segunda-feira, 18 de junho de 2018

Retardo do Esvaziamento Gástrico (Parte 1)


Marina Haro Chicareli Carrari e Ulysses Fagundes Neto

Introdução

O esvaziamento gástrico é dependente de uma atividade motora coordenada que tem por objetivo levar o alimento da porção proximal para a distal do estômago.

O retardo do esvaziamento gástrico, também conhecido como gastroparesia, trata-se de um transtorno da motilidade gástrica em que a habilidade do estômago para se contrair e ser esvaziado encontra-se prejudicada. Cerca de 30 a 50% dos pacientes com sintomas gastrintestinais crônicos inexplicáveis ou portadores de Diabetes mellitus sofrem de retardo do esvaziamento gástrico. Além disso, estima-se que cerca de 4% da população apresentará, em algum momento da vida, sintomas sugestivos de gastroparesia.

A gastroparesia é decorrente de uma associação heterogênea, não totalmente elucidada, de disfunções motoras e sensoriais, e os sintomas apresentados podem não estar relacionados com distúrbios da motilidade gástrica. Não é incomum que o paciente com gastroparesia tenha evidências de dismotilidade nos outros segmentos do trato digestivo.

Fisiologia da Motilidade e do Esvaziamento Gástrico

Desde o ponto de vista anatômico o estômago compreende as seguintes regiões, a saber: Cardia, Fundo, Corpo, Antro e Piloro (Figura 1).
Figura 1- Anatomia do estômago evidenciando seus respectivos pontos de referência.

O estômago tem como função primordial triturar, misturar e controlar a passagem do alimento para o intestino delgado, e, para comandar todos estes atributos existe o marcapasso gástrico que se situa no primeiro terço do corpo ao longo da grande curvatura, aonde estão presentes as células intersticiais de Cajal, as quais geram ondas lentas de 3 ciclos/minuto, e também o potencial de membrana. Essas ondas propagam-se pelo antro e regulam a frequência e o exato momento das contrações do músculo liso. Quando uma onda adicional de despolarização se sobrepõe às ondas lentas um limiar crítico é alcançado e a contração ocorre.

O estômago em condições normais apresenta 2 períodos de motilidade, a saber: o pós-prandial e o interdigestivo.

A motilidade pós-prandial é composta por 2 fases que são mediadas pelo nervo vago com o intuito de relaxar o estômago proximal durante a alimentação, permitindo a ingestão de grande quantidade de comida.

Após a ingestão do bolo alimentar ocorre o relaxamento do esfíncter esofágico inferior e do estômago proximal, que se trata de um relaxamento receptivo mediado por um reflexo vagal. Ao chegar ao estômago, o bolo alimentar ativa os mecanorreceptores na parede gástrica que mantém o relaxamento por reflexo vagal denominado relaxamento adaptativo. Esse relaxamento atrasa o esvaziamento o que possibilita manter o alimento por um tempo suficiente em contato com as enzimas gástricas. O estômago proximal regula a pressão intra-gástrica e as contrações tônicas do fundo, produzindo o gradiente de pressão entre o estômago e o duodeno. As contrações fúndicas transferem os resíduos sólidos presentes no interior do estômago proximal para o antro, caracterizando o que se denomina de moagem.

O mecanismo que coordena a passagem do bolo alimentar do estômago proximal para o distal é desconhecido, entretanto, os reflexos fundo-antro sugerem a existência de uma conexão neuronal entre as 2 regiões. Ondas circulares propagam as contrações originadas no corpo a fim de mover o bolo sólido através do piloro. Por sua vez, ondas peristálticas intermitentes, isoladas e fortes, presentes na região do antro, se chocam contra o piloro que se encontra fechado, permitindo que os alimentos sólidos sejam agitados e moídos.

O piloro mantém-se fechado e, portanto, não permite a passagem do bolo alimentar até que o processo de trituração no antro tenha terminado. Finalmente, quando o bolo alimentar se encontra devidamente triturado em partículas suficientemente pequenas e adequadas para favorecer a digestão e a absorção intestinal, o esfíncter do piloro relaxa e permite a passagem do quimo para o duodeno. O peristaltismo do antro impulsiona o seu conteúdo para o duodeno e o esvaziamento gástrico é completamente alcançado. Essa motilidade antral e duodenal são coordenadas por meio de neurotransmissores e hormônios que atuam sinergicamente. Durante o processo da alimentação o bulbo duodenal também se contrai para auxiliar o esvaziamento gástrico (Figura 2).
Figura 2- Representação esquemática dos movimentos intra-gástricos durante o processo da digestão dos alimentos.

A presença de nutrientes no duodeno ativa os receptores neuro-humorais enterogástricos ativando o sistema de retroalimentação que regula a motilidade proximal e distal, o que acarreta a diminuição das ondas de propagação e da atividade antral, aumentando o tônus do piloro e por fim diminuindo a drenagem transpilórica.

Fatores que Afetam a Velocidade do Esvaziamento Gástrico

Existem inúmeros fatores dos alimentos, intrínsecos e extrínsecos, que podem atuar sobre a velocidade do esvaziamento gástrico, tais como: volume, consistência, densidade calórica, osmolaridade, temperatura, propriedades químicas, estado metabólico, variações no dia e da temperatura do meio ambiente, entre outros menos importantes.

A Tabela 1 apresenta os principais fatores que afetam o esvaziamento gástrico, discriminando os que aceleram e os que retardam.

Tabela 1   -- Factors Affecting Gastric Emptying
Intraluminal Content
Slows Accelerates
Lipids
Slows
High osmolar load
Slows
High caloric density
Slows
Solids
Slows
Hot meals
Accelerates
High gastric pH
Slows 
Other Factors       

GLP-1
Slows
Leptin
Slows
Cholecystokinin
Slows
Hyperglycemia
Slows
Hypoglycemia
Accelerates
PYY
Slows 
Ghrelin
Accelerates
Motilin
Accelerates
Melatonin
Slows
Stress
Slows 
Intense exercise
Slows
Rectal/colonic distention
Slows

        Fatores que influenciam a Motilidade Pós-Prandial

Existem alguns fatores conhecidos que são capazes de afetar a motilidade pós-prandial, a saber:

1-   Temperatura: quando está elevada acelera, e, por outro lado, quando o alimento está frio ou morno há uma inibição das ondas de pressão antral com estimulo das ondas de pressão no duodeno. 

2-   Composição: a composição química dos alimentos afeta a motilidade pós-prandial, e a regulação do esvaziamento gástrico é controlada pelo intestino delgado, tais como a motilidade, o apetite, a produção de energia e a homeostase da glicemia. 

3-   Lipídeos: quando estão presentes no intestino delgado retardam o esvaziamento devido a uma diminuição do tônus do antro e aumento do tônus do piloro. Os lipídeos estimulam a produção da colecistoquinina e do peptídeo YY. Estes, por sua vez, inibem a fome, aumentam a oferta de energia e retardam o esvaziamento. Os lipídeos são os mais potentes estimuladores dos quimiorreceptores do freio ileal, o qual inibe a retroalimentação para o esvaziamento gástrico e o trânsito no intestino delgado.
 4-   Peptídeos: alguns peptídeos têm também ação sobre o esvaziamento gástrico, pois quando há aumento do teor de gorduras e carboidratos na dieta ocorre concomitantemente uma elevação sérica do complexo GPL/GPL1 que irá atuar na homeostase da glicose levando a uma diminuição da glicemia devido ao estímulo da insulina e inibição do glucagon. O GPL1 relaxa o fundo gástrico e inibe a propagação das ondas antro-piloro-duodenais, estimula a motilidade do piloro, e, por fim, freia o esvaziamento. Portanto, a diminuição da glicemia sérica pós-prandial, também funciona como freio ileal, o que acarreta a sensação de plenitude e saciedade.

A Grelina é secretada pelo estômago, aumenta o tônus do estômago proximal, acelera o esvaziamento gástrico, aumenta a atividade do complexo motor migratório do estômago e do intestino delgado, e controla a produção dos peptídeos pancreáticos: somatostatina e glucagon.

A Motilina é um potente estimulante da motilidade gastrintestinal, com efeitos similares aos da grelina, importante para a saciedade. Enquanto o estômago e o intestino delgado estão repletos, a motilina é liberada com intervalos a cada 100 minutos no período inter-digestivo. Utiliza a via colinérgica e estimula o pâncreas (endócrino e exócrino) e o esvaziamento da vesícula.

A Leptina é a reguladora do apetite, do peso e da energia. Retarda o esvaziamento gástrico levando à saciedade.

 5- Estresse: situações de estresse acarretam hipomotilidade antral, diminuem a propagação das ondas peristálticas, aumentam as contrações retrógradas e retardam o esvaziamento gástrico. O estresse também estimula o fator liberador de corticotrofina e de outras moléculas endócrinas.

A duração do período pós-prandial pode ser calculada por estudos manométricos, e, quando ela se revela normal indica que há uma integridade do nervo vago e dos reflexos enteroentéricos.

Fatores que afetam a Motilidade Inter-digestiva ou Jejum

O principal componente da motilidade inter-digestiva é o Complexo Motor Migratório (CMM). Este complexo trata-se de um “programa” que envolve o estômago, intestino, pâncreas e vesícula biliar; ele é composto por componentes mecânicos, físicos, químicos, biológicos e imunológicos, a saber: 

A-  Componentes secretórios: bile, suco pancreático, ácido clorídrico, bicarbonato; 

B-  Componente mecânico: envia secreções e alimentos não digeridos para o intestino delgado para evitar o sobrecrescimento bacteriano.

Fases da Motilidade inter-digestiva

São 4 as fases da motilidade inter-digestiva, as quais apresentam duração de 90 a 180 minutos; elas são comandadas por neurônios colinérgicos pertencentes ao sistema nervoso entérico, a saber:

1      – Quiescência (10%),
2      – Pouca atividade: ondas irregulares e intermitentes,
3 – Contrações (3-4/minuto no antro, 10-13/min no duodeno, 7-8 min/íleo): as ondas se propagam por longas distâncias, são mais lentas que na fase 2, duram aproximadamente 7 minutos, na velocidade 25 cm/min,
4      – Contrações irregulares.

Vale ressaltar que quanto maior for o tempo do jejum, menor será a duração do CMM.

Na Figura 3 estão representadas graficamente as fases da motilidade inter-digestiva.
Figura 3– Representação gráfica das fases de motilidade inter-digestiva.

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