Um problema de saúde pública universal (2)
Histórico
Histórico
É fato reconhecido pelos
historiadores que há cerca de 10.000 anos não havia grãos contendo glúten na
natureza, e, portanto, presumivelmente, também não existia a DC. Com o advento
da agricultura, o trigo e outros grãos contendo glúten passaram a ser
cultivados extensivamente, o que veio a fornecer um dos dois elementos chave (o
outro é a predisposição genética) para a ocorrência da DC. Entretanto, foi
somente no século I da era cristã que Areteus da Capodócia relatou de forma
científica a primeira descrição da DC. Ele descreveu as fezes características,
o caráter crônico da enfermidade, a maior incidência na mulher e a
possibilidade de crianças serem afetadas. Mais recentemente, no entanto,
deveu-se a Samuel Gee, em 1888, na Inglaterra, a descrição em seu livro “On the
celiac afection”, (a palavra Celíaco vem do grego e quer dizer “ventre
abaulado”) muitas das características clássicas pelas quais ainda atualmente a
DC se apresenta, a saber: ”indigestão crônica encontrada em pessoas de todas as
idades, especialmente em crianças entre 1 e 5 anos”. Gee sugeriu ainda que a DC
ocorreria por um erro dietético, e que a cura poderia ser alcançada pela
introdução de uma dieta adequada. Mas, foi somente 60 anos mais tarde que o
pediatra holandês Willem Karel Dicke, em 1950, acompanhando diversas crianças com
deficiência pondero-estatural e esteatorréia em Haia e Utrecht, provou o efeito
deletério do trigo, demonstrando que sua fração protéica, o glúten, em especial
a gliadina, é o fator responsável pela instalação da DC. Porém, neste intervalo
de tempo inúmeras teorias para explicar sua causa foram propostas, assim como
as mais variadas tentativas terapêuticas, as quais estão disponíveis na
literatura médica. Por exemplo, Schultz, em 1904, atribuía a causa da DC a uma
alteração da flora putrefativa intestinal, enquanto que Herter e Holt, em 1908,
propunham que a etiologia se devia à flora lactobacilar; Henfner, em 1909,
considerou a existência de uma grave insuficiência digestiva após o desmame e
preconizava a utilização do leite humano. Haas, em 1924, revolucionou o
tratamento dietético propondo algo totalmente inédito para sua época, a dieta
de banana, inclusive excluindo os carboidratos dos cereais, a qual baixou de
forma espetacular a alta mortalidade da DC, e por isso tornou-se muito
recomendada até 1950. Stheeman, em 1932, observou que um dos seus pacientes com
DC apresentava um agravo do distúrbio diarréico em seguida à ingestão de
alimentos contendo amido; a criança revelava intensa idiossincrasia a alimentos
como biscoito, pão e farináceos. Ainda em 1932, Parsons fez uma revisão de 94
casos de DC ocorridos na infância e reconheceu que enquanto aleitadas
exclusivamente ao seio materno as crianças não apresentavam sintomas sugestivos
da enfermidade. Afirmava, também, que a DC podia afetar igualmente adultos e
crianças, chamando a atenção para a grande variabilidade dos sintomas e para o
papel que os carboidratos desempenhavam para o desencadeamento da enfermidade.
Em 1934, Luell e Campos descreveram as alterações radiológicas presentes na DC:
“motilidade intestinal diminuída, alterações no padrão da mucosa jejunal com
ausência do pregueamento característico e fragmentação da coluna de bário”.
Mas, indiscutivelmente, o
grande salto de qualidade na melhor compreensão dos efeitos deletérios sobre o
organismo provocados pela DC se deveu ao esclarecimento da sua etiologia pelo
Professor Dicke. Ele observou que na Segunda Guerra Mundial (1939-1945),
durante o período da ocupação nazista na Holanda, em virtude da grande escassez
de alimentos, em especial o pão (durante o racionamento não havia
disponibilidade de alimentos contendo glúten, e sim outros alimentos contendo
carboidratos complexos, como o amido, que embora em pequena quantidade, ainda
estavam disponíveis para o consumo), paradoxalmente as crianças portadoras de
DC apresentavam uma melhora clínica. Dicke observou também que, durante as
internações, quando os pacientes seguiam uma dieta livre de glúten havia uma
diminuição da diarreia com desaparecimento da esteatorréia e retomada da
normalidade da curva de crescimento. Por outro lado, Dicke notou que após o
termino da guerra estas mesmas crianças vieram a apresentar uma deterioração clínica
quando os Aliados passaram a suprir alimentos à população, particularmente o
pão. Subseqüentemente, Dicke publicou uma série de artigos comprovando
claramente a associação do trigo e da cevada como causadores da DC.
Alessio Fasano,
gastropediatra italiano radicado em Baltimore, nos EUA, tornou-se um
prestigioso investigador da DC, tendo sido um dos principais responsáveis em
demonstrar que a DC é tão prevalente nos EUA quanto na Europa. Fasano fez na
edição de dezembro de 2008 do Journal of Pediatrics uma revisão de um relato de
caso de DC publicado nesta mesma revista há 50 anos (J Pediatr 1958;53:726-30)
por Graven e Tomsovic. Tratava-se de uma menina de 16 meses que foi internada
devido a uma crise celíaca clássica, com palides, letargia, irritabilidade,
perda de peso e distensão abdominal. Os métodos diagnósticos naquela época eram
inespecíficos, incluindo a radiologia do abdome e a caracterização de
esteatorréia, isto porque a ferramenta diagnóstica apropriada, ou seja, a
biópsia do intestino delgado ainda não se encontrava disponível para uso
rotineiro. Neste relato de caso o tratamento baseou-se em uma dieta com leite
desnatado e banana. Naquela ocasião as taxas de mortalidade alcançavam até 35%
e o tempo de hospitalização costumava ser muito longo, no caso presente foi de
49 dias.
Vale ressaltar que a
primeira descrição da realização da biópsia do intestino delgado se deve a um
médico argentino Dr. Royer, que publicou sua façanha na Prensa Médica
Argentina, em 1956. No mesmo ano a médica inglesa Dra. Margot Shiner realizou a
primeira biópsia de intestino delgado em um paciente com DC e publicou seu
feito na revista inglesa The Lancet. Mas somente no início da década de 1960
passou-se a dispor de um equipamento apropriado para a realização rotineira de
biópsias de intestino delgado, o qual foi criado por Crosby e Kugler. Vale
ressaltar que Crosby era um hematologista que estava interessado em estudar a
absorção intestinal de ferro. Para tal se associou ao engenheiro mecânico
Kugler para desenvolver um instrumento que pudessem obter amostras de
fragmentos de intestino delgado, cujo instrumento acabou sendo batizado de
cápsula de Crosby-Kugler. Esta cápsula, sem dúvida alguma resultou no avanço
mais espetacular para propiciar o estudo das lesões morfológicas da mucosa
intestinal na DC, tornando-se, desde então até os dias atuais, o padrão ouro no
diagnóstico da DC.
O primeiro caso com
comprovação diagnóstica documentada com biópsia de intestino delgado, no
Brasil, foi descrito e publicado em 1976, pelo nosso grupo de Gastropediatria
da Escola Paulista de Medicina, constituído naquela ocasião por Ulysses
Fagundes Neto e Jamal Wehba, após meu retorno da especialização realizada no
Policlínico Alejandro Posadas, em Buenos Aires, em 1973 (Figuras 1-2-3-4 & 5) (Fagundes
Neto, U. Ped. Prát. 47(11-12): 23-26, 1976). Depois desta primeira descrição
muitos outros casos até então considerados pacientes portadores de desnutrição
por verminose ou problemas de ordem sócio-econômica vieram a ser também
diagnosticados. Atualmente sabe-se que a prevalência da DC no nosso meio é tão
frequente quanto aquela descrita em outras regiões do mundo.
Figura 1- Nosso primeiro
paciente com DC no momento da internação evidenciando desnutrição grave e
grande irritabilidade.
Figura 2- A DC na sua
expressão mais intensa de desnutrição, a caquexia.
Figura 3- Nosso paciente
alguns dias após o diagnóstico e em dieta isenta de glúten. Começava a
recuperar a sociabilidade perdida e a se interessar pelas coisas ao seu redor,
inclusive os brinquedos.
Figura 4- A importância do
diagnóstico correto e cumprir com rigor a dieta isenta de glúten, sem permitir
quaisquer transgressões, ainda que esporádicas.
Figura 5- Comparação
nutricional do nosso paciente no momento da internação e após alguns meses em
dieta isenta de glúten, com total recuperação clínica e nutricional.
O
Papel do Glúten
A DC é o resultado da
interação entre o glúten e fatores imunológicos, genéticos e ambientais. A
gliadina, a fração solúvel em álcool do glúten, é uma proteína rica em
aminoácidos de glutamina e prolina, e que é pobremente degradada pelas enzimas
digestivas. As moléculas não digeridas da gliadina atravessam a barreira de
permeabilidade intestinal, provavelmente durante um processo infeccioso ou
quando há um aumento da permeabilidade por qualquer outra razão, e interage com
as células apresentadoras de antígeno da lâmina própria da mucosa intestinal.
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