sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade emergente no mundo atual (4)

Conceito da Barreira de Permeabilidade Intestinal (continuação)


Em situações patológicas, como por exemplo, nas infecções entéricas por determinados agentes enteropatogênicos, a função seletiva destes poros intercelulares pode estar seriamente comprometida, e, portanto, passar a dar lugar para a penetração maciça de antígenos e levar ao surgimento de alergias alimentares (Figuras 18 e 19).


Figura 18 - Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum em grande aumento, corte semi-fino, mostrando colônias de Escherichia coli enteropatogênica firmemente aderidas à superfície mucosa provocando intensas alterações morfológicas no epitélio intestinal.

Figura 19- Esquema gráfico da sequência fisiopatológica da provocação de AA devido à infecção por Escherichia coli enteropatogênica.
Figura 20- Representação esquemática da barreira da mucosa intestinal.

Além do sistema imunológico, a barreira de permeabilidade intestinal é também formada pelas próprias células epiteliais. Caso, por alguma razão, antígenos ou fragmentos de antígenos potencialmente alergênicos consigam aderir à superfície luminal dos enterócitos, estes serão interiorizados ao citoplasma por um mecanismo de endocitose (reverso da fagocitose); já agora no interior do citoplasma serão atacados e devidamente digeridos pelos lisosomas produzidos pelo aparelho de Golgi, perdendo, assim, sua capacidade de estímulo antigênico. Finalmente serão eliminados da célula no espaço baso lateral por um processo de exocitose (Figuras 21-22 e 23) (23).


Figura 21- Representação esquemática dos mecanismos celulares de proteção da mucosa intestinal.

Figura 22- Representação esquemática do processo de degradação antigênica intracelular.


Figura 23- Material de biópsia do intestino delgado em microscopia eletrônica mostrando a formação de um corpo multivesicular, produto da ação degradativa lisosomal.

Entretanto, a imaturidade no desenvolvimento de vários destes componentes da barreira intestinal e do sistema imunológico nos lactentes reduz de forma significativa sua eficiência, tornando a mucosa entérica suscetível para a penetração de antígenos potencialmente alergênicos (proteínas do leite de vaca e da soja, por exemplo) (Figuras 24 e 25). Sabe-se que a atividade enzimática no período neonatal é sub-ótima, e o sistema da IgA secretora não se encontra totalmente maduro antes dos 4 anos de idade. Conseqüentemente, o estado de imaturidade da barreira mucosa joga um papel importante na prevalência de infecções entéricas e AA observadas nos primeiros anos de vida (24).


Figura 24- Representação esquemática da imaturidade da barreira mucosa no recém-nascido.


Figura 25- Material de biópsia do intestino delgado em microscopia eletrônica mostrando na figura superior duas células intestinais adjacentes submetidas à perfusão com o marcador macromolecular Horseradish peroxidase representado pela imagem enegrecida confinada à região das microvilosidades (V), L mostra o lumen intestinal. Observar o espaço intercelular (seta) totalmente preservado e a mitocôndria (M) intacta. Na figura inferior resultante da perfusão com sais biliares secundários observa-se que o marcador macromolecular provoca uma ruptura no poro intercelular e a imagem enegrecida estende-se ao longo de todo o espaço intercelular (seta). No detalhe podem ser observadas alterações importantes nas organelas com inchaço e degeneração da mitocôndria (M) e do aparelho de Golgi (G).

Referências Bibliográficas

23. Teichberg, S. e cols., Pediatr Res 1983; 17: 381-389.

24. Lifshitz, F., Excerpta Medica 1984; 131-40.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade emergente no mundo atual (3)

Conceito da Barreira de Permeabilidade Intestinal

O trato gastrointestinal representa uma extensa barreira física ao ambiente exterior com o objetivo de proteger nosso organismo das potenciais agressões físicas, químicas e microbiológicas  representadas por eventuais produtos nocivos dos alimentos, dos agentes patogênicos existentes na natureza e mesmo dos simbióticos microorganismos que naturalmente nos colonizam desde a boca até o reto e com os quais obrigatoriamente de forma cotidiana convivemos. Concomitantemente, associado a esta barreira física, o sistema imunológico, por meio do tecido linfóide intestinal, funciona também como mais um fator de proteção, possuindo a capacidade de discriminar proteínas estranhas, ou microorganismos comensais, ou perigosos agentes enteropatogênicos.

Além disso, o trato gastrointestinal nos fornece também uma formidável superfície absortiva equivalente em área ao tamanho de uma quadra de tênis (aproximadamente 200m²), para que normalmente possam ocorrer os processos digestivo-absortivos, os quais são essenciais para a preservação do estado nutricional e, conseqüentemente, a manutenção da vida (Figuras 9 e 10).


Figura 9 - Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum apresentando morfologia normal. As vilosidades são digitiformes e representam uma relação vilosidade: cripta 5/1. As células epiteliais são cilíndricas com núcleo em posição basal e o infiltrado linfo-plasmocitário encontra-se dentro dos limites da normalidade.

Figura 10 - Vilosidade individualizada em aumento maior com aspecto digitiforme. As células epiteliais (enterócitos) são cilíndricas com núcleo em posição basal e se assentam na membrana basal. Células califormes produtoras de muco podem ser observadas ao longo das vilosidades (células esbranquiçadas arredondadas).


A barreira de permeabilidade intestinal (Figura 11) constitui uma importante adaptação do trato digestivo ao meio ambiente extra-uterino (no interior do útero o feto se desenvolve em um meio totalmente estéril protegido pelo líquido aminiótico, o qual é envolvido pela bolsa aminiótica) contra a penetração de antígenos e fragmentos antigênicos usualmente presentes no lúmen intestinal. Ao nascer, o recém-nascido necessita estar preparado para conviver com a colonização bacteriana do intestino, com a formação de subprodutos tóxicos pelas bactérias e vírus (enterotoxinas e endotoxinas) e com a ingestão de potenciais antígenos alimentares (proteínas do leite de vaca e da soja, por exemplo). Estas substâncias que são imunologicamente ativas se conseguirem romper a barreira da mucosa intestinal e, por conseguinte, penetrar na circulação sanguínea, podem causar reações inflamatórias ou alérgicas, as quais poderão resultar, por sua vez, em enfermidades gastrointestinais ou sistêmicas.



Figura 11 - Exemplo gráfico do transporte de macromoléculas em situação normal e patológica, quando há fracasso de um ou mais mecanismos de constituição da barreira de permeabilidade intestinal.

A Tabela abaixo elenca os componentes da Barreira de Permeabilidade Intestinal contra a penetração de Antígenos

A- Não Imunológicos


Intraluminais

- Acides gástrica
- Proteólise
- Peristaltismo Intestinal

Superfície Mucosa
- Cobertura de Muco
- Membrana das Microvilosidades
- Poros intercelulares

B- Imunológico

- Sistema da IgA secretora

C- Combinação de fatores imunológicos e não Imunológicos

- Formação de imune-complexos mediados pelo muco
- Proteólise na superfície mucosa facilitada pela formação de imune-complexos
- Fagocitose pelas células de Kupffer dos imune-complexos formados

O ácido clorídrico produzido pelas células parietais da mucosa gástrica, entre outras finalidades, funciona como a primeira potente barreira química contra as agressões de microorganismos patogênicos que por ventura venham a ser ingeridos pelo hospedeiro. Ao mesmo tempo também atua na primeira fase da digestão dos nutrientes, em especial as proteínas, formando complexos menores que irão ser mais facilmente digeridos pelas enzimas proteolíticas pancreáticas. O peristaltismo intestinal age como fator mecânico de depuração dos potenciais agentes tóxicos e/ou microorganismos patogênicos ingeridos com a alimentação (20).

A cobertura de muco (por meio da sua espessura e composição química) que se deposita sobre a superfície das microvilosidades intestinais contribui de forma especial contra a adesão e penetração de antígenos. O muco é produzido pelas células caliciformes, as quais se encontram intercaladas aos enterócitos ao longo de todas as vilosidades intestinais (Figuras 12-13-14 e 15). A espessura física da cobertura de muco sobre a superfície da mucosa intestinal pode se expandir na dependência do estímulo antigênico recebido, contribuindo, assim, como um fator de expulsão de parasitas e antígenos microbianos intestinais (21). 

Figura 12- Ação protetora física e química da cobertura de muco sobre o epitélio intestinal.
Figura 13- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia eletrônica com estrutura preservada evidenciando a formação das microvilosidades no topo da imagem formando uma verdadeira paliçada. No interior do citoplasma podem ser observados alguns retículos endoplásmicos rugosos, mitocondrias e corpos multivesiculares.
Figura 14- Material de biópsia do intestino delgado em microscopia eletrônica destacando as microvilosidades em maior aumento e as micromiofibrilas que delas emergem e que dão suporte ao muco produzido pelas células califormes.


Figura 15- Material de biópsia do intestino delgado em microscopia eletrônica mostrando uma célula caliciforme produtora de muco.


Os poros intercelulares apresentam dimensões bem determinadas, e, de tal forma a permitirem a passagem apenas de água e pequenos íons, como por exemplo, sódio e cloro. Eles se constituem em um importante mecanismo fisiológico para absorção de água e eletrólitos, e, em condições normais, exceto nos primeiros meses de vida, não permitem a penetração de macromoléculas intactas (Figuras 16 e 17).

Figura 16 - Material de biópsia de intestino delgado em microscopia eletrônica mostrando duas células adjacentes com poro intercelular intacto e a presença de um desmosoma em botão que confere a limitação do tamanho do poro.

Figura 17 - Material de biópsia de intestino delgado em microscopia eletrônica mostrando ruptura discreta do poro intercelular. Notar a presença, em negro, de um marcador macromolecular (Horseradish peroxidase) ao longo do espaço intercelular.

Referências Bibliográficas
 
20. Fagundes Neto, U., Acta Gastroent Lat Amer 1973; 5: 195-212.
21. Teichberg, S. e cols., Am J Clin Nutr 1981; 34: 1281-91.