Prof.
Dr. Ulysses Fagundes Neto
Introdução
A
Síndrome do Intestino Irritável (SII), trata-se de um transtorno
gastrointestinal funcional caracterizada por dor abdominal associada a hábito
intestinal anormal. Entretanto, os pacientes geralmente também sofrem de outros
sintomas gastrointestinais ou não gastrointestinais, incluindo sintomas
psicológicos e comorbidades psiquiátricas. A eficácia das opções terapêuticas
disponíveis para este grande número de pacientes é limitada, a qual,
parcialmente é devida ao fato de que os mecanismos subjacentes da geração dos
sintomas não são completamente conhecidos. A fisiopatologia da SII é
considerada complexa e na maioria dos casos multifatorial, e as interações
anormais trato digestivo/cérebro são consideradas de grande importância (Figura
1).
Figura
1- Representação esquemática do eixo cérebro-intestino.
Dentre
os fatores fisiopatológicos individuais destaca-se a hipersensibilidade
visceral, a função motora gastrointestinal anormal e a função anormal do
cérebro, devido ao processamento central anormal dos sinais viscerais
aferentes, os quais podem ser derivados de sintomas psicologicamente modulados.
O processo e a percepção desses sinais têm sido largamente estudados, e são
admitidos possuir grande importância nos sintomas dos subgrupos de pacientes
com SII. Fatores do microambiente intestinal também têm sido gradualmente
reconhecidos como pertencentes aos modelos fisiopatológicos da SII. Entretanto,
a relevância desses fatores para a geração dos sintomas e sua intensidade na
SII são altamente desconhecidos (Figura 2).
Figura
2- Representação esquemática da fisiopatologia da SII.
A hipersensibilidade
visceral é uma das mais bem caracterizadas anomalias fisiopatológicas na SII.
Ela consiste na presença de dois componentes, a saber:
a)
Alodinia, a qual significa que um estímulo
inócuo é percebido como algo muito doloroso; e
b)
Hiperalgesia, a qual significa um aumento da
resposta dolorosa, como por exemplo, um estímulo doloroso é sentido mais
intensamente do que o convencionalmente esperado.
Na SII a maioria dos estudos tem
focalizado o baixo limiar de dor como um marcador de hipersensibilidade
visceral o qual reflete a Alodinia. Entretanto, a percepção aumentada da
intensidade de um estímulo doloroso, isto é, a Hiperalgesia, também tem sido
descrita. Inúmeros estudos têm demostrado uma associação entre a existência de
hipersensibilidade visceral, na maioria dos casos definidas como um limiar
rebaixado de dor retal e colônica, e a intensidade dos sintomas da SII. Este
fenômeno pode ser observado mesmo após a ocorrência do controle dos sintomas
psicológicos e dos sintomas gerais relatados. Também há estudos que têm
demostrado uma associação entre os percentuais da intensidade da dor durante a
distensão dolorosa do reto, por meio do uso de balões insuflados, o que
refletem a Hiperalgesia e a intensidade dos sintomas da SII. Além disso,
estudos de avaliação da sensibilidade colorretal, nos quais a complacência é
também frequentemente mensurada, tem sido também descrita uma redução da complacência
retal, porém, a associação da complexidade desses sintomas ainda não está bem
estabelecida.
A
função motora gastrointestinal anormal é outro fator fisiopatológico da maior
importância na SII, embora um padrão motor específico para a SII não tenha sido
identificado, e, evidentes correlações entre achados da motilidade e os
sintomas têm sido difíceis de serem demonstrados. Entretanto, a mensuração do tempo de trânsito oro anal e
colônico, como uma medida indireta da motilidade colônica, mostra achados mais
consistentes, com as anormalidades do trânsito colônico que estão associadas
com o subtipo da SII, sendo que o trânsito acelerado é predominantemente visto
nos pacientes com diarreia, e trânsito retardado nos pacientes com constipação.
Sintomas
psicológicos, tais como ansiedade e depressão, nos casos mais graves,
preenchendo os critérios para as comorbidades de transtornos de ansiedade e
depressão, são comuns na SII e a presença de sintomas de comorbidades,
ansiedade e depressão ou síndromes, estão associados à sintomatologia geral
gastrointestinal. Na última edição dos critérios diagnósticos para os
transtornos funcionais gastrointestinais, os critérios de Roma IV, estes
transtornos são referidos como Transtornos de interação intestino-cérebro salientando
não somente a importância do intestino, mas também o cérebro na geração dos
sintomas nestas condições. Na verdade, alterações no sistema nervoso central ou
na função cerebral têm sido demonstradas nos pacientes com SII em comparação
com indivíduos controle, por meio do uso de imagens cerebrais. Entretanto, em
um estudo o grupo de pacientes com SII, cujas diferenças cerebrais se
manifestaram em relação aos controles normais, elas desapareceram quando os sintomas
de ansiedade e depressão foram controlados.
A
hipersensibilidade visceral está associada com fatores psicológicos, mas esta
associação com sintomas gastrointestinais não é unicamente explicada pelos
fatores psicológicos. A associação entre hipersensibilidade visceral e
motilidade gastrointestinal tem sido avaliada em um pequeno número de ensaios
clínicos com resultados inconsistentes, e sem a tentativa de avaliar sua influência
combinada com os sintomas. A associação entre a motilidade gastrointestinal e os
fatores psicológicos tais como estresse, ansiedade e depressão, têm sido estabelecidas
por diferentes metodologias, mas suas influências combinadas com os sintomas
não foram ainda avaliadas. Considerando-se a atual visão de que transtornos
gastrointestinais funcionais estão diretamente combinados com a interação
intestino-cérebro, parece ser razoável levantar a hipótese de que diferentes
fatores envolvidos no complexo fisiopatológico da SII, devem interagir e
influenciar os sintomas de uma forma cumulativa nesses pacientes. Entretanto, a
evidência adquirida dando suporte a este conceito, até o presente momento,
ainda não estava totalmente disponível. No entanto, recentemente o estudo
conduzido por Simrén e cols., em 2019, avaliou se os fatores fisiopatológicos
chave na SII têm um efeito cumulativo nos sintomas e ao mesmo tempo na qualidade
de vida enfermidade-específica.
Mais
detalhadamente Simrén e cols. tiveram
como objetivo determinar se a presença de hipersensibilidade visceral refletida
por Alodinia e Hiperalgesia, complacência retal anormal, trânsito colônico
retardado ou acelerado, refletindo motilidade colônica anormal, e sintomas de
ansiedade e depressão, como reflexo da função cerebral anormal, e, ao mesmo
tempo, avaliar como a presença de um ou mais destes fatores influenciam
desfechos relevantes relatados por pacientes na SII, isto é, avaliar a relação entre
a SII e a intensidade dos sintomas somáticos e a qualidade de vida na SII.
Resultados
Foram
incluídos neste estudo 407 pacientes com SII de acordo com os critérios de Roma
IV, divididos entre três coortes, respectivamente, com 137, 128 e 142
pacientes. Não houve diferenças significativas entre a ideia média, a
distribuição por sexo, ou mesmo, a distribuição pelos diferentes subtipos de
SII (Figura 3 A).
Alodinia
foi encontrada em 145 (36%) pacientes, Hiperalgesia em 86 (22%) pacientes,
trânsito oro-anal acelerado em 73 (18%) pacientes, trânsito oro-anal retardado em 29 (7%) pacientes, ansiedade em 211 (52%) pacientes e depressão em 97 (24%) pacientes
(Figura 1A). Ansiedade e depressão
estiveram associadas com o maior número de sintomas de SII, anormalidades do
trânsito primariamente com distúrbios do hábito intestinal, e, Alodinia e
Hiperalgesia com dor e hábito intestinal. Complacência retal a qual mostrou-se
aumentada em 58 (14%) pacientes e reduzida em 38 (9%) pacientes, não se mostrou
associada com sintomas mais intensos de SII, e, portanto, não foram incluídas
nas análises subsequentes. Pelo menos três anormalidades fisiopatológicas
relevantes em relação aos sintomas estiveram presentes em 83 (20,1%) pacientes,
duas anormalidades em 121 (29,7%) pacientes e 1 anormalidade em 28 (31,4%)
pacientes e, em 76 (8,7%) pacientes não foram detectadas anormalidades (Figura
3B).
Figuras
3A e 3B.
Estresse
psicológico (ansiedade e/ou depressão) foi visto em 227 (56%) pacientes,
hipersensibilidade (Alodinia e Hiperalgesia) em 190 (47%), e trânsito anormal
(acelerado ou retardado) em 102 (25%) pacientes. Todas essas três anormalidades
em 19 (4,3%) pacientes, 2 em 150 (36,9%) pacientes, 1 em 162 (39,8%) pacientes,
e 76 (18,7%) pacientes não apresentaram anormalidades (Figura 4).
Figura
4.
Discussão
Este
estudo possibilitou demonstrar em um grande grupo de pacientes com SII que
fatores fisiopatológicos bem definidos, especificamente, hipersensibilidade
visceral, trânsito oro anal ou colônico anormais, e fatores psicológicos
estavam todos eles associados com a intensidade dos sintomas gastrointestinais
na SII, e ficou demonstrado o efeito cumulativo sobre a intensidade dos
sintomas gastrointestinais e não gastrointestinais, bem como, o prejuízo sobre
a qualidade de vida na SII. Os presentes achados se encaixam perfeitamente com
a visão corrente do importante papel das interações trato digestivo-cérebro,
nos sintomas dos pacientes com transtornos gastrointestinais funcionais, como
por exemplo a SII.
Os
achados do presente estudo, confirmam um padrão geral de associação entre
motilidade/trânsito e anormalidades no hábito intestinal, hipersensibilidade
visceral e dor abdominal, e fatores psicológicos sendo de real importância para
a sintomatologia geral da SII. Ademais, este estudo vai além dos prévios
conhecimentos, posto que, também demostra um notável efeito cumulativo destes
fatores na sintomatologia geral da SII, e também, na intensidade geral dos
sintomas somáticos e específicos sobre a qualidade de vida, salientando a
importância de se considerar e avaliar as combinações dos fatores fisiopatológicos
na SII, e, apontando com especial ênfase a importância do eixo trato
digestivo-cérebro neste processo.
As
opções terapêuticas existentes para SII possuem eficácia limitada. Efeitos
positivos sobre os sintomas são alcançados em somente alguns poucos subgrupos
de pacientes, e, na maioria deles, as terapêuticas disponíveis produzem apenas alívio
parcial dos sintomas e raramente acarretam resolução completa deles. Este
conceito se encaixa perfeitamente nos achados do presente estudo, posto que
inúmeros pacientes apresentavam diversas anormalidades fisiopatológicas
concomitantes, com um complexo padrão de superposição sintomático de variável
intensidade. Deve-se enfatizar que a
tentativa de alcançar apenas um alvo dentre os múltiplos fatores
fisiopatológicos da SII muito provavelmente não levará à completa resolução dos
sintomas, mesmo que esta específica anormalidade esteja presente em um determinado
paciente. Consequentemente, tomando-se por base os achados deste estudo, vale a
pena especular que terapêuticas combinantes, que visem alcançar diferentes
alvos nos níveis do eixo trato digestivo-cérebro, e, ao mesmo tempo, diferentes
fatores fisiopatológicos, poderão acarretar um melhor desfecho no tratamento.
Meus
Comentários
A SII desde longa data vem chamado a atenção
dos clínicos em virtude de seu característico aspecto multifatorial, muito
embora apenas mais recentemente tenham se tornado do conhecimento científico alguns
novos aspectos envolvidos na sua fisiopatologia. Simrén e cols., em 2009,
propuseram um modelo fisiopatológico, que está resumido no esquema da Figura 5
abaixo, bastante amplo, porém ainda incompleto.
Estes
mesmos autores, em 2014, incorporando os novos conhecimentos mais recentes,
dando especial ênfase aos aspectos nutricionais, em virtude da possível
coexistência das intolerâncias alimentares denominadas de FODMAPS pelo grupo
australiano liderado por Gibson e cols., propôs novo modelo esquemático
representado abaixo na Figura 6.
Neste
presente excelente estudo Simrén e cols. avançam ainda mais nos meandros
obscuros da SII, para trazer mais luz a um transtorno funcional que afeta a
qualidade de vida de um sem número de pessoas, de ambos os sexos, crianças,
adolescentes e adultos, ao redor de todo o globo terrestre. A proposta de se
abordar concomitantemente os sintomas digestivos e os distúrbios psicológicos
geralmente presentes, ansiedade e/ou depressão, me parece ser altamente
promissor e que deve ser altamente levado em consideração pelo clínico em
atenção ao seu paciente.
Referências Bibliográficas
1)
Simren M e cols. Gastroenterology 2019.
157:381-402.
2)
Drossma N Da e cols. Gastroenterology 2016;
150:1257-61.
3)
Simren M e cols. GUT 2018;67:255-62.
4)
Tap J e cols. Gastroenterology
2017;152:111-123.
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