terça-feira, 19 de agosto de 2014

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (4)

4-         Estudante de Medicina na Escola Paulista de Medicina

4.1- Vida Acadêmica

Um muito breve resumo, a EPM foi fundada em 1933, tratava-se de uma Faculdade de Medicina privada, porém, sem fins lucrativos e que apresentava uma característica muito peculiar, praticamente inédita, pois os professores ao invés de receberem salário, pagavam para dar aulas, pois era preciso levar adiante este ideal, era um imenso e custoso desafio que se apresentava. A primeira sede da EPM foi uma pequena casa que se localizava no bairro da Vila Mariana, na esquina da rua Abílio Soares com a rua Coronel Oscar Porto (Figura 1), que já não existe mais.


Figura 1- Primeira sede da EPM, 1933.

 Em fins de 1930 a sede mudou-se para seu local definitivo na Vila Clementino, rua Botucatu 740 (Figuras 2 - 3 & 4). 


Figura 2- A sede definitiva da EPM, foto de 1936.




Figuras 3 e 4- Fotos atuais da sede da EPM.

Devido aos eternos problemas financeiros por que passava, a EPM foi federalizada em 1956, e posteriormente em 1994 foi transformada por lei federal na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Em 1940 foi construído o Hospital São Paulo que se constituiu no primeiro hospital de ensino do país e em 1957 foi instituído o programa da Residência Médica, também um dos pioneiros em nosso país (Figura 5).

Figura 5- Vista aérea do PS do HSP e do prédio do HSP à esquerda.

Terminada a euforia do ingresso na vida universitária passamos a conviver com a dura realidade do programa curricular do curso de Medicina. A ilusão de que já éramos quase médicos e que começaríamos a entrar em contato com pacientes rapidamente se dissipou, pois tivemos que passar a conviver com as Disciplinas chamadas da área básica, ou seja, Anatomia, Histologia, Bioestatística, Farmacologia, Biofísica, Bioquímica, Anatomia Patológica, Microbiologia, Imunologia, Parasitologia, etc. Em contrapartida tivemos a oportunidade de conviver com fantásticos professores, frequentar laboratórios de pesquisa da mais alta qualidade, ter à nossa inteira disposição a mais completa biblioteca da área da saúde da América Latina, a Bireme, financiada pela Organização Pan-Americana da Saúde, localizada dentro do campus em um edifício recém construído para tal escopo (Figura 6). 

Figura 6- Fachada lateral da BIREME.


O professor que se tornou nosso primeiro amigo foi o jovem professor José Carlos Prates (na década de 1970 tornou-se Diretor da EPM), da Anatomia, que era assistente do professor catedrático Renato Locchi, um austero senhor que havia sido discípulo de um famoso anatomista italiano que veio trabalhar na USP na década de 1940, Alfonso Bovero. Prates nos defendia dos tradicionais banhos de fim de tarde que os veteranos nos aplicavam. Eles ficavam esperando o fim da prática de Anatomia e nos encurralavam na saída do laboratório para jogar água nos calouros, era uma prática diária que ia até o mês de maio (libertação da escravatura). Muitas vezes para tentar nos proteger Prates saia na frente imaginando que seria respeitado pelos veteranos, porém, esta tática nem sempre dava certo e inúmeras vezes ele foi o primeiro a levar uns baldes de água na cabeça. Na Histologia sofríamos por ter que desenhar as estruturas dos tecidos do organismo humano vistas nos microscópios e sermos cobrados porque as reproduções desenhadas nem de longe refletiam o que as lâminas nos mostravam. O chefe da cadeira era o Prof. Nilceu Marques de Castro, havia se formado na primeira turma da EPM em 1933, tinha um orgulho enorme em ser um genuíno epemista, também era extremamente severo, ele costumava deixar praticamente metade da turma para segunda época (era a segunda chance algumas semanas após o exame final), eu não fui exceção. Prof. Nilceu tornou-se diretor da EPM na década de 1960, mas infelizmente não terminou seu mandato pois venho a falecer durante sua gestão de modo trágico. Ele gostava de pescaria em alto mar e numa destas pescarias o barco em que estava afundou e ele morreu afogado (Figura 7).


Figura 7- Prof. Nilceu Marques de Castro.


Atravessando a rua Pedro de Toledo no quarteirão em direção à rua Loefgren, situavam-se além da Bireme, outros laboratórios de pesquisa. Um deles era conhecido pela alcunha de Pampulha por que lá era a sede de duas Disciplinas, Bioquímica e Farmacologia, que eram lideradas por dois professores mineiros, Prof. Leal do Prado e Prof. Ribeiro do Vale. Eles eram prestigiosos cientistas com grande produção em pesquisa básica, reconhecidos internacionalmente. Foram eles, no início dos anos 1970, os responsáveis pela implantação dos cursos de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado, na nossa instituição. Em um outro edifício de 9 andares, recém construído, denominado Edifício das Ciências Biomédicas estavam abrigadas várias Disciplinas, tais como, Biofísica, chefiada pelo Prof. Paiva e juntamente com sua mulher Prof. Terezinha, Microbiologia, Prof. Otto Bier, Parasitologia, Prof. Dandretta e Bioestatística, Profs. Paiva e Neil.   
                     
A despeito dessa inicial frustração, é importante ressalvar que a mudança de vida e status foram enormes. Havia ainda poucas Faculdades de Medicina no país e por consequência poucos médicos. Apresentar-se como estudante de Medicina era por si só um belo cartão de visitas, abria inúmeras portas na nossa sociedade.

Durante os três primeiros anos nosso comportamento sociocultural se limitava aos arredores da rua Botucatu, lanchonetes, cafés (o Finesse era o principal ponto de encontro) e bilhar (nos intervalos das aulas íamos disputar partidas de sinuca no Constantino na rua Pedro de Toledo), do lado oposto ao Hospital São Paulo.

Esta longa e árdua rotina durou, em tempo integral (manhã e tarde), até o terceiro ano, quando somente a partir daí então começamos a travar contato com as Disciplinas chamadas profissionalizantes. Logo que entrei na EPM, tinha a ideia de fazer clínica geral, de não fazer cirurgia, nunca tive talento nem tampouco paciência para usar o bisturi, muito menos ficar dissecando. Para mim, era uma tortura ficar na Anatomia dissecando, queria ter relações com as pessoas, então tinha certeza que faria alguma atividade clínica.

A partir do quarto ano, vestindo jaleco branco e já com o estetoscópio pendurado ao pescoço (este era o símbolo inconfundível de que já estávamos examinando pacientes), tudo mudava, inclusive também mudava nosso rumo na hora do café no meio da manhã e no almoço, agora passava a ser em frente ao Hospital São Paulo, na rua Napoleão de Barros, o tradicionalíssimo Xaxim.  Nesta época fomos introduzidos ao mundo hospitalar, ambulatórios das mais diversas especialidades e às enfermarias dos pacientes internados. Nesta área profissionalizante também tivemos fantásticos professores, as célebres visitas aos leitos das diferentes clínicas eram extremamente ricas, as discussões de casos nos mostravam a eloquência e a experiência dos nossos mestres, enfim aprendia-se muito do ponto de vista médico, mas acima de tudo o raciocínio clínico e o caráter humanitário de como deviam ser tratados nossos pacientes. Dentre todos estes grandes professores havia um deles que sobressaia de forma nítida, e que se tornou nosso paraninfo, Prof. Domingos Delascio, da Obstetrícia (Figura 8). 

Figura 8- Festa da formatura em minha casa, Prof. Delascio, de terno preto ao centro.


Ele possuía o dom da docência de forma absolutamente nata, se entregava de corpo e alma aos seus discípulos, era incansável, oferecia até mesmo sua casa para que pudéssemos estudar com ele em sua vasta biblioteca pessoal. Era muito comum à noite um pequeno grupo de alunos seus irem à sua casa após o jantar para estudar algum tópico dos novos conhecimentos da área médica. Eu mesmo depois de formado, ainda na década de 1970-80, já como Pediatra, tive a honra de ser por ele escolhido para acompanhar os partos que ele fazia no Hospital Umberto I. Tratava-se de uma prática pioneira, a presença do Pediatra na sala de parto para atender o recém- nascido imediatamente após o parto. Esta prática havia sido introduzida na América Latina por um grupo uruguaio liderado pelo dr. Caldero-Barcia, que esteve entre nós dando um curso de atenção ao recém-nascido na sala de parto quando eu estava no quinto ano, e que foi adotada de imediato pelo Prof. Delascio, no Hospital São Paulo e em sua clínica privada.
 
Mas, retornando aos tempos de aluno, os anos foram se passando com enorme rapidez, no quinto ano iniciamos o internato que se estendeu por todo o sexto ano e, assim, praticamente sem que nos déssemos conta, estávamos chegando à formatura (Figuras 9 - 10 & 11). 






Figuras 9 - 10 e 11- Festa de formatura em minha casa com familiares e colegas de turma. Prof. Prates aparece no alto ao centro.

Agora mais um desafio se avizinhava, a escolha da área médica de atuação para prestar e ser aprovado no exame da Residência Médica. Como o número de vagas era limitado e menor do que o número de postulantes teríamos que ser submetidos a mais um vestibular, isto era inevitável. Como havia optado pela Pediatria a disputa era das mais acirradas, pois havia apenas 5 vagas e éramos 15 concorrentes. Prestei o exame que constava de uma prova teórica e outra prática, felizmente fui aprovado, desta forma começava uma nova etapa na minha vida pessoal e profissional, minha carreira como Médico cumpriria os 3 anos da Residência Médica.


A escolha pela Pediatria se deu porque a preocupação social sempre me afligiu, pois como joguei futebol nos mais variados e distantes lugares da periferia da cidade de São Paulo, pois era lá que se encontravam os campos de futebol da nossa várzea, passei por muitas favelas, me comovia ver as crianças abandonadas, a miséria, a desigualdade social sempre me incomodou tremendamente. Entendia que a melhor forma de ajudar na questão social era trabalhar com crianças e a minha tendência natural foi ir para a Pediatria. Mas queria trabalhar na Pediatria em algo que tivesse relevância social, por isso me aproximei da Medicina Preventiva, porém, infelizmente não encontrei lá, naquela ocasião, um estímulo que fosse suficientemente importante para trabalhar nesta área, então me voltei para a Pediatria. 

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (3)

3- O exame vestibular e o ingresso na Escola Paulista de Medicina

Quando da escolha de qual Faculdade de Medicina a ser cursada, a maioria dos vestibulandos, eu inclusive, na década de 1960, tinha como primeiro desejo ingressar na Pinheiros (assim era conhecida no meio estudantil a Faculdade de Medicina da USP) e logo a seguir vinha a Escola Paulista de Medicina (EPM), depois as demais que eram poucas, naquela época, no estado de São Paulo. Por esta razão o número de vagas era bastante exíguo e a disputa entre os vestibulandos era muito acirrada porque o número de concorrentes por vaga era extremamente alto. Este fato fazia com que o ingresso direto, ou seja, no primeiro vestibular aos recém saídos do curso científico, fosse considerada uma verdadeira proeza, na imensa maioria das vezes era necessário realizar pelo menos um ano de “Cursinho”.

Comigo não foi diferente, terminei o curso científico no Colégio Bandeirantes em 1963 (Figura 1 e 2) e este foi o ano do primeiro vestibular que prestei. 

Figura 1- Jantar de Formatura do Científico, estou no centro da foto.

Figura 2- Jantar de Formatura do Científico, da esquerda para a direita em segundo plano.

Naquele ano os exames eram totalmente independentes para cada faculdade, em algumas ocasiões inclusive as datas coincidiam, o que obrigava ao vestibulando eleger entre uma ou outra faculdade. Por esta razão vivia-se uma verdadeira maratona, prestei exames em Campinas, Sorocaba, Pinheiros, Santa Casa e Paulista, os quais começaram em Dezembro de 1963 e foram até Março de 1964. Como era recém saído do científico não consegui ser aprovado em nenhuma faculdade. Para não fugir à regra, em 1964 tive que fazer o “Cursinho”, no caso, entre os poucos existentes, foi o Nove de Julho, que se situava na Praça da Liberdade. Apesar de todas as turbulências políticas em que  o país se viu envolvido com o golpe militar, me mantive submerso no firme desejo de ser aprovado no vestibular; para obter o êxito pretendido me propus uma disciplina férrea de estudo, abandonei todas as minhas atividades sociais e esportivas, dediquei-me com total afinco às matérias que faziam parte dos exames durante todo o ano de forma diuturna.  

Vale dizer que o sacrifício a que me submeti foi plenamente recompensado, posto que, logo no primeiro exame em 1965, o da Santa Casa, que era isolado, fui aprovado em décimo–terceiro lugar. Em seguida viria pela primeira vez o exame do CECEM, que pela primeira vez foi unificado, e envolvia praticamente todas as faculdades públicas, estaduais e federal. Neste exame minha primeira opção foi a USP e a segunda foi a Paulista. Fiquei colocado entre 100 e 200, 112. Desta forma, fui aprovado na EPM. Foi até certo ponto frustrante não ter conseguido entrar na USP, pois ela era a referência no estado, e principalmente porque eu havia sido aprovado logo no primeiro vestibular, pois havia sido bem classificado no exame da Santa Casa. A expectativa era que conseguiria entrar na USP, porém, acho que acabei entrando na EPM porque mesmo sem referências especiais, as minhas relações com ela eram por coincidência do destino muito antigas, tinha que ser a EPM. Como morava em frente ao Instituto Biológico, desde pequeno assistia do terraço da minha casa o trote dos calouros da EPM que era feito na piscina de lá; sistematicamente no começo do ano, durante muitos anos seguidos, via chegando a pé um grupo de gente seminua com o corpo todo pintado, vinham felizes da vida, cantando, gargalhando acompanhados por um grupo menor de pessoas vestindo jaleco branco, que gritava palavras de ordem, eles eram os veteranos que no ano anterior haviam passado pelo mesmo batismo da iniciação, agora era a vez da desforra.  Eles conduziam os calouros como se fossem uma manada para dar um mergulho nas piscinas que ficam no jardim de frente do Instituto Biológico (Figura 3–4 e 5). 

Figura 3- Vista aérea da construção do Instituto Biológico em 1940. A casa dos meus pais, a partir da esquina da rua Morgado de mateus) é o terceiro telhado da direita para a esquerda e a dos meus avós a quarta.

Figura 4- Vista aérea do Instituto Biológico já completamente construido e ainda sem as grades externas de proteção. Notar as 2 piscinas aonde os calouros da EPM vinham nadar durante o trote. O telhado da casa dos meus pais é o terceiro da direita para a esquerda e o casa dos meus avós o quarto.

Figura 5- Vista do Instituto Biológico do plano da rua.

Depois do banho de piscina muitos calouros vinham se lavar em uma torneira que ficava no portão de entrada da minha casa; toda aquela algazarra me chamava a atenção, eu ia para o terraço sobre a garagem, que dava para a rua, e, de lá como espectador privilegiado, ficava observando aquela bagunça, porém sem entender bem que coisa mais estranha era aquela. Além disto, quando eu ainda estudava no Liceu Pasteur, no curso primário, tinha cinco, seis anos de idade, muitos calouros levados pelos veteranos, como se fossem cachorros (pois vinham amarrados com uma corda atada no pescoço), iam até lá dar uma volta pelas redondezas da rua Mairinque (o Liceu Pasteur se situa a algumas poucas quadras da EPM). Mais ainda, também havia tido uma relação com o Hospital São Paulo quando tinha uns dez anos de idade. Uma noite, brincando com minha irmã, em nossa casa, para ver quem conseguia quebrar o dedo do outro, na primeira tentativa quebrei o dedo dela. Fiquei com um tremendo sentimento de culpa, pois ela chorava inconsolavelmente, e, assim imediatamente saímos para o Hospital São Paulo, que se situava muito próximo da nossa casa; em lá chegando fomos atendidos pelo Dr. Waldemar Carvalho Pinto, docente de plantão, que era um jovem professor de Ortopedia. Essas são referências físicas muito marcantes por mim vivenciadas, porém há uma outra, esta de origem familiar, por mim herdada. Ela diz respeito aos meus antepassados, pois parte da área aonde está situada a EPM compreendia as terras da família, os Fagundes; reza a história que os Fagundes se estabeleceram nesta área há muito tempo. Por mera casualidade há alguns anos em visita ao museu Afro–Brasil pude comprovar que, no mapa da cidade de São Paulo, dos anos 1800, havia a chácara dos Fagundes, propriedade do meu tataravô João Fagundes, transmitida aos seus herdeiros Alfredo (meu bisavô), Arthur e Feliciano Fagundes, que se estendia desde a Liberdade até onde hoje é a região do Jabaquara (Figuras 6 e 7).


Figura 6- Mapa da cidade de São Paulo no século XVIII mostrando as terras dos Fagundes, abrangendo desde a Liberdade até o Jabaquara.

Figura 7- Mapa mais detalhado das terras dos Fagundes.

Quando entrei na Paulista, o trote foi suave porque sabiam que eu era esportista, era uma Escola pequena, só 600 alunos e nós disputávamos campeonatos importantes, tais como a Pauli–Poli, Pauli-Med, os campeonatos da FUPE, e mais posteriormente a Intermed (iniciou a ser disputada em 1967 e se tornou em pouco tempo na maior competição universitária da América Latina). Por esta razão, quando um esportista ingressava na EPM este fato era muito celebrado. No meu caso havia ainda um motivo a mais porque eu praticava três esportes (futebol, futebol de salão e voleibol), o que representava um valor agregado muito grande para as competições esportivas (Figuras 8 e 9). 

Figura 8- Foto da Intermed de Botucatú de 1969 vencida pela EPM. Nosso time de futebol foi vencedor, estou ladeado por 2 colegas de turma, à esquerda Sérgio Birigui e à direita Fernando Fernandes. 

Figura 9- Foto da decisão do voleibol da Intermed de 1970, em Santos, vencida pela EPM. Estou atacando contra o bloqueio da USP. 

Além disto na minha turma entraram vários esportistas, muito bons, inclusive um deles havia sido campeão mundial de basquete, Luis Cláudio Menon (Figura 10), enfim nossa turma passou a contribuir com excelentes esportistas para participar das futuras competições universitárias.

Figura 10- Foto do time de basquete durante a Intermed de 1970, vencida pela EPM. Menon é mais alto em pé.