segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Doença Celíaca (2)



Um problema de saúde pública universal (2)


Histórico



É fato reconhecido pelos historiadores que há cerca de 10.000 anos não havia grãos contendo glúten na natureza, e, portanto, presumivelmente, também não existia a DC. Com o advento da agricultura, o trigo e outros grãos contendo glúten passaram a ser cultivados extensivamente, o que veio a fornecer um dos dois elementos chave (o outro é a predisposição genética) para a ocorrência da DC. Entretanto, foi somente no século I da era cristã que Areteus da Capodócia relatou de forma científica a primeira descrição da DC. Ele descreveu as fezes características, o caráter crônico da enfermidade, a maior incidência na mulher e a possibilidade de crianças serem afetadas. Mais recentemente, no entanto, deveu-se a Samuel Gee, em 1888, na Inglaterra, a descrição em seu livro “On the celiac afection”, (a palavra Celíaco vem do grego e quer dizer “ventre abaulado”) muitas das características clássicas pelas quais ainda atualmente a DC se apresenta, a saber: ”indigestão crônica encontrada em pessoas de todas as idades, especialmente em crianças entre 1 e 5 anos”. Gee sugeriu ainda que a DC ocorreria por um erro dietético, e que a cura poderia ser alcançada pela introdução de uma dieta adequada. Mas, foi somente 60 anos mais tarde que o pediatra holandês Willem Karel Dicke, em 1950, acompanhando diversas crianças com deficiência pondero-estatural e esteatorréia em Haia e Utrecht, provou o efeito deletério do trigo, demonstrando que sua fração protéica, o glúten, em especial a gliadina, é o fator responsável pela instalação da DC. Porém, neste intervalo de tempo inúmeras teorias para explicar sua causa foram propostas, assim como as mais variadas tentativas terapêuticas, as quais estão disponíveis na literatura médica. Por exemplo, Schultz, em 1904, atribuía a causa da DC a uma alteração da flora putrefativa intestinal, enquanto que Herter e Holt, em 1908, propunham que a etiologia se devia à flora lactobacilar; Henfner, em 1909, considerou a existência de uma grave insuficiência digestiva após o desmame e preconizava a utilização do leite humano. Haas, em 1924, revolucionou o tratamento dietético propondo algo totalmente inédito para sua época, a dieta de banana, inclusive excluindo os carboidratos dos cereais, a qual baixou de forma espetacular a alta mortalidade da DC, e por isso tornou-se muito recomendada até 1950. Stheeman, em 1932, observou que um dos seus pacientes com DC apresentava um agravo do distúrbio diarréico em seguida à ingestão de alimentos contendo amido; a criança revelava intensa idiossincrasia a alimentos como biscoito, pão e farináceos. Ainda em 1932, Parsons fez uma revisão de 94 casos de DC ocorridos na infância e reconheceu que enquanto aleitadas exclusivamente ao seio materno as crianças não apresentavam sintomas sugestivos da enfermidade. Afirmava, também, que a DC podia afetar igualmente adultos e crianças, chamando a atenção para a grande variabilidade dos sintomas e para o papel que os carboidratos desempenhavam para o desencadeamento da enfermidade. Em 1934, Luell e Campos descreveram as alterações radiológicas presentes na DC: “motilidade intestinal diminuída, alterações no padrão da mucosa jejunal com ausência do pregueamento característico e fragmentação da coluna de bário”.

Mas, indiscutivelmente, o grande salto de qualidade na melhor compreensão dos efeitos deletérios sobre o organismo provocados pela DC se deveu ao esclarecimento da sua etiologia pelo Professor Dicke. Ele observou que na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), durante o período da ocupação nazista na Holanda, em virtude da grande escassez de alimentos, em especial o pão (durante o racionamento não havia disponibilidade de alimentos contendo glúten, e sim outros alimentos contendo carboidratos complexos, como o amido, que embora em pequena quantidade, ainda estavam disponíveis para o consumo), paradoxalmente as crianças portadoras de DC apresentavam uma melhora clínica. Dicke observou também que, durante as internações, quando os pacientes seguiam uma dieta livre de glúten havia uma diminuição da diarreia com desaparecimento da esteatorréia e retomada da normalidade da curva de crescimento. Por outro lado, Dicke notou que após o termino da guerra estas mesmas crianças vieram a apresentar uma deterioração clínica quando os Aliados passaram a suprir alimentos à população, particularmente o pão. Subseqüentemente, Dicke publicou uma série de artigos comprovando claramente a associação do trigo e da cevada como causadores da DC.

Alessio Fasano, gastropediatra italiano radicado em Baltimore, nos EUA, tornou-se um prestigioso investigador da DC, tendo sido um dos principais responsáveis em demonstrar que a DC é tão prevalente nos EUA quanto na Europa. Fasano fez na edição de dezembro de 2008 do Journal of Pediatrics uma revisão de um relato de caso de DC publicado nesta mesma revista há 50 anos (J Pediatr 1958;53:726-30) por Graven e Tomsovic. Tratava-se de uma menina de 16 meses que foi internada devido a uma crise celíaca clássica, com palides, letargia, irritabilidade, perda de peso e distensão abdominal. Os métodos diagnósticos naquela época eram inespecíficos, incluindo a radiologia do abdome e a caracterização de esteatorréia, isto porque a ferramenta diagnóstica apropriada, ou seja, a biópsia do intestino delgado ainda não se encontrava disponível para uso rotineiro. Neste relato de caso o tratamento baseou-se em uma dieta com leite desnatado e banana. Naquela ocasião as taxas de mortalidade alcançavam até 35% e o tempo de hospitalização costumava ser muito longo, no caso presente foi de 49 dias.

Vale ressaltar que a primeira descrição da realização da biópsia do intestino delgado se deve a um médico argentino Dr. Royer, que publicou sua façanha na Prensa Médica Argentina, em 1956. No mesmo ano a médica inglesa Dra. Margot Shiner realizou a primeira biópsia de intestino delgado em um paciente com DC e publicou seu feito na revista inglesa The Lancet. Mas somente no início da década de 1960 passou-se a dispor de um equipamento apropriado para a realização rotineira de biópsias de intestino delgado, o qual foi criado por Crosby e Kugler. Vale ressaltar que Crosby era um hematologista que estava interessado em estudar a absorção intestinal de ferro. Para tal se associou ao engenheiro mecânico Kugler para desenvolver um instrumento que pudessem obter amostras de fragmentos de intestino delgado, cujo instrumento acabou sendo batizado de cápsula de Crosby-Kugler. Esta cápsula, sem dúvida alguma resultou no avanço mais espetacular para propiciar o estudo das lesões morfológicas da mucosa intestinal na DC, tornando-se, desde então até os dias atuais, o padrão ouro no diagnóstico da DC.




O primeiro caso com comprovação diagnóstica documentada com biópsia de intestino delgado, no Brasil, foi descrito e publicado em 1976, pelo nosso grupo de Gastropediatria da Escola Paulista de Medicina, constituído naquela ocasião por Ulysses Fagundes Neto e Jamal Wehba, após meu retorno da especialização realizada no Policlínico Alejandro Posadas, em Buenos Aires, em 1973 (Figuras 1-2-3-4 & 5) (Fagundes Neto, U. Ped. Prát. 47(11-12): 23-26, 1976). Depois desta primeira descrição muitos outros casos até então considerados pacientes portadores de desnutrição por verminose ou problemas de ordem sócio-econômica vieram a ser também diagnosticados. Atualmente sabe-se que a prevalência da DC no nosso meio é tão frequente quanto aquela descrita em outras regiões do mundo.


Figura 1- Nosso primeiro paciente com DC no momento da internação evidenciando desnutrição grave e grande irritabilidade.

Figura 2- A DC na sua expressão mais intensa de desnutrição, a caquexia.




Figura 3- Nosso paciente alguns dias após o diagnóstico e em dieta isenta de glúten. Começava a recuperar a sociabilidade perdida e a se interessar pelas coisas ao seu redor, inclusive os brinquedos.





Figura 4- A importância do diagnóstico correto e cumprir com rigor a dieta isenta de glúten, sem permitir quaisquer transgressões, ainda que esporádicas.
Figura 5- Comparação nutricional do nosso paciente no momento da internação e após alguns meses em dieta isenta de glúten, com total recuperação clínica e nutricional.



O Papel do Glúten



A DC é o resultado da interação entre o glúten e fatores imunológicos, genéticos e ambientais. A gliadina, a fração solúvel em álcool do glúten, é uma proteína rica em aminoácidos de glutamina e prolina, e que é pobremente degradada pelas enzimas digestivas. As moléculas não digeridas da gliadina atravessam a barreira de permeabilidade intestinal, provavelmente durante um processo infeccioso ou quando há um aumento da permeabilidade por qualquer outra razão, e interage com as células apresentadoras de antígeno da lâmina própria da mucosa intestinal.


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