quarta-feira, 18 de março de 2020

Colite Alérgica entre primos: a evolução clínica de uma enfermidade de caráter transitório com forte evidência de herança genética (Parte 1)


Ulysses Fagundes-Neto e Jacy Alves Braga de Andrade

Introdução

Alergia alimentar é uma reação adversa aos alimentos mediada por mecanismos imunológicos, IgE mediados ou não IgE mediados. Colite Alérgica (CA) é um tipo de alergia que pertence ao grupo de hipersensibilidade alimentar não mediada por IgE, também denominada proctocolite induzida por alimentos (1). O mecanismo fisiopatológico ainda não foi totalmente identificado, porém, sabe-se que envolve a presença de linfócitos CD8, bem como linfócitos do tipo TH-2 e infiltrado eosinofílico em todas as camadas da mucosa colônica (2). Além disso, a presença de células de memória circulantes revelada por testes positivos de transformação linfocítica sugere o envolvimento de células T na patogênese desta entidade, associada à secreção de fator de necrose tumoral α pelos linfócitos ativados (3).

Trata-se de uma enfermidade eminentemente do primeiro ano de vida e mais frequentemente afeta lactentes no primeiro semestre, sem provocar agravos de monta sobre o estado nutricional (4). A manifestação clínica mais florida e frequente é a ocorrência de cólicas, de intensidade variável, acompanhada de sangramento retal misturado às fezes, na maioria das vezes sob a forma de diarreia sanguinolenta e eliminação de quantidade significativa de muco (5). Por outro lado, em algumas ocasiões o sangramento retal pode não ser macroscopicamente visível. Usualmente, as lesões são circunscritas ao colon distal e a colonoscopia revela mucosa hiperemiada, com a presença de múltiplas pequenas ulcerações com grande fragilidade vascular e sangramento espontâneo à passagem do colonoscópio (6). A análise histológica evidencia, na imensa maioria dos casos, infiltração eosinofílica, com mais de 20 esosinófilos por campo de grande aumento, a qual pode atingir todas as camadas da mucosa colônica, inclusive o epitélio superficial, podendo também haver a presença de abscessos crípticos e hiperplasia nodular linfóide (7,8).

Estima-se que fatores genéticos exerçam papel fundamental na expressão desta doença alérgica, posto que uma elevada ocorrência de história de atopia nas famílias de crianças que sofrem de CA eosinofílica têm sido descritas (9,10).

No presente trabalho relatamos casos de CA em lactentes, primos entre si, pertencentes a 2 grupos familiares distintos o que evidencia uma forte possibilidade de herança genética envolvida na gênese desta enfermidade, bem como comprovamos o caráter transitório da evolução clínica desta enfermidade.

Casuística e Métodos

 Foram estudados 5 lactentes menores de 6 meses de idade de ambos os sexos pertencentes a 2 grupos familiares distintos (Tabelas 1 e 3), com diagnóstico de CA caracterizada clínica e histologicamente de acordo com os critérios de Walker Smith (11), a saber (Figura 1):
1- Presença de sangramento retal em um lactente com desenvolvimento pondero-estatural adequado;
2- Exclusão de causas infecciosas de colite;
3- Desaparecimento dos sintomas após eliminação do leite de vaca e derivados da dieta da criança e/ou da mãe.


Figura 1- Presença de sangue e muco visíveis a olho nu misturados às fezes.

Os pacientes foram submetidos à seguinte investigação diagnóstica:
1-   Hemograma; 2- Cultura de fezes para pesquisa de agentes enteropatogênicos; 3- Parasitológico de fezes; 4- Retoscopia ou Colonoscopia; 5- Biópsia retal

A avaliação da morfologia da mucosa retal foi realizada de acordo com os critérios de Diaz e cols. (5), a saber: os fragmentos de tecido foram submersos em solução de formalina 10% e, posteriormente, incluídos em parafina e corados com a técnica da hematoxilina-eosina. Foram avaliados os seguintes elementos microscópicos: epitélio superficial, arquitetura das glândulas crípticas, infiltrado celular da lâmina própria e nódulos linfóides. Foi realizada a contagem de eosinófilos para cada camada da mucosa retal de acordo com os critérios de Winter e cols. (12).

Foi obtido consentimento verbal dos pais para a realização dos exames.

Resultados

A cultura de fezes e a pesquisa parasitológica nas fezes resultaram negativas em todos os pacientes.

Família 1

Tabela 1- Heredrograma da Família 1 
Tabela 2 - Principais características clínicas, nutricionais e laboratoriais dos 3 lactentes pertencentes à Família 1.

Família 1
VCA
LBRA
FEBP
Idade (meses)
6
4,5
1
Peso (g)/Altura (cm) ao nascimento
3600/51,5
3270/49
3180/49
Peso (g)/Altura (cm) na consulta
9615/71
6855/66
4695/55
Idade de início do quadro (meses)
5,5

3,5
1,2
Estado geral
Bom
Bom
Bom
Proctite
Sim
Sim
Sim
Palidez cutânea
Não
Sim
Não
Hb
11,3
11,7
-
Colonoscopia
Colite/Fissuras anais e HNL
Colite
Colite
Anatomopatológico
Esboço de granuloma e HNL
Microcolite
Colite eosinofílica
Diagnóstico
Colite alérgica e proctite
Colite alérgica e proctite
Colite alérgica
Conduta
AM
Dexametasona
Fórmula de Mistura de Amino-Ácidos
Dexametasona
Fórmula à base de hidrolisado protéico

Evolução
Boa
Boa
Boa
Desencadeamento (meses)
16
11
12
HNL: Hiperplasia Nodular Linfóide; AM: Aleitamento Materno

VCA – sexo masculino, 6 meses de idade, com história de diarreia com sangue vivo e muco há 20 dias, em aleitamento materno exclusivo. Ambos os pais referiam antecedentes de rinite alérgica. Ao exame físico encontrava-se em bom estado geral com ganho pondero-estatural adequado, Peso= 9615g e Comprimento= 71cm, evidenciando lesões eczematosas na face e retro-auriculares, e proctite (fissura anal às 6 horas). A colonoscopia revelou presença de fissuras anais, aspecto de hiperplasia nodular linfóide e ulcerações colônicas, especialmente no colon direito (Figura 1).


Figura 1- Mucosa colônica evidenciando ulceração (A-B-D) e nódulos linfóides (C).

A microscopia revelou processo inflamatório com esboço de granuloma, hiperplasia nodular linfoide e infiltrado eosinofílico com mais de 20 eosinófilos por campo de grande aumento. Foi levantada a suspeita de alergia alimentar e doença inflamatória intestinal pela presença do esboço de granuloma. A mãe foi orientada a realizar dieta de exclusão do leite de vaca e derivados e soja, associada à dieta do desmame isenta de leite de vaca e derivados e soja; o paciente foi medicado com dexametasona durante 4 semanas. Foram realizados os seguintes exames laboratoriais: α1 anti-tripsina fecal: 4,1mg/g, p-ANCA: não reagente, ASCA: não reagente. A evolução clínica foi favorável com desaparecimento dos sintomas. Aos 8 meses foi suplementado com fórmula à base de hidrolisado proteico extensamente hidrolisado (Alfaré, Nestlé) com boa aceitação. Aos 18 meses foi realizado teste da α1 anti-tripsina fecal: 0,8mg/g e desencadeamento com fórmula láctea o qual foi bem sucedido.

LBRA – sexo masculino, 4 meses de idade, com história de diarreia há 1 mês e sangramento retal há 3 dias. Recebeu aleitamento materno exclusivo até 40 dias de vida quando passou a receber fórmula láctea inicialmente com boa aceitação. Após 40 dias do uso da fórmula láctea iniciou quadro de diarreia caracterizada por fezes líquidas e aumento no número das evacuações, e, 3 dias antes da primeira consulta surgiu sangramento retal. Ao exame físico encontrava-se em bom estado geral, Peso= 6855 e Comprimento= 66cm, palidez cutânea ++, proctite (fissuras anais às 5 e 7 horas). A colonoscopia demonstrou presença de hiperemia da mucosa com microerosões e sangramento espontâneo à passagem do colonoscópio. A microscopia revelou a existência de colite focal ativa com permeação epitelial por neutrófilos (Figura 2).


Figura 2- Microfotografia da mucosa colônica evidenciando erosão do epitélio, aumento do infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria, diminuição do conteúdo de muco nas glândulas crípticas e presença de polimorfonucleares no interior da glândula críptica (abscesso críptico - seta)

Foi considerada a hipótese de CA e introduzida fórmula à base de mistura de aminoácidos (Neocate, Danone) e dexametasona (4 semanas), o que resultou em desaparecimento dos sintomas. A partir dos 6 meses foi introduzida dieta do desmame isenta de leite de vaca e derivados e soja. Aos 11 meses, como estivesse assintomático e por ter iniciado a recusar a fórmula de aminoácidos foi realizado o desencadeamento com fórmula láctea com sucesso.

FEBP- sexo masculino, 40 dias de vida, com história de cólicas intensas e sangue nas fezes há 5 dias, em aleitamento natural exclusivo. Ao exame físico encontrava-se em bom estado geral, Peso= 4695 e Comprimento= 55cm, e proctite (fissura anal às 4 horas). A retoscopia revelou microulcerações e hiperemia da mucosa retal. A microscopia revelou a presença de infiltrado eosinofílico superior a 20 eosinófilos por campo de grande aumento (Figura 3).


Figura 3- Microfotografia da mucosa colônica evidenciando infiltrado eosinofílico permeando o epitélio, na lâmina própria e nas glândulas crípticas.

Inicialmente o paciente foi mantido em aleitamento natural exclusivo tendo sido recomendada dieta isenta de leite de vaca e derivados e soja para a mãe. Como a mãe tivesse cometido transgressões à dieta os sintomas de sangramento retal persistiram, e, portanto, aos 3 meses de vida foi espontaneamente suspensa a lactação. A partir desta data foi introduzida fórmula à base de hidrolisado proteico extensivamente hidrolisado (Alfaré, Nestlé) e os sintomas desapareceram totalmente dentro dos próximos 3 dias. A partir dos 6 meses de idade foi introduzida dieta do desmame isenta de leite de vaca e derivados e soja, com boa aceitação e sem quaisquer intercorrências. Aos 12 meses foi realizado teste de provocação com fórmula láctea com sucesso.      

Família 2

 
Tabela 3- Heredrograma da Família 2

Tabela 4- Principais características clínicas, nutricionais e laboratoriais das 2 lactentes pertencentes à Família 2.
Família 2
STBP
SVBP
Idade (meses)
5
3,5
Peso (g)/Altura (cm) ao nascimento
3165/50
3050/48
Peso (g)/Altura (cm) na consulta
6585/63
5365/59
Idade de início do quadro (meses)
1,5
3
Estado geral
Bom
Bom
Proctite
Não
Não
Palidez cutânea
Sim
Sim
Hb g%
8,5
10
Colonoscopia
HNL
Colite
Anatomopatológico
HNL
Colite Eosinofílica
Diagnóstico
Colite Alérgica
Colite Alérgica
Conduta
FAA/ Ferro
AM/FAA/Dexametasona/Ferro
Evolução
Boa
Boa
Desencadeamento (meses)
18
18
HNL: Hiperplasia Nodular Linfóide; AM: Aleitamento Materno; FAA- Fórmula de Amino-Ácidos.

STBP- sexo feminino, 5 meses de idade, com história de cólicas intensas e eczema retro-auricular desde os 45 dias de vida. Recebeu aleitamento natural exclusivo até os 3,5 meses e a mãe referia que os sintomas se acentuavam quando ela fazia ingestão de leite de vaca, ovos e chocolate. Ambos os pais com antecedentes alérgicos. Ao exame físico a paciente encontrava-se em bom estado geral, Peso= 6585g e Comprimento= 63cm, palidez cutâneo-mucosa ++, Hemoglobina= 8,5g%. A colonoscopia revelou a presença de hiperemia da mucosa e aspecto de hiperplasia nodular linfóide. A microscopia evidenciou congestão vascular da mucosa e hiperplasia nodular linfóide (Figura 4).
Figura 4- Mucosa colônica evidenciando a presença de nódulos linfóides hiperplasiados.

Figura 5- Microfotografia da biópsia da mucosa colônica do paciente STBP evidenciando os nódulos linfáticos hiperplasiados.

Inicialmente foi introduzida fórmula à base de hidrolisado proteico e ferroterapia 5mg/kg/dia; porém como as manifestações clínicas persistissem esta fórmula foi substituída por outra à base de mistura de aminoácidos (Neocate, Danone) com boa aceitação e desaparecimento dos sintomas. Aos 7 meses encontrava-se assintomática, Hemoglobina= 9,5g% e pesquisa de sangue oculto nas fezes negativa. Aos 12 meses foi introduzida dieta sólida isenta de leite de vaca e derivados e soja com boa aceitação. Aos 18 meses foi realizado teste de provocação com fórmula láctea com boa aceitação.

SVBP- sexo feminino, 3,5 meses de idade, com história de sangramento retal há 20 dias, na vigência de aleitamento natural exclusivo. Ao exame físico apresentava-se em bom estado geral, Peso= 5365g, Comprimento= 59 cm, palidez cutânea ++, Hemoglobina= 10g%. A colonoscopia revelou friabilidade da mucosa e microulcerações colônicas. A microscopia evidenciou a existência de colite eosinofílica (+20 eosinófilos por campo de grande aumento). A mãe foi orientada a fazer dieta de exclusão de leite de vaca e derivados, soja, ovos, frutos do mar, frutos oleaginosos, amendoim, tendo havido regressão do sangramento retal. Porém, após a ingestão repetida de coco (doce de coco) ocorreu recidiva do sangramento retal. Nesta ocasião devido à extrema restrição alimentar que a mãe estava se submetendo e também por insegurança quanto à possibilidade de ingerir outros potenciais alergenos não reconhecidos, a mãe decidiu suspender o aleitamento natural e introduzir fórmula à base de mistura de aminoácidos (Neocate, Danone), dexametasona durante 10 dias e ferroterapia 5mg/kg/dia. A evolução mostrou-se favorável até os 6 meses quando foi introduzido complemento com dieta sólida à base de mistura de aminoácidos (Neocate semi-solid food, Danone). Entretanto, esta dieta continha óleo de coco e após 8 dias de sua introdução surgiu uma reação eczematosa nos membros superiores e inferiores (Figura 6).


Figura 6- Lesões eczematosas no membro inferior após a introdução de Neocate semi-solid food que contém óleo de coco.   

Verificou-se que a composição deste alimento continha óleo de coco não hidrogenado à concentração de 6%, e, possivelmente, alguma fração peptídica presente nesta dieta, causou a manifestação alérgica. Diante disto, a dieta sólida foi suspensa e as lesões cutâneas desapareceram dentro de uma semana.

Em razão dessa intercorrência a paciente foi mantida exclusivamente com fórmula à base de mistura de aminoácidos até completar 12 meses de idade. Nesta ocasião foi introduzida dieta sólida isenta de leite de vaca e derivados, soja e coco, com boa aceitação. Aos 18 meses foi realizado teste de provocação com fórmula láctea com boa aceitação.

Bibliografia

1-          Lake AM. Dietary protein-induced colitis in breast-fed infants. J Pediatr 1982; 101:906-10.
2-          Eigenmann PA. Mechanisms of food allergy. Pediatr Allergy Immunol 2009; 20: 5-11.
3-   Chung HL, Hwang JB, Park JJ, Kim SG. Expression of transforming growth factor β1, transforming growth factor type I and II receptors, and TNF-α in the mucosa of the small intestine in infants with food protein–induced enterocolitis syndrome. J All Clin Immunol 2002; 109: 150-4.
4-         Lake AM. The Polymorph in red is no Lady. J Ped Gastroenterol Nutr 1994; 19:4-6.
5-      Diaz NJ, Patricio FS, Fagundes-Neto U. Allergic colitis: clinical and morphological aspects in infants with rectal bleeding. Arq Gastroenterol 2002; 39:260-7.
6-     Behjati S, Zilbauer M, Heuschkel R, Philips A, Salvestrini C, Torrente F, Bates AW. Defining Eosinophilic Colitis in children: Insights from a retrospective case series. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2009; 49:  208-15.
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10-   Hill SM & Milla PJ. Colitis caused by food allergy in infants. Arch Dis Child 1990; 65: 132-140.
11-  Walker-Smith JA. Diagnostic criteria for gastrointestinal food allergy in childhood. Clin Exp Allergy 1995; 25:20-2.
12-   Winter HS, Antonioli DA, Fukagawa N, Marcial M, Goldman H. Allergy-related proctocolitis in infants: diagnostic usefulness of rectal biopsy. Mod Pathol 1990; 3:5-10.