3- A
consolidação da tradição em Pesquisa: Expandindo as
fronteiras do “Tratado de Tordesilhas” da ciência (Parte 3)
3.1- A
criação da Unidade Metabólica de estudos sobre Diarreia no Hospital Umberto
Primo: desvendando as perdas hidroeletrolíticas fecais, as intolerâncias
alimentares e adquirindo os devidos conhecimentos para solucionar os problemas
com eficácia
Na década de
1980, diarreia aguda e persistente ainda se constituíam em seríssimos problemas
de saúde pública no país, eram, sem dúvida alguma, uma das principais causas de
morbidade e mortalidade em crianças menores de 5 anos de idade, acarretando a
necessidade de internação por desidratação e agravo nutricional. A maioria dos
leitos pediátricos dos hospitais públicos eram ocupados por pacientes
portadores destas enfermidades. Em geral as internações se prolongavam em
virtude das inúmeras intolerâncias alimentares decorrentes das ações
fisiopatológicas dos agentes enteropatogênicos sobre a mucosa do intestino
delgado provocando graves deficiências nas funções digestivo-absortivas dos
lactentes de baixa idade. Estas disfunções geravam um ciclo vicioso, posto que
além das perdas hidroeletrolíticas fecais por ação do agente enteropatogênico,
as perdas nutricionais concomitantes provocavam agravo do estado nutricional,
gerando uma situação caótica que se retroalimentava. Fazia-se de crucial importância
conhecer com riqueza de detalhes quais eram estas perdas, isto é, poder
identificar o que era consequência da ação do agente etiológico separadamente
das perdas nutricionais decorrentes das intolerâncias alimentares. Este dilema
vivia me atormentando o pensamento pois já havíamos adquirido os conhecimentos
teóricos de ambas as situações, agente enteropatogênico-intolerância alimentar,
porém não conseguíamos mensurar com exatidão as perdas fecais de água,
eletrólitos e nutrientes dos nossos pacientes, as avaliações eram bastante
subjetivas. Este desconhecimento dificultava sobremaneira a proposta de uma
conduta terapêutica ótima, era necessário desvendar este mistério aparentemente
insolúvel.
Foi, então,
nesta situação extremamente angustiante que surgiu um convite desafiador. Ele
veio por parte do Prof. Dr. Domingos Palma, ex-residente de Pediatria do Hospital
São Paulo (HSP), à época responsável pela direção do Serviço de Pediatria do
Hospital Umberto Primo (HUP). O convite se referia para ser o Coordenador do
Serviço de Pediatria do HUP com ênfase prioritária na minha especialidade. O
HUP era uma instituição filantrópica de direito privado sem fins lucrativos, havia
sido fundado em fins do século XIX, que funcionava como centro de referência
terciário de pacientes portadores de patologias de alta complexidade (Figuras
1-2-3).
Figura 1- Vista
aérea do complexo HUP na década de 1980. Ao fundo à esquerda a antena da TV
Gazeta situada na Avenida Paulista 900.
Figura 2- Vista
da entrada principal do HUP na década de 1980.
Figura 3- Vista
da fachada da Maternidade Filomena Matarazzo em outubro de 2014.
Visitei o
hospital para conhecer o serviço e verifiquei que lá abria-se uma enorme janela
de oportunidades para desenvolver um trabalho de vulto, inclusive não somente voltado
ao ensino e à assistência, mas também à pesquisa, pois diferentemente do HSP,
onde os leitos pediátricos eram em número restrito, no HUP havia uma abundância
de leitos, e, além disso, casos de diarreia aguda e persistente eram altamente
prevalentes, e não havia nenhum especialista devidamente treinado para
enfrentar tal demanda. Dr. Palma sabedor das dificuldades quanto à disponibilidade
de leitos pediátricos para internar nossos pacientes no HSP, e, interessado em
poder proporcionar atenção médica de cunho acadêmico procurou-me para oferecer
a possibilidade de criarmos no HUP uma Unidade Metabólica de Cuidados em
Diarreia. Tratava-se de um convite
irrecusável pois vinha exatamente de encontro aos meus anseios, e, portanto,
foi imediatamente aceito. Tornava-se, agora, necessário discutir as bases de
implantação deste novo Serviço, tanto do ponto de vista administrativo,
assistencial, como também de ensino pois havia programa de residência médica em
pleno funcionamento, e em breve futuro criar condições para realizar pesquisa
de alto valor científico.
Desde o ponto
de vista administrativo estava sendo criado um serviço afiliado ao Departamento
de Pediatria da EPM, à semelhança do que se observa em outros países, em
particular nos Estados Unidos, com excelentes resultados. O Conselho do
Departamento de Pediatria, sob a presidência do Prof. Dr. Fernando Nóbrega,
apoiou por unanimidade nossa proposta, e assim esta ligação tornou-se
oficialmente estabelecida. Tratava-se de um projeto pioneiro e uma excelente
oportunidade de ver estendida a influência e o prestígio científicos da EPM extramuros,
obtendo-se dividendos recíprocos, ambas as instituições passariam a se
beneficiar desta iniciativa, pois criavam-se oportunidades para que docentes,
alunos e residentes de ambas as instituições viessem a usufruir de um profícuo
intercambio.
É verdade que
muitos obstáculos teriam que ser vencidos até que conseguíssemos alcançar nosso
objetivo final, a implantação de unidade de assistência médica de alto nível de
qualidade, porque a infraestrutura não era totalmente adequada, os pacientes
permaneciam em grandes enfermarias, o pessoal de saúde, de uma maneira geral,
não tinha treinamento específico, a contaminação intra-hospitalar era alta, mas
havia uma grande boa vontade em querer aprender para assistir da melhor forma
possível e desejável nossos pacientes. Enfim, tudo consistia em um grandioso e
estimulante desafio a ser enfrentado.
Uma vez
iniciado nosso trabalho, nossa primeira missão foi convencer a direção do
hospital a construir fisicamente a unidade metabólica. Ao invés de grandes
enfermarias, para evitar a infecção cruzada, era necessária a construção de
pequenas unidades com apenas, no máximo, 4 leitos para lactentes, totalmente
isolados do resto da unidade pediátrica geral, incluindo neste local um expurgo
para confinar as fezes dos pacientes de tal forma a impedir a contaminação a
outros pacientes. Estas miniunidades funcionavam de forma independente, com
corpo de enfermagem especificamente treinado para preservar o isolamento do
material excretado e com os devidos cuidados de higiene na manipulação dos
pacientes. Uma vez construída a unidade de cuidados de tratamento de diarreia
eu a batizei com o nome do meu grande mestre Horácio Toccalino (Figuras 4-5-6-7).
Figura 4- Minha
foto na entrada da Unidade Metabólica de Tratamento de Diarreia “Dr. Horácio
Toccalino” em meados de 1992.
Figuras 5 &
6- Interior de uma das salas da Unidade Metabólica, aonde havia isolamento
entérico para evitar contaminação cruzada.
Figura 7- Minha
foto em frente ao que foi a Unidade Metabólica, feita em outubro de 2014,
durante minha visita à exposição “Made
by... Feito por Brasileiros”.
Na prática a
unidade metabólica mostrou-se plenamente satisfatória, pois, pudemos implantar
a cama metabólica (os residentes a apelidaram de cama diabólica devido ao
imenso trabalho que era demandado para fazer os controles das perdas e manter o
paciente adequadamente colocado na mesma por longos períodos) para mensurar com
precisão as perdas hídricas e eletrolíticas. Além disso, passamos a ter a
colaboração da Microbiologia comandada pelo Prof. Trabulsi, o que nos permitiu
estabelecer uma associação direta entre as perdas fluidas e o agente
enteropatogênico. Para que pudéssemos analisar os dados obtidos e deles obtermos
informações de valor científico elaboramos uma planilha de controle dos
pacientes com profundo grau de detalhamento das variáveis clínicas (Figuras
8-9-10-11).
Figura 8- Foto
das tradicionais reuniões com os residentes para discutir os casos dos pacientes
internados no pátio central do Serviço de Pediatria, no início da década de
1990. Estou sentado no banco de pedra ladeado à esquerda por Dr. Jairo Cesar
dos Reis e à minha direita Dr. Carlos Alberto Garcia Oliva.
Figura 9- Foto
do mesmo ângulo da anterior do pátio do Serviço de Pediatria esvaziado de
pessoas com uma instalação da exposição “Made
by... Feito por Brasileiros”.
Figura 10- Foto
de outro ângulo do pátio do Serviço de Pediatria esvaziado de pessoas com uma
instalação da exposição “Made by...
Feito por Brasileiros”.
Figura 11- Foto
das tradicionais reuniões com os residentes para discutir os casos dos
pacientes internados no pátio central do Serviço de Pediatria, obtida de outro
ângulo.