Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Diretor Médico do Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo (IGastroped)
Introdução
A
Sensibilidade ao Glúten sem Doença Celíaca (SGSDC) foi originalmente descrita
por Cooper e cols., em 1980 (1), em um grupo de 8 mulheres adultas que sofriam
de dor abdominal e diarreia crônica as quais eram geralmente incapacitantes e
frequentemente noturnas, que apresentavam alivio significativo com a utilização
de dieta isenta de glúten, e cujos sintomas recidivavam com a reintrodução do
glúten na dieta. Múltiplas biópsias de jejuno não revelaram alterações
significativas compatíveis com aquelas descritas na Doença Celíaca (DC). Os
autores concluíram que estas pacientes apresentavam diarreia sensível ao
glúten, mas que não demonstravam quaisquer evidências de DC. Desde então, esta
entidade clínica permaneceu no esquecimento até que Sapone e cols., em 2010
(2), redescobriram esta enfermidade, a qual se caracterizava pela presença de
sintomas intestinais e extra intestinais relacionados com a ingestão de
alimentos contendo glúten em indivíduos que não sofriam de DC ou Alergia ao
Trigo (AT). A partir deste novo relato da SGSDC, rapidamente um número cada vez
maior de artigos tem sido publicados por inúmeros grupos independentes,
confirmando que a SGSDC deve ser definitivamente incluída no espectro dos
transtornos relacionados ao glúten (3-4-5-6). Entretanto, os mais diversos
aspectos da epidemiologia, fisiopatologia, espectro clínico e tratamento da SG
ainda permanecem obscuros. Os esclarecimentos destes aspectos até o momento não
elucidados deverão ser alcançados através de investigações clínicas e laboratoriais
utilizando metodologia científica reconhecidamente válida, através de estudos
multicêntricos e prospectivos envolvendo a SGSDC.
Doença Celíaca versus Sensibilidade ao Glúten Sem
Doença Celíaca
Existe
um acordo global de que o termo “transtornos relacionados ao glúten” é uma
denominação “guarda-chuva” que deve ser utilizado para descrever todas as
condições clínicas relacionadas à ingestão de alimentos que contém glúten.
A
DC é uma enfermidade autoimune sistêmica causada por uma intolerância permanente
ao glúten – principal fonte proteica presente no trigo, centeio e cevada – que
afeta indivíduos geneticamente predispostos (7). Trata-se de uma enfermidade
com característica peculiar, pois necessariamente envolve a associação de um
fator da dieta (glúten) com uma particularidade genética, a presença do
Antígeno Leucocitário Humano (HLA) DQ2/DQ8.
A
DC pode se apresentar em qualquer grupo etário e determinar uma multiplicidade
de manifestações clínicas, isto é, abrange um amplo espectro de sintomas que
podem ser tanto digestivos quanto extra digestivos, circunstâncias estas que
provavelmente possam explicar um retardo no diagnóstico.
As formas de apresentação da DC são:
1) Clássica - predomínio dos sintomas digestivos: diarreia crônica,
perda de peso, parada do crescimento, distensão abdominal, edema; 2) Atípica -
sintomas digestivos mínimos ou ausentes: anemia, baixa estatura, anorexia,
osteoporose, alterações do esmalte dentário, alopecia, epilepsia, atraso da
puberdade; 3) Silente – ausência de quaisquer sintomas, porém
com sorologia positiva e atrofia vilositária duodenal. Nesta
circunstância, a DC é detectada em estudos populacionais, em familiares de
pacientes portadores de DC, em indivíduos de alto risco para DC, ou ainda,
naqueles pacientes que foram submetidos à endoscopia digestiva alta por motivos
não relacionados à DC, mas que vieram a apresentar atrofia vilositária da
mucosa duodenal; 4) Latente – sintomático ou assintomático, sorologia
positiva, marcadores genéticos susceptíveis, porém, com biópsia duodenal normal
ou discreto número de linfócitos intra-epiteliais.
Recentemente,
em Munique, em dezembro de 2012, foi realizado o Segundo Encontro de Experts
sobre SGSDC (8) para avaliar e discutir os maiores avanços e as atuais
tendências da SGSDC, cujas conclusões estão descritas a seguir.
A
SGSDC é uma entidade clínica na qual os sintomas são desencadeados pela
ingestão do glúten, na ausência de anticorpos celíacos específicos e da
clássica atrofia vilositária do intestino delgado observada na DC, com condição
variável do HLA e possível positividade da primeira geração de anticorpos
antigliadina IgG (AGA) (56,4%). Por outro lado, a prevalência de IgA AGA nos
pacientes com SGSDC tem se revelado muito baixa (7,7%). É importante salientar
que os melhores marcadores sorológicos (anticorpo antitransglutaminase e
antiendomisio) para DC tem sempre se revelado negativos nos pacientes com
SGSDC. Vale ressaltar que o painel de experts concordou que
esta nomenclatura seja provisória e que deverá haver refinamento da mesma em um
breve futuro.
Manifestações Clínicas, Diagnóstico e Tratamento
da SGSDC
A
SGSDC caracteriza-se por sintomas que usualmente aparecem logo após a ingestão
de glúten, desaparecem com a retirada do glúten da dieta e reaparecem nas
próximas horas ou poucos dias subsequentes, após um teste de provocação com
glúten. A manifestação clássica da SGSDC é uma combinação de sintomas similares
aos observados na Síndrome do Intestino Irritável (SII) incluindo dor
abdominal, flatulência, alterações do hábito intestinal (diarreia ou
constipação), e manifestações sistêmicas tais como, confusão mental, cefaleia,
cansaço, dores musculares e nas articulações, dermatite, depressão e anemia.
Quando os pacientes são atendidos em uma clínica especializada, muitos deles
espontaneamente relatam uma relação causal entre a ingestão de alimentos
contendo glúten e o agravamento dos sintomas. Nas crianças, a SGSDC
manifesta-se tipicamente por meio de sintomas gastrointestinais, tais como, dor
abdominal e diarreia crônica; manifestações extra intestinais parecem ser menos
frequentes nas crianças, e nestas últimas o sintoma mais comum tem sido
cansaço. Sapone e cols. (9), realizaram biópsia de intestino delgado em
pacientes com SGSDC e demonstraram mínimas alterações da mucosa jejunal (Marsh
0-1), enquanto que nos celíacos ocorreu atrofia vilositária subtotal e
hiperplasia críptica. Vale ressaltar que até o presente momento não se tem
conhecimento dos mecanismos fisiopatológicos envolvidos na gênese desta
entidade e nem tampouco encontra-se disponível um marcador bioquímico que
possibilite caracterizar seu diagnóstico laboratorial. O diagnóstico deste
transtorno nutricional se estabelece por meio do teste de provocação que
preferentemente deve ser realizado pela técnica duplo-cego, placebo-controlada.
O tratamento preconizado é a eliminação do glúten da dieta do paciente.
SGSDC E SII: uma relação complexa
Vasquez-Roque
e cols. (10), em 2013, demonstraram que pacientes não celíacos portadores da
SII com predominância da variante diarreia, podem desenvolver sintomas
gastrointestinais após a ingestão de glúten. Estes pacientes ao receberem uma
dieta contendo glúten apresentavam maior número de evacuações por dia,
particularmente aqueles cujo genótipo era HLA-DQ2 e/ou DQ8. A dieta contendo
glúten mostrou-se associada com um aumento da permeabilidade do intestino
delgado e uma significativa diminuição na expressão da zonula ocludens 1
da mucosa colônica. Estes efeitos foram significativamente maiores nos
pacientes HLA-DQ2 e DQ8 positivos. Por outro lado, pacientes que receberam
dieta contendo glúten versus aqueles que receberam dieta isenta de glúten, não
apresentaram alterações significativas sobre o trânsito gastrointestinal ou na
morfologia do intestino delgado. Os autores concluíram que o glúten provoca
ruptura da barreira de permeabilidade intestinal nos pacientes com SII com
diarreia, particularmente naqueles HLA-DQ2 e DQ8 positivos. As alterações na
barreira de permeabilidade intestinal permitiram oferecer explanações mecânicas
a respeito das observações de que a retirada do glúten da dieta pode provocar
alivio dos sintomas nos pacientes portadores de SII com diarreia.
SGSDC, SII e os carboidratos fermentáveis não
absorvíveis, em especial os Frutanos
Recentemente,
Biesiekierski e cols. (11), em 2013, investigando pacientes portadores de SII
com diarreia demonstraram que as alterações do hábito intestinal se deviam
principalmente à presença de carboidratos fermentáveis não absorvíveis na
dieta. Ao eliminar essas substâncias, porém, ainda que mantivessem alimentos
contendo glúten ocorria um alívio dos sintomas digestivos. Esses autores
passaram a utilizar a sigla FODMAPs (fermentable
oligosaccharides, disaccharides, monossaccharides and polyols), que
significa carboidratos fermentáveis não absorvíveis, em especial os frutanos.
Frutanos são polímeros da frutose sintetizados a partir da sacarose e que
ocorrem na natureza no mundo vegetal em inúmeros alimentos comumente utilizados
na dieta ocidental. Essas substâncias não são digeridas e consequentemente não
são absorvidas pelo trato digestivo do ser humano. Alcançam o intestino grosso
e aí são fermentadas pelas bactérias da flora colônica, sendo transformadas em
ácidos graxos de cadeia média com alto poder osmótico. A presença destas
substâncias no lúmen intestinal provoca flatulência, dor abdominal e diarreia,
em especial nos pacientes portadores de SII. O trigo é a maior fonte dietética
de frutano, e este, além do glúten, é um aspecto que deve ser levado em
consideração como mais um fator potencial causador de sintomas, posto que o
trigo está presente em praticamente todas as refeições tradicionais do mundo
ocidental, tais como: pães, cereais, macarrão, bolos, biscoitos e etc. Vale
salientar que, além do trigo os frutanos estão presentes em inúmeros outros
alimentos de uso comum em nossas dietas, tais como: feijão, feijão branco, grão
de bico, ervilha, lentilha, banana, cebola, alho, repolho, alho poró e
etc. Por esta razão, Biesiekierski e cols. (11) propõem que nos
pacientes portadores de SII com diarreia e intolerantes ao glúten e aos
frutanos seja utilizada uma dieta restritiva destes alimentos.
Conclusões
Considerando
que a SGSDC se trata de uma entidade clínica recentemente redescoberta e com
limitado número de publicações, até o presente momento disponíveis na
literatura científica, inúmeras questões a respeito deste transtorno digestivo
ainda necessitam ser respondidas com maior precisão. Seria a SGSDC um
transtorno permanente ou transitório? Seria o limiar de sensibilidade o mesmo
para todos os pacientes, ou haveria um limiar variável de indivíduo para
indivíduo, e no mesmo indivíduo haveria variação com o decorrer do tempo? Seria
apenas o glúten o causador dos sintomas ou haveria também uma associação com os
carboidratos fermentáveis e não digeridos? Qual é a verdadeira prevalência da
SGSDC? Atualmente a prevalência relatada na literatura varia de 0,5 a 6%,
números estes baseados em estudos realizados em diversos centros médicos, mas
desprovidos de uma uniformidade científica no desenho dos projetos de pesquisa.
Portanto, tornam-se cada vez mais urgentes investigações clínicas e
laboratoriais de reconhecido valor científico que possam vir elucidar um sem
inúmero de dúvidas ainda existentes a respeito de tão importante, intrigante e
atual problema, que afeta um número cada vez mais crescente de indivíduos em
todo o universo.
Referências Bibliográficas
1)
Cooper BT e cols.
Gastroenterology 1980;79:801-6.
2)
Sapone A e cols. Int Arch Allergy Immunol
2010;152:75-80.
3)
Matuchansky C.
Gastroenterology 2013;145:692-95.
4)
Shepherd SJ e cols. J Am
Diet Assoc 2006;106:1631-39.
5)
Staudacher HM e cols. J
Nutr 2012;142:1510-18.
6)
Gibson PR e cols. Am J
Gastroenterol 2012;107:657-66.
7)
Fasano A e cols.
Gastroenterology 2001;120:636-51.
8)
Catassi C e cols.
Nutrients 2013;5:3839-53.
9)
Sapone A e cols. BMC Med
2012;10:1741-50.
10)
Vasquez-Roque MI e cols.
Gastroenterology 2013;144:903-11.
11)
Biesiekierski J e cols.
Gastroenterology 2013;145:320-8.