A inédita experiência vivenciada no trabalho de campo na Favela Cidade Leonor (3)
Seguindo os
preceitos tradicionais de atuação em uma determinada comunidade era necessário
identificar a magnitude da vulnerabilidade nutricional das crianças da mesma,
para que se pudesse a posteriori oferecer propostas adequadas para corrigir as
possíveis distorções detectadas. Por esta razão, como medida inicial era
imperioso sabermos qual o estado nutricional dessa nossa clientela, e para tal,
foi realizada uma pesquisa da avaliação do estado nutricional das crianças
menores de 5 anos. Esta pesquisa resultou na tese de Mestrado da Dra. Márcia
Kallas, que sob minha orientação, revelou, para nossa preocupação, que mais de
50% das crianças desta comunidade eram desnutridas, com a agravante de que
desnutrição crônica foi o padrão predominante.
A partir desta constatação urgia a necessidade de obtermos outras informações sobre o estado de saúde das crianças; passamos então a realizar exames parasitológicos de fezes, e verificamos que 100% das crianças apresentavam um ou mais parasitas. Como a taxa de diarreia era muito elevada realizamos um novo projeto que revelou que a presença de agentes bacterianos e virais enteropatogênicos nas fezes suplantavam 50% tanto nos casos como nos controles, o que denunciava o altíssimo grau de contaminação ambiental ao qual estas crianças estavam expostas. Esta pesquisa, sob minha orientação, resultou na tese de Mestrado da Dra. Arelis LLeras, médica venezuelana, que para obter as amostras de fezes fazia visitas domiciliares em busca de crianças com e sem diarreia. Dra. Tania Viaro, sob minha orientação, realizou um trabalho de pesquisa acompanhando lactentes desde o nascimento até o fim do primeiro ano de vida para avaliar os aspectos clínicos e nutricionais evolutivos das crianças e também comparar os benefícios do aleitamento natural exclusivo em relação ao aleitamento artificial; foi possível demonstrar nitidamente as enormes vantagens do primeiro sobre o segundo, o que resultou na sua tese de Mestrado. A partir desse momento passamos a ter instrumentos bastante seguros para propor uma intervenção de caráter nutricional e cultural na população desta comunidade. Como verificamos que no trabalho da Dra. Tânia Viaro a duração da prática do aleitamento natural exclusivo alcançava a taxa de apenas 21% ao cabo de 30 dias de vida do lactente, tornava-se premente a tentativa de mudar a realidade dietética das crianças desta comunidade; visto que o grau de contaminação ambiental era tão alarmante, fazia-se obrigatória uma intervenção para pelo menos minimizar esse efeito deletério do meio ambiente, já que a solução definitiva dessa condição indigna de vida, escapava da esfera médica, era sim um problema sanitário, que envolve a descontaminação do meio ambiente pela implantação do saneamento básico. Como este tipo de ação fugia totalmente à nossa capacidade de resolução, pensamos em uma forma paliativa de intervenção que estaria ao alcance das nossas possibilidades de atuação. Para colocar em prática esta ideia, Dra. Fátima Lindoso, sob minha orientação, desenvolveu o projeto de implantação da promoção do aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado, e que resultou na sua tese de Doutorado. Em síntese, quando as gestantes matriculadas no serviço de orientação pré-natal atingiam o final do primeiro trimestre de gestação eram encaminhadas ao serviço de Gastroenterologia Pediátrica para serem submetidas a uma entrevista para serem incluídas no projeto, se assim o desejassem. O projeto de incentivo à prática do aleitamento natural constituiu-se basicamente de uma relação pessoal entre a gestante e Dra. Fátima, e constava de palestras periódicas, discussões em grupo, orientação individual, demonstração prática de aleitamento natural etc. Os temas abordados nesse período versavam sobre as modificações ocorridas no corpo da futura mãe em decorrência do avançar da gravidez, a função da glândula mamária, o aleitamento materno e sua importância para o binômio mãe-filho, mitos, tabus e desmame, causas e técnicas de amamentação. Ao término de cada palestra eram abertas discussões entre as gestantes com o intuito de promover a troca de experiências pessoais. Após o nascimento das crianças, durante o acompanhamento de puericultura os assuntos foram sendo ampliados, tais como, técnicas de amamentação e como evitar o desmame, adequação do leite materno às necessidades nutricionais do lactente, época do início da introdução dos alimentos do desmame e tipo de alimentos utilizados, programa de vacinação etc. O resultado desse projeto foi altamente satisfatório, pois a maioria das mães aderiu de forma integral ao aleitamento natural, vencendo os inúmeros mitos e tabus que estavam profundamente arraigados na cultura popular; os lactentes apresentaram uma evolução ao longo dos primeiros 6 meses de vida praticamente isenta de processos infecciosos respiratórios e/ou gastrointestinais, com crescimento pondero-estatural superponível ao percentil 50 do padrão internacional de referência para a curva de crescimento. Vale ressaltar, porém, que este tipo de comportamento de saúde apenas tem vigência enquanto o aleitamento materno perdura, posto que o leite humano não deixa memória imunológica duradoura, uma vez findo o aleitamento a criança passa a se tornar vulnerável aos efeitos deletérios do ambiente contaminado, mas pelo menos já em uma idade mais avançada e de menor risco de morbi-mortalidade (Figuras 18-19).
Figuras 18-19-
Dra. Fátima Lindoso e o exitoso grupo de mães e lactentes de implantação do
projeto de aleitamento natural na comunidade.
Outras pesquisas
de importância crucial para a elucidação da história natural da Enteropatia
Ambiental foram desenvolvidas pelas Dra. Maria Ceci do Vale Martins e Rosa
Helena Porto Gusmão, ambas sob minha orientação. Ceci demonstrou a existência
de sobrecrescimento bacteriano da flora colônica no intestino delgado em mais
de 60% das crianças faveladas mesmo na ausência de manifestações diarreicas, o
que demonstrou claramente a influência extremamente nefasta do meio contaminado
sobre seus habitantes, enquanto que Rosa Helena descreveu as graves alterações
morfológicas da mucosa jejunal à microscopia óptica comum e eletrônica nestes
mesmos indivíduos.
A somatória destes estudos independentes permitiram descrever de forma absolutamente cristalina esta entidade que tanto infortúnio causa em uma parcela significativa das populações de crianças pertencentes à famílias que vivem em locais insalubres desprovidas de saneamento básico, em diversos locais do nosso planeta, por uma flagrante consequência do fracasso das políticas sociais e de saúde pública. A resultante de toda esta condição de vida totalmente indigna leva à formação de indivíduos que não são úteis a si próprios e nem tampouco à sociedade devido aos descasos dos governantes que tanto os vêm maltratando.
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