quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Alergia Alimentar mediada por IgE: mecanismos que definem sua evolução transitória versus persistente (Parte 1)


Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

Introdução

A alergia alimentar (AA) tem sua origem a partir de momentos precoces da vida e afeta entre 6% a 8% da população pediátrica. Algumas AAs são comumente transitórias, enquanto outras, eventualmente persistem até a vida adulta. A alergia ao leite, à soja e ao ovo, as quais são as mais comuns na infância, são três causas de alergia que geralmente são superadas ao longo da infância. Um estudo multicêntrico motivacional envolvendo lactentes de 3 a 15 meses de idade, portadores de alergia ao leite ou ao ovo e/ou eczema, demonstrou que aproximadamente 50% deles superaram a alergia ao ovo com uma mediana de 6 anos de idade. A mesma cohort demonstrou que 52,6% das crianças com alergia ao leite, superaram a mesma com uma mediana de idade de 63 meses. Um estudo populacional realizado na Austrália demonstrou que 47% dos lactentes com alergia ao ovo, esta desapareceu aos 2 anos de idade e que sua prevalência diminuiu de 9,5% com 1 ano de idade, para 1,2% aos 4 anos de vida. Um estudo europeu, envolvendo 12mil crianças de diferentes países daquele continente, demonstrou que 17% das crianças portadoras de alergia ao leite, mediada por IgE, superaram o problema aos 2 anos de vida (Figura 1).


Figura 1- Diferentes alimentos causadores de alergia mediada por IgE.

Por outro lado, diferentemente das alergias ao leite e ao ovo, as alergias ao amendoim e às nozes são usualmente persistentes. Um seguimento de 4 anos de duração em um grupo de crianças com alergia ao amendoim, mostrou que 22% delas, nas quais o diagnóstico foi estabelecido com 1 ano de vida,  ela desapareceu ao redor dos 4 anos de vida. A ocorrência de resolução espontânea demonstra que a tolerância pode ser alcançada na AA, o que nos leva à necessidade de conhecer as bases imunológicas desta resolução para que possamos desenvolver um tratamento mais racional para combater a AA persistente.

Fatores preditivos da resolução da AA

Imunoglobulinas específicas aos alimentos

Em um detalhado estudo da história natural do nível de IgE específico para o leite, a resposta ao prick-test para o leite, e a intensidade da dermatite atópica no início da enfermidade, mostraram-se os três fatores preditivos mais importantes para a resolução da alergia ao leite (Figura 2).


Figura 2- Demonstração esquemática da realização do prick test.

Igualmente, níveis IgE específicos para o ovo e a intensidade da dermatite atópica no momento do diagnóstico, foram os dois fatores preditivos mais importantes para a resolução da alergia ao ovo. O uso de níveis de IgE para categorizar os indivíduos introduz uma propensão para se encontrar um papel da IgE nos desfechos clínicos.

Fatores preditivos de persistência da alergia ao amendoim (definida como persistente aos 4 anos de idade), em um estudo australiano, incluíram a resposta ao prick-test e a dosagem da IgE específica para amendoim com um ano de idade. Eczema no primeiro ano de vida não foi um fator preditivo para a persistência da alergia ao amendoim (Figura 3).

Figura 3- Reação positiva ao amendoim pelo prick test.

Níveis de IgG4 a alergênicos específicos não se mostraram fatores preditivos da resolução natural da alergia, porém, níveis de IgG4 encontravam-se elevados à exposição do alergeno.   

Além da magnitude da resposta IgE específica, a especificidade do epitopo da resposta IgE parece ser um importante fator determinante da transitoriedade versus persistência. Estudos que examinaram a persistência da alergia ao leite e ao ovo, salientaram a importância da ligação aos epitopos lineares como o fator preditivo da persistência da alergia. A magnitude da IgE especifica à clara do ovo é um fator preditivo para a persistência da alergia ao ovo. A mensuração da ligação da IgE aos componentes do ovo (ovo mucoide, ovo albumina e ovo transferrina, da clara do ovo, e a alfalivetina, da gema) não aumentaram o fator preditivo de persistência à alergia ao ovo, em comparação com a IgE específica à clara do ovo, mas quando há uma ligação com todos os quatro alergenos, houve um aumento de quatro vezes para o risco da persistência da alergia ao ovo. Desta forma, a diversidade ou intensidade da resposta da IgE parecem contribuir para a persistência da alergia (Figura 4). 
Figura 4- Resposta alérgica mediada pela IgE sérica.

Referências Bibliográficas

1-          Berin, MC – J Allergy Clin Immunol 2019;143:453-7.
2-          Qmar, N et al – Clin Exp Allergy 2015;45:1663-72.
3-          Bunyavanich, S et al – J Allergy Clin Immunol 2016;138:1122-30.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Transtornos Alimentares na Infância (Parte 2)


Fatores relacionados com a capacidade de se alimentar

Experiências de incapacidade de alimentação devido a enfermidades, lesões ou desenvolvimento retardado, podem levar a um prejuízo na capacidade da alimentação. Retardo no desenvolvimento do sistema nervoso, inibindo a alimentação, pode se tornar evidente em qualquer momento nos primeiros anos de vida, durante períodos de mudanças na anatomia orofaríngea e na coordenação neuromuscular, mudanças de texturas e transições dos utensílios para se alimentar e/ou beber. Prejuízos específicos no funcionamento sensor, motor, oral e faríngeo, podem também inibir a capacidade de se alimentar. Além disso, experiências orais alteradas devido a lesões físicas, deficiências da função neurológica, função ou estrutura oral anormal, e/ou experiências alimentares adversas ou limitadas, também podem causar prejuízo na capacidade de se alimentar. 

O prejuízo da função sensorial oral inibe e/ou limita a aceitação e a tolerância de líquidos e das texturas dos alimentos esperados para uma determinada idade; este prejuízo pode estar associado com características específicas dos líquidos e das texturas dos alimentos, tais como, sabor, temperatura, tamanho do bolus, viscosidade, textura ou aparência. A hipossensibilidade é geralmente caracterizada pela falta de percepção do alimento no interior da boca, a limitação da formação do bolus, a perda do alimento pela boca, aumento do tamanho do bolus e engasgos ou recusa de líquidos e texturas dos alimentos que não fornecem adequado estímulo sensorial. Estas crianças, caracteristicamente buscam um aumento do tamanho do bolus ou de sabores exagerados, temperaturas e texturas. Hipersensibilidade está geralmente caracterizada por engasgos com texturas especificas ou tamanho do bolus, excessiva mastigação e variedade de ingestão. Estas crianças buscam caracteristicamente sabores amenos, finamente granulados, bolus pequenos e alimentos na temperatura ambiente.    

O prejuízo da função oral motora limita o controle do bolus, manipulação e/ou o trânsito de líquidos ou sólidos; este fator pode ser caracterizado por ingestão ineficiente, alimentação confusa, baixo controle de líquidos e alimentos, formação e propulsão do bolus de forma lenta ou ineficaz, engasgos durante a formação do bolus, e a existência de resíduos pós deglutição.

Embora o clínico possa avaliar as fases orais visualmente, a avaliação das estruturas faríngeas e suas funções requerem avaliação instrumental, utilizando a deglutição de bário modificado ou a avaliação da deglutição com o endoscópio de fibra ótica. Um prejuízo na sensação faríngea, inibe a proteção aérea e eficaz da deglutição; ela está geralmente associada com deglutição retardada e incoordenada durante o trânsito faríngeo, pouca percepção da localização do bolus, presença de resíduo faringiano após a deglutição e aspiração silenciosa. Uma característica clínica de deficiência sensorial, pode incluir deglutição audível e ausência na tentativa de eliminar o resíduo após a deglutição.

O prejuízo da função motora faríngea inibe os movimentos faríngeos. Ele pode ser evidenciado pela redução da força da coordenação dos constritores faríngeos, elevação laríngea e fechamento da prega vocal. Os sintomas podem incluir múltiplos esforços para deglutir o bolus, inabilidade para eliminar o resíduo faríngeo e ineficiente proteção das vias áreas.  

Disfunção baseada na capacidade de se alimentar

A capacidade de se alimentar na infância, para ser totalmente funcional, necessita ser segura, apropriada para a idade e eficaz. A disfunção em quaisquer destas áreas constitui uma deficiência da alimentação. 

Alimentação oral não segura pode apresentar sufocação, aspiração e sinais cardiorrespiratórios adversos (apneia e bradicardia) durante as alimentações orais ou outros eventos adversos no momento da refeição (engasgos, vômitos, fadiga, recusa alimentar). 

Capacidade retardada para se alimentar pode estar presente quando a criança é incapaz de consumir líquidos e alimentos com textura apropriados para a idade. A criança pode requerer uma modificação da comida ou do líquido, desde a sua forma original, como por exemplo, amassando os sólidos até a formação de um purê. Essas crianças podem apresentar deficiência no uso dos utensílios de alimentação ou mesmo em se auto alimentar.  

Alimentação oral ineficiente pode ser representada por duração prolongada da comida na cavidade bucal ou ingestão oral inadequada.

Fatores Psicossociais

Fatores íntimos relacionados à criança, o cuidador e o ambiente da alimentação, podem afetar de forma adversa o momento da refeição e definitivamente contribuir para a ocorrência e/ou perpetuação do transtorno alimentar.

Prejuízos psicossociais

Fatores psicossociais da criança e/ou do cuidador podem contribuir para a disfunção alimentar.   

Fatores do desenvolvimento resultando em retardo das habilidades motoras, linguagem, socialização e do conhecimento podem contribuir para o surgimento do transtorno alimentar.   

Problemas mentais e de saúde comportamental da criança, do cuidador, ou em ambos podem influir de forma adversa no comportamento alimentar. 

Influências sociais incluindo as interações criança-cuidador e expectativas culturais no momento do contexto da refeição podem impactar no comportamento da criança a respeito da alimentação.

Fatores ambientais podem contribuir para o desenvolvimento de transtornos alimentares. Durante as refeições um meio ambiente de distração, como por exemplo, o uso de televisão ou outros aparelhos eletrônicos, ou o ato de recorrer a artifícios tais como, alimentar a criança somente quando ela estiver sonolenta ou mesmo adormecida, podem ser um fator inadvertido para causar comportamento inadequado.     

Disfunção psicossocial

Transtorno alimentar pode ocorrer como resultado dos prejuízos acima descritos e geralmente se manifestam das seguintes formas, a saber: (As Figuras 3-4-5-6-7 abaixo ilustram os diferentes tipos de Transtornos Alimentares em decorrência de fatores psicossociais).

Aversões aprendidas durante a refeição que resultam quando uma criança sofre repetidamente desconfortos físicos ou emocionais durante as refeições.
Figura 3

Estresse ou angústia da criança e/ou cuidador são expressas como emoções negativas decorrente das refeições.
Figura 4

Comportamentos disruptivos, tais como empurrar o prato de comida para longe (recusa), agressividade contra o cuidador, escapar do ambiente da refeição ou mesmo recusar a se auto alimentar.
Figura 5

Hiperexigência na seleção da comida e a recusa em provar novos alimentos a despeito da criança ter habilidade para comer uma dieta mais diversa.
Figura 6

Estratégias inapropriadas utilizadas pelo cuidador com o intuito de melhorar o estado nutricional da criança.
Figura 7

Conclusões

A despeito de que nem todas as crianças que sofrem de transtornos alimentares apresentem deficiências em todos os 4 domínios anteriormente referidos, a avaliação inicial de cada um destes domínios é fortemente recomendada. Esta conduta deve ser realizada porque os mesmos sinais e sintomas apresentados podem render recomendações complementares de domínio específicas, necessárias para o sucesso do tratamento, em promover a melhor forma da função desejada.

Por meio da utilização de uma terminologia consistente, detalhada e interdisciplinar que consiga englobar ambos, o prejuízo fisiológico e a função, essas definições têm o potencial para facilitar a colaboração interdisciplinar, promover um currículo educacional para o treinamento dos profissionais da saúde, e permitir a comparação dos desfechos entre os estudos (pesquisas) e os programas clínicos. Esta proposta, por sua vez, pode levar ao reconhecimento do diagnóstico específico dos subtipos de transtornos alimentares, proporcionando assim implicações no possível êxito terapêutico e no respectivo prognóstico. 

Referências Bibliográficas

1-   Godoy PS & cols. -JPGN 2019;68:124-29.
2-   Jadcherla S – Am J Clin Nutr 2016;103:622-28.
3-   Becker P & cols. – Nutr Clin Pract 2015;30:147-61.
 4- Chandran JL & cols. – Int J Eat Disord 2015;48:1176-9.