Diagnóstico
1- Metabolismo do gás no trato digestivo
O metabolismo do gás no trato digestivo envolve uma série
de processos fisiológicos que dizem respeito à produção, consumo, excreção e
sua disponibilidade nos diversos compartimentos do mesmo.
O volume do gás no trato digestivo tem sido mensurado desde
a década de 1950 por diferentes investigadores, que utilizaram técnicas
diversas, mas os resultados têm mostrado pequenas variações entre elas. Em
geral, os valores giram ao redor de 100 ml na maioria dos indivíduos, porém, em
um mesmo indivíduo este valor pode variar de 30 a 200 ml.
A composição do gás intraluminal varia ao longo de todo o
trato digestivo, a saber: o gás no interior do estômago apresenta uma
composição similar ao do ar atmosférico, enquanto que no flatus a composição
mostra uma enorme variabilidade individual, representando o resultado final dos
diferentes processos metabólicos que ocorrem no interior do trato
gastrointestinal. Mais de 99% do gás intestinal é composto por 5 gases inodoros
(N2, O2, CO2, H2 e Ch4), e, em particular, o N2 varia de 11 a 92%; O2, 0 a 11%; CO2, 3 a 54%; H2, 0 a 85%; CH4, 0 a 56%. Inúmeros outros gases
odoríferos, tais como NH3, sulfito de hidrogênio, indol, escatol, aminas
voláteis, ácidos graxos de cadeia média estão também presentes, entretanto em
ínfimas quantidades, correspondendo a menos de 1% do flatus.
O gás presente no trato digestivo é proveniente de diversas
fontes, a saber: ar deglutido, produção intraluminal (reações químicas e
metabolismo bacteriano) e difusão de gases desde a corrente sanguínea para o
lúmen intestinal.
Pequenas quantidades de ar alcançam o estômago através da
deglutição, tanto separadamente como em associação com os alimentos. Uma fração
deste ar é eliminada através da eructação e outra parte dele é propelida para o
intestino delgado, em particular, quando o indivíduo se encontra na posição
supina, porque esta posição torna a eructação mais difícil.
Considerando-se a produção intraluminal, está bem definido
que o CO2, o H2 e o CH4, são os gases preponderantes em todo o trato
gastrointestinal. No intestino delgado é produzida uma grande quantidade de CO2
pela interação do H2 íon com o bicarbonato pela ação da anidrase carbônica.
Como o CO2 é rapidamente absorvido nas porções mais altas do intestino sua
contribuição no volume final do flatus é mínima. Entretanto, concentrações mais
altas de CO2 eliminadas pelo reto podem ser encontradas usualmente quando a
concentração do H2 no flatus também se encontra elevada, devido às reações da
fermentação bacteriana. Diferentemente do CO2, está bem definido que as únicas
fontes de H2 e CH4 no intestino derivam dos processos metabólicos das
bactérias, porque ratos isentos de microorganismos e os recém-nascidos durante
as primeiras 12 horas de vida não produzem estes gases. Em condições de jejum,
a produção de H2 é baixa, mas, após a ingestão de substratos fermentáveis ou
não digeríveis, primariamente carboidratos, as bactérias intraluminais liberam
quantidades significativas de H2. Nos indivíduos sadios algumas frutas e
vegetais (particularmente legumes e feijão), ou farinhas de trigo, aveia,
batata e milho contém oligossarídeos que escapam à digestão pelas enzimas do
trato digestivo alto e, assim, tornam-se disponíveis, no intestino grosso, como
substratos para a fermentação bacteriana. Por outro lado, na vigência de
determinadas enfermidades do intestino delgado que acarretam má absorção dos
carboidratos da dieta, grandes quantidades destes substratos alcançam os
colons, e, assim, se tornam disponíveis para a fermentação bacteriana por meio
de um processo anaeróbico, e, então, são produzidos gases (CO2, H2 e CH4) e ácidos
orgânicos, tais como ácido láctico e ácidos graxos de cadeia média. No caso
destes gases não serem aproveitados pelas bactérias, eles são absorvidos para a
circulação sistêmica, e, então, serão excretados pela respiração ou mesmo nas
fezes. Particularmente, o H2 pode ser rapidamente absorvido para a circulação
sistêmica e excretado pelos pulmões, e esta é a tese racional para o emprego do
teste do H2 no ar expirado, usado amplamente para detectar a má absorção de um
determinado carboidrato. A quantidade de H2 absorvida é quase completamente
eliminada da circulação sanguínea em uma única passagem pelos pulmões, e,
portanto, a taxa de H2 no ar expirado representa na prática aquela que foi
absorvida pelo intestino.
2- O Teste do Hidrogênio no Ar Expirado: sua consolidação
como método eficiente, não invasivo, na avaliação da função digestivo-absortiva
No passado, acreditava-se que o pulmão fosse um órgão
apenas responsável pela respiração e, portanto, tinha-se o conceito de que
somente Oxigênio (O2) e Dióxido de Carbono (CO2) pudessem ser dosados no ar
expirado. Atualmente, porém, sabe-se que o ar expirado dos pulmões contém mais
de 2000 substâncias distintas, e que, além da respiração, os pulmões apresentam
uma função adicional, qual seja a excreção de substâncias voláteis, o que
tornou os pulmões reconhecidamente como “órgãos excretores” de gases que se
encontram dissolvidos no sangue. Uma destas inúmeras substâncias voláteis
excretadas pelos pulmões é o Hidrogênio (H2), o qual pode ser facilmente medido
com a utilização de um equipamento manual de teste respiratório.
O ser humano sadio em jejum e em repouso não elimina H2
porque o seu metabolismo não produz este gás, o qual somente é gerado durante o
metabolismo anaeróbio. Considerando que o organismo humano em repouso não
possui metabolismo anaeróbio, o H2 produzido e excretado pelos pulmões deve ter
origem nas bactérias anaeróbias e, como se sabe, o trato digestivo alberga um
número elevado de bactérias, que são predominantemente anaeróbias e que produzem
grandes quantidades de H2. De fato, a concentração de bactérias, em especial as
anaeróbias, alcança valores de 1015 colônias/ml, enquanto que no duodeno e nas
porções superiores do jejuno praticamente não ocorre colonização por bactérias
anaeróbias, encontrando-se apenas bactérias aeróbias, consideradas residentes
das vias aéreas superiores, na concentração de até 104 colônias/ml (Figura
1).
Referência
- Ledochowiski M. Journal of Breath Research 2:1-9, 2008.
Portanto, pode-se assumir, com boa margem de segurança, que
o H2 expirado pelos pulmões dos seres humanos em repouso é produzido, quase que
exclusivamente, pelo metabolismo bacteriano dos anaeróbios que colonizam o íleo
e o intestino grosso. Desta forma, pode-se afirmar que o H2 mensurado no ar
expirado diz respeito à quantidade da atividade metabólica das bactérias
anaeróbias presentes no trato digestivo, em particular, em condições normais,
no íleo e no intestino grosso. Entretanto, em situações patológicas, como por
exemplo, na síndrome do “Sobrecrescimento Bacteriano no Intestino Delgado”, a
concentração de bactérias anaeróbias torna-se predominante no intestino delgado
e pode alcançar valores superiores a 104 colônias/ml. As bactérias anaeróbias
têm preferência para metabolizar os carboidratos, os quais, como parte da
reação de fermentação, são “quebrados” dando a formação de ácidos graxos de
cadeia pequena, CO2 e H2 (Figura 2).
Referência - Ledochowiski M. Journal of Breath Research
2:1-9, 2008.
Uma grande parte do CO2 permanece na luz do intestino e é
responsável pela sensação de flatulência, enquanto que os ácidos graxos de
cadeia pequena exercem efeito osmótico atraindo água para o interior do lúmen
intestinal, causando diarréia. O H2 produzido no intestino atravessa a parede
intestinal, cai na circulação sanguínea, é transportado até os pulmões e,
finalmente, é eliminado pela respiração como parte do ar expirado. A
concentração de H2 expirada pode, portanto, ser facilmente mensurada em partes
por milhão (ppm) por técnica não invasiva, por um equipamento de uso manual. A
concentração do H2 mensurado na expiração é sempre um reflexo da massa de
bactérias e da atividade metabólica bacteriana no trato digestivo. O momento no
qual a concentração de H2 no ar expirado se eleva durante a realização do teste
respiratório fornece uma indicação em qual região do intestino se deu a
fermentação.
Normas para a realização do teste do H2 no ar expirado
Cada teste deve sempre se iniciar obtendo-se a amostra de
jejum para a mensuração do H2 no ar expirado. Vale ressaltar que o paciente
deve estar em jejum pelo período de ao menos 8 horas. Após a mensuração do
valor basal de jejum, o qual deve na imensa maioria dos casos ser inferior a 5
partes por milhão (ppm) (não deve ser superior a 10 ppm), o teste respiratório
pode começar. O paciente deve ingerir o conteúdo de uma solução aquosa do
carboidrato, diluída a 10%, o qual se deseja testar a tolerância e/ou absorção
à dose de 2 gramas/kg de peso para os dissacarídeos (Lactose, Maltose e
Sacarose) e à dose de 1 grama/kg de peso para os monossacarídeos (Glicose,
Frutose e Galactose). A dose máxima para quaisquer dos carboidratos a serem
testados não deve ultrapassar 25
gramas. Após a obtenção da amostra de jejum e da
ingestão da solução aquosa, contendo o carboidrato a ser testado, amostras de
ar expirado devem ser obtidas aos 15, 30, 60, 90 e 120 minutos. Caso o teste
seja realizado com Lactulose (a dose é fixa de 20 gramas diluídas a 10%
em água), para pesquisa de “Sobrecrescimento Bacteriano no Intestino Delgado”,
deve-se acrescentar uma coleta de amostra do ar expirado aos 45 minutos após a
amostra de jejum. Vale salientar que a Lactulose é um dissacarídeo sintético
(frutose-galactose) não absorvível que exerce efeito osmótico e que, portanto,
pode provocar sintomas após sua ingestão, tais como, flatulência, cólicas e
diarréia, os quais costumam desaparecer pouco tempo depois do término do teste.
Interpretação do Teste do H2 no ar expirado
A interpretação do resultado do teste do H2 no ar expirado
baseia-se em 2 fatores cruciais, a saber: 1- a concentração em ppm do
Hidrogênio expirado e 2- o aparecimento de sintomas após a realização do teste
de sobrecarga.
1- Teste Normal
Quando o carboidrato a ser testado é um dissacarídeo
(lactose, sacarose e maltose) no caso de haver suficiência enzimática
(dissacaridase), não deverá ocorrer aumento significativo da concentração de H2
no ar expirado (elevação inferior a 20 ppm sobre o nível de jejum) e nem
tampouco referência a manifestações clínicas. Da mesma forma, quando o
carboidrato a ser testado é um monossacarídeo (glicose, galactose e frutose) no
caso de haver integridade funcional do enterócito, e suficiente disponibilidade
do mecanismo transportador GLUT5 para a frutose, o teste deve também ser
considerado Normal (Figura 3).
Referência - Ledochowiski M. Journal of Breath Research
2:1-9, 2008.
Por outro lado, caso surjam sintomas clínicos e a
concentração de H2 no ar expirado for inferior a 20 ppm, trata-se de um não
produtor de H2, o que pode ocorrer em até 5% dos indivíduos testados. Nesta
circunstância para se estabelecer um diagnóstico de segurança deve ser
realizado o teste com Lactulose, posto que este dissacarídeo é sempre
fermentado, e, se ainda assim não houver elevação da concentração de H2 no ar expirado
pode-se assumir com segurança tratar-se de um não produtor de H2.
2- Teste Anormal
Considera-se um teste Anormal quando ocorre elevação da
concentração de H2 acima de 20 ppm sobre o nível de jejum a partir dos 60
minutos depois da ingestão do carboidrato (Figura 4), pois fica caracterizada “Má Absorção” e se
concomitantemente surgirem sintomas, deve-se agregar o diagnóstico de
“Intolerância”.
Referência
- Ledochowiski M. Journal of Breath Research 2:1-9, 2008.
Por outro lado, caso ocorra um aumento significativo do H2
no ar expirado a partir dos 60 minutos, mas não surjam sintomas deve-se, nesta
circunstância, utilizar a denominação “Má Absorção” para o teste bioquímico,
mas do ponto de vista clínico não ocorreu “Intolerância” (Figura 5).
Referência - Ledochowiski M. Journal of Breath Research
2:1-9, 2008.
Usualmente deve ser possível alcançar o pico máximo do
aumento do H2 no ar expirado aos 60 minutos, ou ainda melhor, aos 90 minutos,
porque pode tardar esse tempo para que o carboidrato não absorvido alcance o
intestino grosso.
Caso o valor do H2 no ar expirado seja superior a 10 ppm e
menor do que 20 ppm, o teste deve ser considerado como limítrofe anormal. Além
disso, outro fator também deve ser levado em consideração, pois se houver uma
elevação da concentração de H2 acima de 10 ppm sobre o nível de jejum dentro
dos primeiros 30 minutos do teste, esta ocorrência caracteriza
“Sobrecrescimento Bacteriano no Intestino Delgado”. Essencialmente há 2
possibilidades para a vigência deste perfil particular do H2 no ar expirado, a
saber:
1- a curva mostra
um perfil de 2 picos de elevação do H2 no ar expirado, ou seja, 1 deles nos
primeiros 30 minutos do teste seguido de uma diminuição na concentração do H2,
o qual é seguido por nova elevação após os 60 minutos. Este comportamento do
teste indica que há um “Sobrecrescimento Bacteriano no Intestino Delgado”
associado a preservação da válvula íleo-cecal e também que as bactérias
presentes nas porções altas do intestino delgado foram capazes de metabolizar a
substância testada. O segundo pico demonstra que a maior porção da substância
testada não foi absorvida e que, portanto, foi fermentada no intestino grosso
(má absorção) (Figura 6).
Referência
- Ledochowiski M. Journal of Breath Research 2:1-9, 2008.
Caso o paciente, durante a realização do teste, decorridos
menos de 60 minutos após a ingestão da substância testada, vier a apresentar
sintomas e que estes rapidamente venham a desaparecer, isto indica que as
queixas se devem mais provavelmente ao “Sobrecrescimento Bacteriano no
Intestino Delgado” do que à má absorção da substância testada.
2- a curva mostra um pico precoce, antes dos 60 minutos
após a ingestão da substância testada, o qual se mantém pelo menos 20 ppm acima
do valor basal, sem apresentar uma queda no valor do H2 no ar expirado até os
90 minutos. Esta curva apresenta um “quase” perfil de 2 picos, sem que ocorra o
“vale” entre o primeiro e segundo picos (Figura 7).
Referência
- Ledochowiski M. Journal of Breath Research 2:1-9, 2008.
Neste caso deve-se considerar que houve um refluxo do
fluido do intestino grosso para o íleo em virtude de uma hipotonia da válvula
íleo-cecal.
Tipos de testes do H2 no ar expirado
Na verdade, o teste hidrogênio no ar expirado deve ser
indicado para quaisquer carboidratos, tais como os monossacarídeos (glicose,
frutose e galactose), dissacarídeos (sacarose, maltose e lactose) e mesmo para
os polissacarídeos, álcool-açúcares, e o dissacarídeo sintético Lactulose não
absorvível (galactose-frutose). Os tipos de teste do H2 no ar expirado mais
indicados estão representados na Tabela 1.
As principais indicações dos testes do H2 no ar expirado
estão apontadas na Tabela 2.
Teste de sobrecarga com Lactulose
Como anteriormente referido, a Lactulose é um dissacarídeo
sintético composto por galactose-frutose, portanto não absorvível, visto que o
intestino humano não possui nenhuma dissacaridase capaz de hidrolisar este
carboidrato, e como conseqüência a Lactulose é sempre fermentada. Neste caso
deve-se utilizar 20 gramas
do carboidrato diluído em solução aquosa a 10%. As indicações para a realização
do teste com Lactulose estão discriminadas na Tabela 3.
Todos estes testes, individualmente ou em conjunto, para se
avaliar o perfil da função digestivo-absortiva ou o tempo de trânsito oro-cecal
estão disponíveis para atendimento aos pacientes no Instituto de
Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo – IGASTROPED. tel.: 11 988427324. (Contato Tatianne Rocha)