quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (43)

3- A consolidação da tradição em Pesquisa: Expandindo as fronteiras do “Tratado de Tordesilhas” da ciência (Parte 3)

3.1- A criação da Unidade Metabólica de estudos sobre Diarreia no Hospital Umberto Primo: desvendando as perdas hidroeletrolíticas fecais, as intolerâncias alimentares e adquirindo os devidos conhecimentos para solucionar os problemas com eficácia

Na década de 1980, diarreia aguda e persistente ainda se constituíam em seríssimos problemas de saúde pública no país, eram, sem dúvida alguma, uma das principais causas de morbidade e mortalidade em crianças menores de 5 anos de idade, acarretando a necessidade de internação por desidratação e agravo nutricional. A maioria dos leitos pediátricos dos hospitais públicos eram ocupados por pacientes portadores destas enfermidades. Em geral as internações se prolongavam em virtude das inúmeras intolerâncias alimentares decorrentes das ações fisiopatológicas dos agentes enteropatogênicos sobre a mucosa do intestino delgado provocando graves deficiências nas funções digestivo-absortivas dos lactentes de baixa idade. Estas disfunções geravam um ciclo vicioso, posto que além das perdas hidroeletrolíticas fecais por ação do agente enteropatogênico, as perdas nutricionais concomitantes provocavam agravo do estado nutricional, gerando uma situação caótica que se retroalimentava. Fazia-se de crucial importância conhecer com riqueza de detalhes quais eram estas perdas, isto é, poder identificar o que era consequência da ação do agente etiológico separadamente das perdas nutricionais decorrentes das intolerâncias alimentares. Este dilema vivia me atormentando o pensamento pois já havíamos adquirido os conhecimentos teóricos de ambas as situações, agente enteropatogênico-intolerância alimentar, porém não conseguíamos mensurar com exatidão as perdas fecais de água, eletrólitos e nutrientes dos nossos pacientes, as avaliações eram bastante subjetivas. Este desconhecimento dificultava sobremaneira a proposta de uma conduta terapêutica ótima, era necessário desvendar este mistério aparentemente insolúvel. 

Foi, então, nesta situação extremamente angustiante que surgiu um convite desafiador. Ele veio por parte do Prof. Dr. Domingos Palma, ex-residente de Pediatria do Hospital São Paulo (HSP), à época responsável pela direção do Serviço de Pediatria do Hospital Umberto Primo (HUP). O convite se referia para ser o Coordenador do Serviço de Pediatria do HUP com ênfase prioritária na minha especialidade. O HUP era uma instituição filantrópica de direito privado sem fins lucrativos, havia sido fundado em fins do século XIX, que funcionava como centro de referência terciário de pacientes portadores de patologias de alta complexidade (Figuras 1-2-3).

Figura 1- Vista aérea do complexo HUP na década de 1980. Ao fundo à esquerda a antena da TV Gazeta situada na Avenida Paulista 900.

Figura 2- Vista da entrada principal do HUP na década de 1980.

Figura 3- Vista da fachada da Maternidade Filomena Matarazzo em outubro de 2014.

Visitei o hospital para conhecer o serviço e verifiquei que lá abria-se uma enorme janela de oportunidades para desenvolver um trabalho de vulto, inclusive não somente voltado ao ensino e à assistência, mas também à pesquisa, pois diferentemente do HSP, onde os leitos pediátricos eram em número restrito, no HUP havia uma abundância de leitos, e, além disso, casos de diarreia aguda e persistente eram altamente prevalentes, e não havia nenhum especialista devidamente treinado para enfrentar tal demanda. Dr. Palma sabedor das dificuldades quanto à disponibilidade de leitos pediátricos para internar nossos pacientes no HSP, e, interessado em poder proporcionar atenção médica de cunho acadêmico procurou-me para oferecer a possibilidade de criarmos no HUP uma Unidade Metabólica de Cuidados em Diarreia.  Tratava-se de um convite irrecusável pois vinha exatamente de encontro aos meus anseios, e, portanto, foi imediatamente aceito. Tornava-se, agora, necessário discutir as bases de implantação deste novo Serviço, tanto do ponto de vista administrativo, assistencial, como também de ensino pois havia programa de residência médica em pleno funcionamento, e em breve futuro criar condições para realizar pesquisa de alto valor científico.

Desde o ponto de vista administrativo estava sendo criado um serviço afiliado ao Departamento de Pediatria da EPM, à semelhança do que se observa em outros países, em particular nos Estados Unidos, com excelentes resultados. O Conselho do Departamento de Pediatria, sob a presidência do Prof. Dr. Fernando Nóbrega, apoiou por unanimidade nossa proposta, e assim esta ligação tornou-se oficialmente estabelecida. Tratava-se de um projeto pioneiro e uma excelente oportunidade de ver estendida a influência e o prestígio científicos da EPM extramuros, obtendo-se dividendos recíprocos, ambas as instituições passariam a se beneficiar desta iniciativa, pois criavam-se oportunidades para que docentes, alunos e residentes de ambas as instituições viessem a usufruir de um profícuo intercambio.   
  
É verdade que muitos obstáculos teriam que ser vencidos até que conseguíssemos alcançar nosso objetivo final, a implantação de unidade de assistência médica de alto nível de qualidade, porque a infraestrutura não era totalmente adequada, os pacientes permaneciam em grandes enfermarias, o pessoal de saúde, de uma maneira geral, não tinha treinamento específico, a contaminação intra-hospitalar era alta, mas havia uma grande boa vontade em querer aprender para assistir da melhor forma possível e desejável nossos pacientes. Enfim, tudo consistia em um grandioso e estimulante desafio a ser enfrentado.

Uma vez iniciado nosso trabalho, nossa primeira missão foi convencer a direção do hospital a construir fisicamente a unidade metabólica. Ao invés de grandes enfermarias, para evitar a infecção cruzada, era necessária a construção de pequenas unidades com apenas, no máximo, 4 leitos para lactentes, totalmente isolados do resto da unidade pediátrica geral, incluindo neste local um expurgo para confinar as fezes dos pacientes de tal forma a impedir a contaminação a outros pacientes. Estas miniunidades funcionavam de forma independente, com corpo de enfermagem especificamente treinado para preservar o isolamento do material excretado e com os devidos cuidados de higiene na manipulação dos pacientes. Uma vez construída a unidade de cuidados de tratamento de diarreia eu a batizei com o nome do meu grande mestre Horácio Toccalino (Figuras 4-5-6-7).

Figura 4- Minha foto na entrada da Unidade Metabólica de Tratamento de Diarreia “Dr. Horácio Toccalino” em meados de 1992.


Figuras 5 & 6- Interior de uma das salas da Unidade Metabólica, aonde havia isolamento entérico para evitar contaminação cruzada.

Figura 7- Minha foto em frente ao que foi a Unidade Metabólica, feita em outubro de 2014, durante minha visita à exposição “Made by... Feito por Brasileiros”.


Na prática a unidade metabólica mostrou-se plenamente satisfatória, pois, pudemos implantar a cama metabólica (os residentes a apelidaram de cama diabólica devido ao imenso trabalho que era demandado para fazer os controles das perdas e manter o paciente adequadamente colocado na mesma por longos períodos) para mensurar com precisão as perdas hídricas e eletrolíticas. Além disso, passamos a ter a colaboração da Microbiologia comandada pelo Prof. Trabulsi, o que nos permitiu estabelecer uma associação direta entre as perdas fluidas e o agente enteropatogênico. Para que pudéssemos analisar os dados obtidos e deles obtermos informações de valor científico elaboramos uma planilha de controle dos pacientes com profundo grau de detalhamento das variáveis clínicas (Figuras 8-9-10-11).
Figura 8- Foto das tradicionais reuniões com os residentes para discutir os casos dos pacientes internados no pátio central do Serviço de Pediatria, no início da década de 1990. Estou sentado no banco de pedra ladeado à esquerda por Dr. Jairo Cesar dos Reis e à minha direita Dr. Carlos Alberto Garcia Oliva. 

Figura 9- Foto do mesmo ângulo da anterior do pátio do Serviço de Pediatria esvaziado de pessoas com uma instalação da exposição “Made by... Feito por Brasileiros”.

Figura 10- Foto de outro ângulo do pátio do Serviço de Pediatria esvaziado de pessoas com uma instalação da exposição “Made by... Feito por Brasileiros”.

Figura 11- Foto das tradicionais reuniões com os residentes para discutir os casos dos pacientes internados no pátio central do Serviço de Pediatria, obtida de outro ângulo.


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