terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (41)

A consolidação da tradição em Pesquisa: Expandindo as fronteiras do “Tratado de Tordesilhas” da ciência (parte 2)

1- A associação Clínica, Microbiologia e Biologia Celular:  uma feliz proposta de trabalho que resultou em vultosa produção do conhecimento de alta qualidade (continuação)

A aldeia da ilha do Cardoso, diferentemente da localização da maioria das outras aldeias dos índios Guaranis,  as quais se encontram no sopé da serra do Mar, encontra-se estrategicamente situada no interior da ilha, de difícil acesso e muito bem protegida de qualquer ameaça externa (Figuras 15-16-17-18-19-20-21-22-23).


Figura 15- Pegando a balsa para Cananéia a caminho da ilha do Cardoso.



Figura 16



Figura 17

Figura 18

Figura 19- Viajando de barco pelo canal de Cananéia até chegar à entrada da trilha para começar a caminhada em direção à aldeia Guarani no interior da ilha.

Figura 20- Vista parcial da aldeia e seus habitantes.

Figura 21- Profa. Isabel e eu processando as amostras de fezes coletadas para cultura.


Figura 22- Um momento de laser desfrutando as delícias de um banho de cachoeira no interior da ilha.


Figura 23- Face da ilha voltada para o mar aberto com uma praia extensa e paradisíaca.


Neste trabalho, em virtude das informações que havíamos obtido dos serviços da Fundação Nacional da Saúde, que diarreia era altamente prevalente entre as crianças destas aldeias, passamos a buscar, através da realização de cultura de fezes, cujas amostras de fezes eram por mim coletadas in loco e imediatamente semeadas em placas de Petri, o isolamento dos possíveis agentes enteropatogênicos conhecidos, em especial as cepas enteropatogênicas de Escherichia coli, bem com as cepas enterotoxigênicas termo lábil e termoestável, e as cepas Enterohemorrágicas O157:H7 (Figuras 24-25-26).

Figura 24

Figura 25

Figura 26- Profa. Isabel em seu trabalho de semeadura imediata, nas placas de Petri, das amostras de fezes por mim coletadas.

A jornada de visita às aldeias da etnia Guarani, que se estendeu por todo um semestre, foi um trabalho de campo extremamente proveitoso e de uma valia indescritível pelos inúmeros ensinamentos proporcionados, principalmente por permitir conhecer a triste realidade de uma parcela significativa da nossa população nativa, que foi empurrada para uma vida de desamparo e desesperança. Aprendi na prática que aquela sensação de bem-estar e alegria de vida, nitidamente emanada no ar pela população indígena habitante do Parque Indígena do Xingu, e que lá eu havia vivenciado durante tantos anos de trabalho era, infelizmente, uma completa exceção à regra geral experimentada pelas nossas populações nativas.


Finalmente, o reconhecimento internacional da nossa contribuição para os avanços científicos no campo da diarreia aguda e persistente veio com o convite para que eu escrevesse um artigo na revista Lancet, uma das mais conceituadas revistas médicas do mundo, cujo Fator de Impacto é 39, em um número especialmente editado em 2000, para divulgar as mais importantes conquistas médicas das últimas décadas. Abaixo encontram-se transcritos a capa do número da revista Lancet e o respectivo artigo, na sua íntegra.




terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (40)

A consolidação da tradição em Pesquisa: Expandindo as fronteiras do “Tratado de Tordesilhas” da ciência (parte 1)

1- A associação Clínica, Microbiologia e Biologia Celular:  uma feliz proposta de trabalho que resultou em vultosa produção do conhecimento de alta qualidade

Já no ano seguinte de haver retornar de Buenos Aires, aonde havia realizado minha especialização em 1973, estabeleci um estreito vínculo com a Disciplina de Microbiologia chefiada pelo Prof. Luiz Rachid Trabulsi. Prof. Trabulsi era um pesquisador de grande prestigio, internacionalmente reconhecido como uma das maiores autoridades mundiais no campo das enterobactérias, em especial no que dizia respeito às cepas enteropatogênicas de Escherichia coli. Este agente enteropatogênico conhecido sob a designação abreviada de EPEC era um dos mais importantes agentes causadores de diarreia aguda em lactentes provenientes de famílias de baixa renda, especialmente dentro do primeiro ano de vida, e também em unidades neonatais devido ao alto grau de contaminação cruzada transmitida pelas mãos dos profissionais de saúde, ao manusearem os recém-nascidos, decorrente da higienização inadequada. As cepas de EPEC eram altamente virulentas, causavam persistência da diarreia associada a intolerâncias alimentares e altas taxas de mortalidade. Este era o panorama mais frequentemente vivenciado em nossas enfermarias de Pediatria naqueles anos e representavam um enorme desafio a ser enfrentado para o manejo exitoso desses casos. Em virtude dos interesses comuns que ambas as áreas do conhecimento encerravam, da minha parte a atuação como clínico e a do Prof. Trabulsi, a Microbiologia, nos levaram à produção de um ciclo virtuoso. De fato, esta associação foi se tornando cada vez mais intensa e resultou na criação do “Clube da Flora”, em fevereiro de 1975. A finalidade primordial deste relacionamento foi a de estabelecer uma colaboração recíproca entre os docentes de ambas as Disciplinas, com o objetivo precípuo de discutir e aprofundar os conhecimentos sobre os agentes enteropatogênicos e suas repercussões fisiopatológicas sobre o hospedeiro. No período compreendido entre 1977 e 1994 foram publicados 17 trabalhos em revistas indexadas, fruto desta profícua associação. A materialização desta comunhão de esforços está definitivamente selada nos inúmeros trabalhos de investigação, publicados nos mais importantes periódicos de pesquisa nacionais e internacionais, tais como: Jornal de Pediatria, Revista Paulista de Pediatria, Revista Paulista de Medicina, Arquivos de Gastroenterologia, Brazilian Journal of Medicine and Biology Research, Revista do Instituo de Medicina Tropical de São Paulo, entre as nacionais; Malnutrition in Chronic Infantile Diarrhea, Bacterial Diarrheal Diseases, Revista Médica do Chile e Infection and Immunity, entre as internacionais. Além disso, há também que se considerar as várias teses de Mestrado e Doutorado resultantes este trabalho associativo, a saber: Tânia Viaro, Lenora Gandolfi Schimitz, Marly de Almeida Pedra, Aristides Schier Cruz, Arelis Lleras e Eriberto Fernandez Jaramillo, teses de Mestrado; Fernando Fernandes, Maria Ceci do Vale Martins e Lenora Gandolfi Schimitz, teses de Doutorado. Concomitantemente aos ganhos científicos oriundos destes novos conhecimentos adquiridos, pudemos acima de tudo, pois era essa a meta primordial, oferecer os melhores cuidados assistenciais aos nossos pacientes, que ficaram comprovados pela drástica diminuição das taxas de mortalidade e também pelo menor tempo de duração da enfermidade (Figura 1).


Figura 1- Da esquerda para a direita Eriberto Fernandez, Prof. Trabulsi e eu em Valdivia, Chile, em 1992, durante um Simpósio sobre Agentes Enteropatogênicos.

Infelizmente, em um dado momento ocorreu a aposentadoria do Prof. Trabulsi, e aí pareceria que a colaboração com a Disciplina de Microbiologia estaria sob o risco de findar. Entretanto, para minha alegria, não foi o que ocorreu, aliás, não somente não findou como inclusive se aprofundou, e, além disso, agregou-se mais uma colaboração de inestimável valor, pois envolveu também o setor da Microscopia Eletrônica. Foi a partir de 1994 que entraram nesta estória duas profissionais extremamente competentes e profundamente comprometidas com a produção do conhecimento. Tratam-se das Professoras Isabel Scaletsky e Edna Haapalainen, a primeira Microbiologista, discípula do Prof. Trabulsi, e a segunda expert em Biologia Celular. A partir desta nova composição eu pude voltar a exercer meus conhecimentos de biologia celular que estavam inativados desde que eu havia assumido a chefia do Serviço de Pediatria do Hospital Umberto Primo, por absoluta falta de tempo. Esta associação tornou-se ainda mais profícua que a anterior, posto que passamos a utilizar conjuntamente os recursos da investigação clínica, da microbiologia e da biologia celular. Passamos a trabalhar de forma integrada em busca de desvendar as interações dos agentes enteropatogênicos isolados dos nossos pacientes com diarreia aguda e persistente, especialmente as diferentes cepas enteropatogênicas de Escherichia coli com seus respectivos mecanismos fisiopatológicos de ação sobre o hospedeiro. Este empenho associativo gerou, no período compreendido entre 1995 e 2011, 35 trabalhos de alto valor de impacto, que resultou em publicações científicas nos mais prestigiosos periódicos da área, nacionais e internacionais, tais como: Revista da Associação Médica Brasileira, Arquivos de Gastroenterologia, Revista Paulista de Pediatria, Brazilian Journal of Medical and Biological Research, Brazilian Journal of Microbiology, entre as nacionais; Acta Paediatrica, Infection and Immunity, Journal of the American College of Nutrition, Journal of Clinical Microbiology, Lancet, Pediatrika,  Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition, Emerging Infectious Diseases, The Journal of Infectious Diseases, FEMS Microbiology Letters, entre as internacionais. Além disso, estas pesquisas também propiciaram a realização de teses de Mestrado e Doutorado de alunas de pós-graduação, sob minha orientação, a saber: Jacy Alves Braga, Jairo Cesar dos Reis, Cleide de Holanda Fernandes, Célia Regina Moreira, Sandra Martini Costa, Carlos Alberto Garcia Oliva, Jacira Omena Torres de Oliveira, teses de Mestrado; Cláudia Regina Nunes, Jairo Cesar dos Reis, Jacy Alves Braga, Célia Regina Moreira e Carlos Alberto Garcia Oliva, teses de Doutorado.

Ainda em colaboração com a Profa. Scaletsky, tivemos a oportunidade de desenvolver um extenso trabalho de campo para a pesquisa de agentes enteropatogênicos nas comunidades indígenas da etnia Guarani que habitam ao longo de todo nosso litoral de norte a sul, desde Angra dos Reis até a ilha do Cardoso, durante todo o ano 1996 (Figuras 2-3).


Figura 2- Profa. Isabel Scaletsky com o material de investigação no porta malas do meu carro, no início da nossa jornada no alto da serra de Angra dos Reis.


Figura 3- Vista do alto da serra do Mar na região de Angra dos Reis.

As aldeias dos Guaranis localizam-se em áreas de preservação ambiental, a maioria delas encontra-se no sopé da serra do Mar, aonde as reservas indígenas foram edificadas, totalmente cercadas pela imponência deste magnífico maciço da natureza, que proporciona um esplendoroso espetáculo representado pela exuberância da flora da Mata Atlântica, e com uma visão privilegiada da costa litorânea (Figuras 4-5-6-7-8-9).


Figura 4- Profa. Isabel ao adentrar a reserva indígena, área de preservação ambiental.


Figura 5- Vista desde a aldeia indígena de Angra dos Reis.


Figura 6- Um pouco da vegetação típica da Mata Atlântica.


Figura 7- Uma casa indígena e atrás a exuberância da Mata Atlântica.


Figura 8- Encontro com habitantes da aldeia de Angra dos Reis na sala de aula, aonde são ensinados português e guarani.

Vista das outras aldeias da etnia Guarani existentes ao longo do nosso litoral por nós visitadas, em Ubatuba, Mongaguá, Itanhaém e Peruíbe (Figuras 9-10-11-12-13-14).  

Figura 9

Figura 10


Figuras 11 (A e B)

Figura 12
 
Figura 13

Figura 14


quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (39)

Minha trajetória na carreira Acadêmica na Escola Paulista de Medicina (EPM) – Parte 5

A inédita experiência vivenciada no trabalho de campo na Favela Cidade Leonor (3)

Seguindo os preceitos tradicionais de atuação em uma determinada comunidade era necessário identificar a magnitude da vulnerabilidade nutricional das crianças da mesma, para que se pudesse a posteriori oferecer propostas adequadas para corrigir as possíveis distorções detectadas. Por esta razão, como medida inicial era imperioso sabermos qual o estado nutricional dessa nossa clientela, e para tal, foi realizada uma pesquisa da avaliação do estado nutricional das crianças menores de 5 anos. Esta pesquisa resultou na tese de Mestrado da Dra. Márcia Kallas, que sob minha orientação, revelou, para nossa preocupação, que mais de 50% das crianças desta comunidade eram desnutridas, com a agravante de que desnutrição crônica foi o padrão predominante.

A partir desta constatação urgia a necessidade de obtermos outras informações sobre o estado de saúde das crianças; passamos então a realizar exames parasitológicos de fezes, e verificamos que 100% das crianças apresentavam um ou mais parasitas. Como a taxa de diarreia era muito elevada realizamos um novo projeto que revelou que a presença de agentes bacterianos e virais enteropatogênicos nas fezes suplantavam 50% tanto nos casos como nos controles, o que denunciava o altíssimo grau de contaminação ambiental ao qual estas crianças estavam expostas. Esta pesquisa, sob minha orientação, resultou na tese de Mestrado da Dra. Arelis LLeras, médica venezuelana, que para obter as amostras de fezes fazia visitas domiciliares em busca de crianças com e sem diarreia. Dra. Tania Viaro, sob minha orientação, realizou um trabalho de pesquisa acompanhando lactentes desde o nascimento até o fim do primeiro ano de vida para avaliar os aspectos clínicos e nutricionais evolutivos das crianças e também comparar os benefícios do aleitamento natural exclusivo em relação ao aleitamento artificial; foi possível demonstrar nitidamente as enormes vantagens do primeiro sobre o segundo, o que resultou na sua tese de Mestrado. A partir desse momento passamos a ter instrumentos bastante seguros para propor uma intervenção de caráter nutricional e cultural na população desta comunidade. Como verificamos que no trabalho da Dra. Tânia Viaro a duração da prática do aleitamento natural exclusivo alcançava a taxa de apenas 21% ao cabo de 30 dias de vida do lactente, tornava-se premente a tentativa de mudar a realidade dietética das crianças desta comunidade; visto que o grau de contaminação ambiental era tão alarmante, fazia-se obrigatória uma intervenção para pelo menos minimizar esse efeito deletério do meio ambiente, já que a solução definitiva dessa condição indigna de vida, escapava da esfera médica, era sim um problema sanitário, que envolve a descontaminação do meio ambiente pela implantação do saneamento básico.  Como este tipo de ação fugia totalmente à nossa capacidade de resolução, pensamos em uma forma paliativa de intervenção que estaria ao alcance das nossas possibilidades de atuação. Para colocar em prática esta ideia, Dra. Fátima Lindoso, sob minha orientação, desenvolveu o projeto de implantação da promoção do aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado, e que resultou na sua tese de Doutorado. Em síntese, quando as gestantes matriculadas no serviço de orientação pré-natal atingiam o final do primeiro trimestre de gestação eram encaminhadas ao serviço de Gastroenterologia Pediátrica para serem submetidas a uma entrevista para serem incluídas no projeto, se assim o desejassem. O projeto de incentivo à prática do aleitamento natural constituiu-se basicamente de uma relação pessoal entre a gestante e Dra. Fátima, e constava de palestras periódicas, discussões em grupo, orientação individual, demonstração prática de aleitamento natural etc. Os temas abordados nesse período versavam sobre as modificações ocorridas no corpo da futura mãe em decorrência do avançar da gravidez, a função da glândula mamária, o aleitamento materno e sua importância para o binômio mãe-filho, mitos, tabus e desmame, causas e técnicas de amamentação. Ao término de cada palestra eram abertas discussões entre as gestantes com o intuito de promover a troca de experiências pessoais. Após o nascimento das crianças, durante o acompanhamento de puericultura os assuntos foram sendo ampliados, tais como, técnicas de amamentação e como evitar o desmame, adequação do leite materno às necessidades nutricionais do lactente, época do início da introdução dos alimentos do desmame e tipo de alimentos utilizados, programa de vacinação etc. O resultado desse projeto foi altamente satisfatório, pois a maioria das mães aderiu de forma integral ao aleitamento natural, vencendo os inúmeros mitos e tabus que estavam profundamente arraigados na cultura popular; os lactentes apresentaram uma evolução ao longo dos primeiros 6 meses de vida praticamente isenta de processos infecciosos respiratórios e/ou gastrointestinais, com crescimento pondero-estatural superponível ao percentil 50 do padrão internacional de referência para a curva de crescimento. Vale ressaltar, porém, que este tipo de comportamento de saúde apenas tem vigência enquanto o aleitamento materno perdura, posto que o leite humano não deixa memória imunológica duradoura, uma vez findo o aleitamento a criança passa a se tornar vulnerável aos efeitos deletérios do ambiente contaminado, mas pelo menos já em uma idade mais avançada e de menor risco de morbi-mortalidade (Figuras 18-19).



Figuras 18-19- Dra. Fátima Lindoso e o exitoso grupo de mães e lactentes de implantação do projeto de aleitamento natural na comunidade.

Outras pesquisas de importância crucial para a elucidação da história natural da Enteropatia Ambiental foram desenvolvidas pelas Dra. Maria Ceci do Vale Martins e Rosa Helena Porto Gusmão, ambas sob minha orientação. Ceci demonstrou a existência de sobrecrescimento bacteriano da flora colônica no intestino delgado em mais de 60% das crianças faveladas mesmo na ausência de manifestações diarreicas, o que demonstrou claramente a influência extremamente nefasta do meio contaminado sobre seus habitantes, enquanto que Rosa Helena descreveu as graves alterações morfológicas da mucosa jejunal à microscopia óptica comum e eletrônica nestes mesmos indivíduos.

A somatória destes estudos independentes permitiram descrever de forma absolutamente cristalina esta entidade que tanto infortúnio causa em uma parcela significativa das populações de crianças pertencentes à famílias que vivem em locais insalubres desprovidas de saneamento básico, em diversos locais do nosso planeta, por uma flagrante consequência do fracasso das políticas sociais e de saúde pública. A resultante de toda esta condição de vida totalmente indigna leva à formação de indivíduos que não são úteis a si próprios e nem tampouco à sociedade devido aos descasos dos governantes que tanto os vêm maltratando.