quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Distúrbios da deglutição: diagnóstico e tratamento (Parte 1)

Ana Catarina Gadelha de Andrade e 
Ulysses Fagundes Neto


Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica – Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo

Corte axial da face e parte do pescoço, regiões anatômicas envolvidas no processo da deglutição.

Introdução

Para a maioria das pessoas, a deglutição é um ato normal e espontâneo, porém, apesar da sua facilidade, este processo consiste em uma atividade sensório-motora complexa e dinâmica, que envolve 26 pares de músculos e cinco nervos cranianos.

A  complexidade da deglutição se deve  a uma via comum entre os tratos respiratório e gastrointestinal, o que permite o fornecimento seguro do alimento ingerido desde a boca até o estômago, assegurando a proteção das vias respiratórias.

O reflexo da deglutição já se encontra presente na 17ª semana de gestação (líquido amniótico) e o reflexo da sucção na 20ª semana. Somente entre a 34ª e 35ª semanas de vida, o feto apresenta condições de coordenar sucção, deglutição e respiração.

As modificações da anatomia e fisiologia da cavidade oral e faringe iniciam-se entre o terceiro e o sexto mês de vida, e a deglutição na infância está constantemente se adaptando às mudanças ocorridas acompanhando o desenvolvimento.

Tradicionalmente, a deglutição é dividida em três fases convencionais sob os controles voluntário e reflexo.  Distúrbios da deglutição podem acometer uma ou mais fases. Na Figura 1 estão detalhados os diferentes estágios fisiológicos da deglutição.

Figura 1- Estágios fisiológicos da deglutição.

A avaliação e o manejo dos problemas da alimentação e da deglutição em Pediatria – Disfagia – raramente são caracterizados precocemente.

Cerca de 37% a 40% dos lactentes e crianças com distúrbios da alimentação e da deglutição nasceram prematuramente e têm risco aumentado para doenças respiratórias e neurológicas, além de atraso no desenvolvimento, o que contribui para a ocorrência das dificuldades na alimentação e deglutição.

A incidência de disfagia, um transtorno da deglutição, é desconhecida, embora tudo indique que esteja em constante aumento. Uma explicação parcial para este fenômeno é o aumento da sobrevida de crianças com antecedentes de prematuridade, baixo peso ao nascer ou condições médicas complexas.

Os dados sobre a prevalência e a incidência dos distúrbios da deglutição na população pediátrica são limitados, devido a escassez de protocolos diagnósticos padronizados, os diferentes métodos de avaliação, a difícil distinção entre os padrões alimentares variantes do normal e os distúrbios, e a supervalorização da patologia subjacente. Na Tabela 1 estão listados os diagnósticos mais frequentes associados a disfagia em crianças.

Tabela 1- Condições mais comuns associadas à disfagia em Pediatria.

Em algumas crianças, os sintomas de disfagia podem ser o primeiro sinal de outras condições subjacentes. Problemas na alimentação durante a infância podem ser preditivos de doenças graves. Apesar do aumento do risco de disfagia associada com diferentes condições médicas ou de desenvolvimento, a disfunção da deglutição isoladamente tem sido documentada em crianças neurologicamente normais, sem causas identificáveis ​​no momento da apresentação. Disfagia também pode ocorrer após estados agudos de infecções respiratórias em crianças saudáveis.

Diagnóstico

As manifestações clínicas dos distúrbios da deglutição não são específicas para cada etiologia, e, na verdade, constituem uma síndrome, a qual pode cursar com recusa alimentar, fadiga e tosse durante a alimentação, escape oral, regurgitação nasal, engasgos, asfixia, cianose e alteração da qualidade vocal, além de problemas pulmonares e de aspiração, podendo levar a déficits nutricionais e desidratação, resultando em perda de peso, pneumonia e morte.

Na Tabela 2 estão descritas as frequências relativas dos critérios clínicos utilizados pelos neonatologistas para a indicação da avaliação diagnóstica de disfagia em lactentes.


Tabela 2- Frequência relativa dos critérios clínicos para indicação de avaliação do diagnóstico de disfagia em lactentes.

Na Tabela 3 estão abordados os pontos chave que devem ser considerados na história clínica para o diagnóstico de disfagia.

     
Tabela 3- Pontos chave da história clínica.

Disfagia Orofaríngea (DO)

A DO pode também ser denominada disfagia "alta" em virtude da sua localização, e, pode haver disfagia individualizada (oral, faríngea) ou ambas. Geralmente há uma disfunção neuromuscular associada.

Oral: neste caso ocorre dificuldade para iniciar a deglutição; há derramamento dos alimentos através dos lábios; incapacidade de mastigar ou impulsionar os alimentos para a faringe; sialorréia ou xerostomia.

Faríngea: sensação de bolo no pescoço; regurgitação nasal; são necessários vários movimentos de deglutições para esvaziar a faringe; voz anasalada e disfonia; no caso de surgir tosse ou asfixia pode sugerir aspiração.

A Tabela 4 apresenta as principais causas de disfagia orofaríngea.

Tabela 4- Principais causas de disfagia orofaríngea.

Disfagia Esofágica (DE)

A DE pode também ser denominada “disfagia baixa”. A disfagia que ocorre igualmente para sólidos e líquidos geralmente está relacionada a dismotilidade esofágica. A suspeita é reforçada quando a ocorrência de disfagia intermitente para sólidos e líquidos estiver associada a dor torácica.

A disfagia que ocorre apenas para sólidos, mas nunca para líquidos, sugere a possibilidade de obstrução mecânica, como por exemplo, estenose da luz esofágica. Caso seja progressiva deve-se considerar particularmente as hipóteses de estenose péptica, esofagite eosinofílica ou carcinoma. Na Tabela 5 estão listadas as principais causas de DE.

Tabela 5- Principais causas de DE.

Anéis Esofágicos (AE)

AEs são geralmente vistos no terço inferior do esôfago. Podem ser dos seguintes tipos, a saber: anel muscular (tipo A) ou anel da mucosa (Schatzki - tipo B). Anéis musculares são pouco frequentes e raramente causam disfagia. Estão localizados em até 2 centímetros da junção escamo-colunar do esôfago e ocorrem devido a hipertrofia muscular.

Em contraste, o anel de Schatzki está localizado na junção escamo-colunar. É observado em 6% a 14% dos pacientes assintomáticos durante os estudos rotineiros com bário. Pode ser visto em associação nos pacientes que sofrem de esofagite eosinofílica. É mais comum em pacientes acima dos 40 anos de idade, mas também pode ser visto em pacientes mais jovens.

A etiologia dos anéis do esôfago não está clara. Há evidências inconclusivas implicando doença do refluxo gastro esofágico (DRGE) na patogênese dos anéis de Schatzki. Geralmente os anéis de Schatzki estão presentes nos pacientes que apresentam disfagia episódica para alimentos sólidos. O diagnóstico é realizado utilizando-se o esofagograma com bário e, também, pela endoscopia digestiva alta.

A dilatação mecânica é o tratamento de escolha para pacientes sintomáticos, bem como deve-se dar atenção ao tratamento da condição médica subjacente.

Estenose Péptica (EP)

A EP é uma complicação vista em 10% dos pacientes com DRGE, mais comumente em pacientes com idade avançada e do sexo masculino, com pirose prolongada e uso crônico de antiácido. Nesta circunstância ocorre disfagia para sólidos e, eventualmente, para líquidos. A endoscopia digestiva alta é o padrão ouro para o diagnóstico e o esofagograma com bário  complementa o diagnóstico.

O tratamento é feito por meio da dilatação esofágica.

Acalásia

Acalásia trata-se de um distúrbio motor primário do esôfago, relativamente incomum, envolvendo o segmento de músculo liso do esôfago. Caracteriza-se pela ausência de relaxamento ou relaxamento incompleto do esfíncter esofágico inferior, e perda do peristaltismo do esofágico.

A etiologia da acalásia é desconhecida e em cerca de 98% dos casos é idiopática. Seu pico de incidência varia entre os 25 e os 60 anos de idade.

Os pacientes usualmente apresentam disfagia progressiva para sólidos e líquidos, pirose, dor no peito, soluços e perda de peso. A avaliação diagnóstica deve incluir radiografia de tórax, que pode mostrar ausência da bolha gástrica e nível hidroaéreo no esôfago. O esofagograma baritado, pode mostrar esôfago dilatado, atônico com o clássico '‘bird peak’', que é um suave estreitamento da junção esofagogástrica.

A endoscopia digestiva alta permite descartar acalásia secundária, como por exemplo, carcinoma do cárdia. A manometria esofágica deve ser realizada para confirmar o diagnóstico de acalásia, mostrando aperistalse, pressão intraesofágica aumentada, relaxamento do esfíncter esofágico inferior incompleto e esfíncter hipertenso.

O tratamento da acalasia inclui o uso de nitratos, bloqueadores dos canais de cálcio e sildenafil. Quanto à abordagem endoscópica, esta envolve injeção de toxina botulínica no esfíncter esofágico inferior e dilatação pneumática.

Nenhum comentário: