sofriam de dor abdominal e diarreia crônica as quais eram geralmente incapacitantes e frequentemente noturnas, que apresentavam alivio significativo com a utilização de dieta isenta de glúten, e cujos sintomas recidivavam com a reintrodução do glúten na dieta. Múltiplas biópsias de jejuno não revelaram alterações significativas compatíveis com aquelas descritas na Doença Celíaca (DC). Os autores concluíram que estas pacientes apresentavam diarreia sensível ao glúten, mas que não demonstravam quaisquer evidências de DC. Desde então, esta entidade clínica permaneceu no esquecimento até que Sapone e cols., em 2010 (2), redescobriram esta enfermidade, a qual se caracterizava pela presença de sintomas intestinais e extra intestinais relacionados com a ingestão de alimentos contendo glúten em indivíduos que não sofriam de DC ou Alergia ao Trigo (AT). A partir deste novo relato da SGSDC, rapidamente um número cada vez maior de artigos tem sido publicados por inúmeros grupos independentes, confirmando que a SGSDC deve ser definitivamente incluída no espectro dos transtornos relacionados ao glúten (3-4-5-6). Entretanto, os mais diversos aspectos da epidemiologia, fisiopatologia, espectro clínico e tratamento da SG ainda permanecem obscuros. Os esclarecimentos destes aspectos até o momento não elucidados deverão ser alcançados através de investigações clínicas e laboratoriais utilizando metodologia científica reconhecidamente válida, através de estudos multicêntricos e prospectivos envolvendo a SGSDC.

Doença Celíaca versus Sensibilidade ao Glúten Sem Doença Celíaca

Existe um acordo global de que o termo “transtornos relacionados ao glúten” é uma denominação “guarda-chuva” que deve ser utilizado para descrever todas as condições clínicas relacionadas à ingestão de alimentos que contém glúten.

A DC é uma enfermidade autoimune sistêmica causada por uma intolerância permanente ao glúten – principal fonte proteica presente no trigo, centeio e cevada – que afeta indivíduos geneticamente predispostos (7). Trata-se de uma enfermidade com característica peculiar, pois necessariamente envolve a associação de um fator da dieta (glúten) com uma particularidade genética, a presença do Antígeno Leucocitário Humano (HLA) DQ2/DQ8.    

A DC pode se apresentar em qualquer grupo etário e determinar uma multiplicidade de manifestações clínicas, isto é, abrange um amplo espectro de sintomas que podem ser tanto digestivos quanto extra digestivos, circunstâncias estas que provavelmente possam explicar um retardo no diagnóstico.

As formas de apresentação da DC são: 1) Clássica - predomínio dos sintomas digestivos: diarreia crônica, perda de peso, parada do crescimento, distensão abdominal, edema; 2) Atípica - sintomas digestivos mínimos ou ausentes: anemia, baixa estatura, anorexia, osteoporose, alterações do esmalte dentário, alopecia, epilepsia, atraso da puberdade; 3) Silente – ausência de quaisquer sintomas, porém com sorologia positiva e atrofia vilositária duodenal. Nesta circunstância, a DC é detectada em estudos populacionais, em familiares de pacientes portadores de DC, em indivíduos de alto risco para DC, ou ainda, naqueles pacientes que foram submetidos à endoscopia digestiva alta por motivos não relacionados à DC, mas que vieram a apresentar atrofia vilositária da mucosa duodenal; 4) Latente – sintomático ou assintomático, sorologia positiva, marcadores genéticos susceptíveis, porém, com biópsia duodenal normal ou discreto número de linfócitos intra-epiteliais.

Recentemente, em Munique, em dezembro de 2012, foi realizado o Segundo Encontro de Experts sobre SGSDC (8) para avaliar e discutir os maiores avanços e as atuais tendências da SGSDC, cujas conclusões estão descritas a seguir.

A SGSDC é uma entidade clínica na qual os sintomas são desencadeados pela ingestão do glúten, na ausência de anticorpos celíacos específicos e da clássica atrofia vilositária do intestino delgado observada na DC, com condição variável do HLA e possível positividade da primeira geração de anticorpos antigliadina IgG (AGA) (56,4%). Por outro lado, a prevalência de IgA AGA nos pacientes com SGSDC tem se revelado muito baixa (7,7%). É importante salientar que os melhores marcadores sorológicos (anticorpo antitransglutaminase e antiendomisio) para DC tem sempre se revelado negativos nos pacientes com SGSDC. Vale ressaltar que o painel de experts concordou que esta nomenclatura seja provisória e que deverá haver refinamento da mesma em um breve futuro.

Manifestações Clínicas, Diagnóstico e Tratamento da SGSDC

A SGSDC caracteriza-se por sintomas que usualmente aparecem logo após a ingestão de glúten, desaparecem com a retirada do glúten da dieta e reaparecem nas próximas horas ou poucos dias subsequentes, após um teste de provocação com glúten. A manifestação clássica da SGSDC é uma combinação de sintomas similares aos observados na Síndrome do Intestino Irritável (SII) incluindo dor abdominal, flatulência, alterações do hábito intestinal (diarreia ou constipação), e manifestações sistêmicas tais como, confusão mental, cefaleia, cansaço, dores musculares e nas articulações, dermatite, depressão e anemia. Quando os pacientes são atendidos em uma clínica especializada, muitos deles espontaneamente relatam uma relação causal entre a ingestão de alimentos contendo glúten e o agravamento dos sintomas. Nas crianças, a SGSDC manifesta-se tipicamente por meio de sintomas gastrointestinais, tais como, dor abdominal e diarreia crônica; manifestações extra intestinais parecem ser menos frequentes nas crianças, e nestas últimas o sintoma mais comum tem sido cansaço. Sapone e cols. (9), realizaram biópsia de intestino delgado em pacientes com SGSDC e demonstraram mínimas alterações da mucosa jejunal (Marsh 0-1), enquanto que nos celíacos ocorreu atrofia vilositária subtotal e hiperplasia críptica. Vale ressaltar que até o presente momento não se tem conhecimento dos mecanismos fisiopatológicos envolvidos na gênese desta entidade e nem tampouco encontra-se disponível um marcador bioquímico que possibilite caracterizar seu diagnóstico laboratorial. O diagnóstico deste transtorno nutricional se estabelece por meio do teste de provocação que preferentemente deve ser realizado pela técnica duplo-cego, placebo-controlada. O tratamento preconizado é a eliminação do glúten da dieta do paciente.

SGSDC E SII: uma relação complexa

Vasquez-Roque e cols. (10), em 2013, demonstraram que pacientes não celíacos portadores da SII com predominância da variante diarreia, podem desenvolver sintomas gastrointestinais após a ingestão de glúten. Estes pacientes ao receberem uma dieta contendo glúten apresentavam maior número de evacuações por dia, particularmente aqueles cujo genótipo era HLA-DQ2 e/ou DQ8. A dieta contendo glúten mostrou-se associada com um aumento da permeabilidade do intestino delgado e uma significativa diminuição na expressão da zonula ocludens 1 da mucosa colônica. Estes efeitos foram significativamente maiores nos pacientes HLA-DQ2 e DQ8 positivos. Por outro lado, pacientes que receberam dieta contendo glúten versus aqueles que receberam dieta isenta de glúten, não apresentaram alterações significativas sobre o trânsito gastrointestinal ou na morfologia do intestino delgado. Os autores concluíram que o glúten provoca ruptura da barreira de permeabilidade intestinal nos pacientes com SII com diarreia, particularmente naqueles HLA-DQ2 e DQ8 positivos. As alterações na barreira de permeabilidade intestinal permitiram oferecer explanações mecânicas a respeito das observações de que a retirada do glúten da dieta pode provocar alivio dos sintomas nos pacientes portadores de SII com diarreia.

SGSDC, SII e os carboidratos fermentáveis não absorvíveis, em especial os Frutanos

Recentemente, Biesiekierski e cols. (11), em 2013, investigando pacientes portadores de SII com diarreia demonstraram que as alterações do hábito intestinal se deviam principalmente à presença de carboidratos fermentáveis não absorvíveis na dieta. Ao eliminar essas substâncias, porém, ainda que mantivessem alimentos contendo glúten ocorria um alívio dos sintomas digestivos. Esses autores passaram a utilizar a sigla FODMAPs (fermentable oligosaccharides, disaccharides, monossaccharides and polyols), que significa carboidratos fermentáveis não absorvíveis, em especial os frutanos. Frutanos são polímeros da frutose sintetizados a partir da sacarose e que ocorrem na natureza no mundo vegetal em inúmeros alimentos comumente utilizados na dieta ocidental. Essas substâncias não são digeridas e consequentemente não são absorvidas pelo trato digestivo do ser humano. Alcançam o intestino grosso e aí são fermentadas pelas bactérias da flora colônica, sendo transformadas em ácidos graxos de cadeia média com alto poder osmótico. A presença destas substâncias no lúmen intestinal provoca flatulência, dor abdominal e diarreia, em especial nos pacientes portadores de SII. O trigo é a maior fonte dietética de frutano, e este, além do glúten, é um aspecto que deve ser levado em consideração como mais um fator potencial causador de sintomas, posto que o trigo está presente em praticamente todas as refeições tradicionais do mundo ocidental, tais como: pães, cereais, macarrão, bolos, biscoitos e etc. Vale salientar que, além do trigo os frutanos estão presentes em inúmeros outros alimentos de uso comum em nossas dietas, tais como: feijão, feijão branco, grão de bico, ervilha, lentilha, banana, cebola, alho, repolho, alho poró e etc.  Por esta razão, Biesiekierski e cols. (11) propõem que nos pacientes portadores de SII com diarreia e intolerantes ao glúten e aos frutanos seja utilizada uma dieta restritiva destes alimentos.

Conclusões

Considerando que a SGSDC se trata de uma entidade clínica recentemente redescoberta e com limitado número de publicações, até o presente momento disponíveis na literatura científica, inúmeras questões a respeito deste transtorno digestivo ainda necessitam ser respondidas com maior precisão. Seria a SGSDC um transtorno permanente ou transitório? Seria o limiar de sensibilidade o mesmo para todos os pacientes, ou haveria um limiar variável de indivíduo para indivíduo, e no mesmo indivíduo haveria variação com o decorrer do tempo? Seria apenas o glúten o causador dos sintomas ou haveria também uma associação com os carboidratos fermentáveis e não digeridos? Qual é a verdadeira prevalência da SGSDC? Atualmente a prevalência relatada na literatura varia de 0,5 a 6%, números estes baseados em estudos realizados em diversos centros médicos, mas desprovidos de uma uniformidade científica no desenho dos projetos de pesquisa. Portanto, tornam-se cada vez mais urgentes investigações clínicas e laboratoriais de reconhecido valor científico que possam vir elucidar um sem inúmero de dúvidas ainda existentes a respeito de tão importante, intrigante e atual problema, que afeta um número cada vez mais crescente de indivíduos em todo o universo.


Referências Bibliográficas

1)   Cooper BT e cols. Gastroenterology 1980;79:801-6.
2)   Sapone  A e cols. Int Arch Allergy Immunol 2010;152:75-80.
3)   Matuchansky C. Gastroenterology 2013;145:692-95.
4)   Shepherd SJ e cols. J Am Diet Assoc 2006;106:1631-39.
5)   Staudacher HM e cols. J Nutr 2012;142:1510-18.
6)   Gibson PR e cols. Am J Gastroenterol 2012;107:657-66.
7)   Fasano A e cols. Gastroenterology 2001;120:636-51.
8)   Catassi C e cols. Nutrients 2013;5:3839-53.
9)   Sapone A e cols. BMC Med 2012;10:1741-50.
10)    Vasquez-Roque MI e cols. Gastroenterology 2013;144:903-11.
11)    Biesiekierski J e cols. Gastroenterology 2013;145:320-8.



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