segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Dor abdominal recorrente na infância: resumo das avaliações de tratamento de três revisões sistemáticas (Parte 2)



                          Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto 


Resultados e Discussão

Os dados analisados nesta revisão sistemática forneceram alguma evidência de qualidade moderada sugerindo que probióticos podem ser eficazes no manejo das crianças com DAR. Os relatos de uso de probióticos mostraram que ocorreu uma redução na intensidade e na frequência da dor abdominal em um período de curto prazo, inferior a 3 meses. Entretanto, as evidências mostraram uma limitada eficácia quanto à utilização dos probióticos por um período de médio e longo prazo, de três a seis meses. As evidências relativas a eficácia das diferentes cepas de probióticos, até o presente momento, são insuficientes para que seja indicada uma proposta clínica de preferência. A revisão sistemática também mostrou uma evidência de baixa qualidade para sugerir que a terapia cognitiva-comportamental e a hipnose possam ser eficazes no tratamento da DAR, pois ambas se mostraram de alguma forma eficazes no alívio da dor, apenas no curto prazo. Esta revisão sistemática revelou uma evidência insuficiente para dar apoio ao uso de dietas baseadas em fibras, dietas restritivas em carboidratos simples e complexos, inclusive restrição ao uso da frutose e yoga. Esta revisão também não evidenciou qual abordagem farmacológica poderia ser eficaz no tratamento da DAR.

Conclusão

A patogênese da DAR em crianças permanece sem esclarecimento e em consequência há a necessidade de estudos mais aprofundados para elucidar a sua etiologia. É mais provável que a queixa de dor abdominal seja uma manifestação singular de uma grande variedade de causas relacionadas com processos psicológicos e orgânicos do que uma entidade única. Tem sido sugerida a existência de diferentes subtipos clínicos de DAR o que, portanto, orientaria a escolha de tratamentos específicos, porém, esta hipótese, até o presente momento, não encontra apoio baseada em evidências de alta qualidade. Ensaios clínicos mais amplos, estratificados pelos subtipos postulados são, portanto, necessários não somente para servirem de guias de conduta nas crianças com DAR, mas também para validar a utilidade das classificações propostas.

Meus Comentários

A DAR continua a ser, sem dúvida alguma, um enorme incômodo para os pacientes, uma grande preocupação para os pais e um grande quebra-cabeças para os Pediatras e para os Gastroenterólogos, na busca de uma solução satisfatória para as queixas dos seus pacientes. O especialista, na maioria das vezes, se vê confrontado com a necessidade de buscar afastar as outras várias possíveis causas orgânicas de dor abdominal, tais como, Doença Celíaca, Doença Inflamatória Intestinal, Gastrite, Infecção por Helicobacter pylori, Infestação Parasitária, Alergia Alimentar, Esofagite Eosinofílica e mesmo algumas patologias mais raras, para, por exclusão, poder chegar à possível conclusão, com razoável grau de segurança, de que seu paciente apresenta um transtorno funcional (Figuras 5-6-7-8-9).


Figura 5- Quadro clínico florido de uma paciente portadora de doença Celíaca com parada do ritmo de crescimento antes do diagnóstico e início da recuperação nutricional após a introdução da dieta isenta de glúten.


Figura 6 A- Imagem de hipertrofia nodular antral provocada pela infecção do Helicobacter pylori.


Figura 6 B- Visão em microscopia óptica comum em grande aumento da presença grupos de Helicobacter pylori (em marrom).


Figura 7- Imagem de trofozoítas de Giardia lamblia (seta) presentes na luz do intestino delgado.


Figura 8- Visão de imagem de colonoscopia de lesões erosivas em paciente portador de Colite Eosinofílica. 


Figura 9 A- Visão de exame endoscópico de paciente portador de Esofagite Eosinofílica, notando-se traqueização (esquerda) e edema com formação de sulcos (direita).


Figura 9B- Imagem em microscopia óptica comum de espécime de biópsia de esôfago em paciente portador de Esofagite Eosinofílica evidenciando grande quantidade de eosinófilos na mucosa formando verdadeiro abcesso eosinofílico.

Mesmo ao se considerar que se está diante do diagnóstico de DAR, sabe-se também que estamos lidando com um transtorno de etiologia multifatorial, envolvendo os mais diversos componentes do organismo humano, aspectos intrínsecos e extrínsecos, desde o eixo Sistema Nervoso Central-Trato Digestivo, a hipersensibilidade visceral, as alterações da microbiota intestinal, até os inúmeros fatores dietéticos, conforme têm sido descritos os mais recentes conhecimentos fisiopatológicos sobre o tema. O cuidar deste grupo de pacientes trata-se de um desafio médico constante, para que se possa a longo prazo, oferecer o desejado alívio dos episódios de dor e a melhor qualidade de vida possível.  

Referências Bibliográficas

   1)   Abbott RA e cols.: Recurrent abdominal pain in children. JPGN 2018; 67:23-33.
2)   Abbott RA e cols.: Psychosocial interventions for recurrent abdominal children. Cochrane Database Syst Rev 2017; 1:CDO10971.
    3)   Martin AE e cols.: Pharmacological interventions for recurrent abdominal pain in children hood. Cochrane Database Syst Rev 2017; 3:CDO10973.
4)   Newlove-Delgado TV e cols.: Dietary interventions for recurrent abdominal pain in children hood. Cochrane Database Syst Rev 2017; 3:CDO10972.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Dor abdominal recorrente na infância: resumo das avaliações de tratamento de três revisões sistemáticas (Parte 1)



Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

Introdução

A dor abdominal recorrente (DAR) é um problema comum na prática pediátrica, com prevalência estimada que varia de 2% a 41%. Entre 4% e 25% das crianças em idade escolar sofrem de DAR intermitentemente, o que é bastante para interferir em suas atividades de vida diariamente. A DAR está associada com afastamentos escolares, internações hospitalares e em determinadas ocasiões até mesmo intervenções cirúrgicas desnecessárias.  A dor abdominal geralmente está associada com outros sintomas, tais como: cefaleia, dores nos membros, palidez e vômitos, os quais podem persistir até a vida adulta. A DAR pode causar significativa ansiedade nos pais e cuidadores, os quais se sentem sobrecarregados pelo receio da coexistência de enfermidades mais graves, ou mesmo por se sentirem incapazes para aliviar os sintomas apresentados pela criança.

A DAR nas crianças representa um grupo de transtornos funcionais gastrointestinais que apresentam uma etiologia não esclarecida. O último consenso da Fundação Roma sugere que esses transtornos estão relacionados com os seguintes eventos fisiopatológicos, a saber: alteração da motilidade do trato digestivo, hipersensibilidade visceral, alteração da função imunológica e da mucosa, alteração da microbiota intestinal e alteração nos processos envolvendo o sistema nervoso central (Figuras 1-2-3-4).


Figura 1- Manifestações clínicas decorrentes da intolerância a determinados carboidratos da dieta que podem estar presentes nos transtornos funcionais gastrointestinais.


Figura 2- Representação esquemática dos diversos mecanismos fisiopatológicos envolvidos nos transtornos funcionais.


Figura 3- Representação esquemática dos mecanismos fisiopatológicos envolvidos na Síndrome do Intestino Irritável.


Figura 4- Representação esquemática do eixo Sistema Nervoso Central-Trato Digestivo, destacando a grande importância das relações cognitivas e emocionais entre ambos sistemas do nosso organismo, o trato digestivo se constituindo no chamado “Segundo Cérebro”.

A Fundação Roma sugere que a DAR é “o produto de interações de fatores psicossociais e alterações fisiológicas do trato digestivo tendo como via o eixo cérebro/intestino”. Para o propósito desta revisão sistemática a DAR foi utilizada como um termo “guarda-chuva” para descrever o que atualmente se refere como “transtornos funcionais de dor abdominal” de acordo com a nova classificação de Roma IV: dispepsia funcional, síndrome do intestino irritável, enxaqueca abdominal e dor abdominal funcional.

Até o presente momento não existe um consenso ou guias de conduta a respeito das intervenções oferecidas aos pacientes, e, consequentemente, o tratamento da DAR permanece sem uma definição consistente.  Esta revisão sistemática tem por objetivo avaliar a eficácia das intervenções dietéticas, farmacológicas e psicológicas nas crianças em idade escolar que sofrem de DAR.

Métodos

A revisão sistemática foi conduzida de acordo com os princípios gerais publicados pela Cochrane e foi relatada segundo os critérios estabelecidos pelas Revisões Sistemáticas de Meta-Análises.

Critérios de Inclusão

Crianças com idades de 5 a 18 anos com DAR ou um transtorno funcional gastrointestinal relacionado com dor abdominal, conforme a definição dos critérios de Roma III, foram incluídas. O efeito primariamente avaliado foi a dor, segundo os seguintes parâmetros: intensidade, frequência, duração, ou a proporção dos participantes que referiram significativo alívio da dor. Os estudos foram agrupados de acordo com a sua duração, da seguinte forma: seguimento de curto prazo (0-3 meses), médio prazo (3-6 meses) e longo prazo (6 ou mais meses). Os seguintes desfechos secundários foram analisados: desempenho escolar, comportamento social ou psicológico, qualidade de vida diária, e outros adventos adversos.