Aspectos Genéticos da Deficiência e da Persistência de Lactase
(Parte 2)
Atualmente
sabe-se que os primeiros animais a serem domesticados foram os carneiros, e
este acontecimento data de 9.000 anos a.C. Entretanto, as primeiras claras
evidências aceitáveis da utilização do leite dos animais foram obtidas na
região do Saara e datam de 4.000
a 3.000 anos a.C., portanto, cerca de 5.000 anos depois
do início da domesticação dos animais (Figura 1).
Figura
1- Desenho em rocha na região do Saara (período medieval pecuário, 4.000 a 3.000 a.C.) (Cópia
de Simoons, Geographical Review vol.61, 1971, copyright da American Geographical
Society of New York).
A
distribuição geográfica dos indivíduos Lactase Persistente correlaciona-se
fortemente com a difusão da domesticação do gado. Aproximadamente entre 5.000 a
10.000 anos o haplotipos do gene da Lactase sofreram uma enorme pressão seletiva.
Esse período coincide com a disseminação da atividade pecuária, e como esta foi
originada na Europa, seus habitantes foram expostos a um aumento da oferta de
produtos lácteos contendo Lactose, o que resultou em uma seleção natural
positiva. A persistência da Lactase na vida adulta desenvolveu-se em duas áreas
geográficas distintas e de forma independente: a) A primeira delas no norte da
Europa na região do Mar do Norte (Escandinávia, Alemanha e Grã-Bretanha)
(Figura 2).
Nesta
região, em virtude das suas características peculiares foram criadas inúmeras
razões para justificar a utilização do leite na vida adulta, a saber (Figuras 3
e 4):
1- Clima
extremamente inóspito, com frio excessivo e baixa exposição a luz solar, o que
reduz a produção de vitamina D pelo corpo;
2- Disponibilidade
baixa de vitamina D e absorção de cálcio diminuída;
3- Alta
prevalência de raquitismo e osteomalacia como exemplo foi a descoberta das
deformidades pélvicas na colônia Viking da Islândia o que acarretava
deformidades pélvicas com consequentes dificuldades nos partos. Isto levou a
extinção gradual desta comunidade;
4- A
mutação LAC*P permitiu que os adultos usassem uma fonte excelente de cálcio e
vitamina D;
5- O
leite por ser uma substância líquida de fácil transporte proporcionou a
possibilidade de que os adultos viessem a consumi-lo em grandes quantidades, o
que resultou em uma forte vantagem seletiva.
b)
A outra região geográfica de persistência da Lactase está representada pelas
áridas terras da Arábia, Saara e Sudão (Figura 5).
Nesta região a persistência da Lactase
está caracterizada somente nas populações nômades altamente dependentes de
camelos e gados, tais como, os Beduínos, os Tuareg do Saara, os Fulanis da
África oriental, os Bejas e Kabbabish do Sudão.
Por outro lado, as populações agrícolas do entorno quer sejam árabes,
turcos, iranianos ou africanos, apresentam taxas muito baixas da persistência
da Lactase.
Logo
após o início do hábito do uso dos produtos lácteos ter se desenvolvido, este
rapidamente se espalhou por todo o universo. Entretanto, o uso do leite e dos
laticínios não havia sido adotado por todos os povos do Velho Mundo (Europa,
Ásia e África) quando da época dos grandes descobrimentos no século XVI (1500).
A região ocidental da África, como por exemplo, aquela habitada pelos povos que
viriam a ser trazidos para o Novo Mundo, os Ibo, Yoruba e Hausa, não possuíam
hábitos pecuários e apresentavam altas taxas de mal absorvedores à Lactose.
Vale a pena enfatizar que os povos nativos habitantes das Américas não eram
consumidores do leite e seus derivados na vida adulta. De fato, estudos
realizados principalmente nas décadas de 1960 e 1970, envolvendo as mais
variadas etnias das populações nativas das Américas, do Norte, Central e do
Sul, e seus descendentes demonstraram taxas de aproximadamente 100% de mal
absorvedores à Lactose em indivíduos adultos.
Em
contra partida, povos do norte da Europa, tais como os escandinavos,
britânicos, irlandeses, alemães, holandeses, suíços, polacos, franceses,
italianos do norte, e a população branca dos Estados Unidos e Canadá apresentam
taxas muito baixas (30% ou menos) de mal absorvedores à Lactose. Essa
capacidade de digerir a Lactose na vida adulta adquirida por esses indivíduos deve-se
a uma mutação genética explicada pela “Hipótese Histórico-Cultural”. Esta hipótese
parte da premissa de que durante os estágios precoces da evolução, os seres
humanos muito provavelmente apresentavam o mesmo padrão de desenvolvimento da
atividade da Lactase que os demais mamíferos. Admite-se que os lactentes
humanos teriam níveis elevados de Lactase no intestino antes do desmame e que a
partir deste momento haveria uma queda abrupta desta atividade enzimática a
qual persistiria durante toda a vida adulta. Conforme anteriormente mencionado,
supõe-se que por necessidade de sobrevivência, em especial no norte da Europa,
em virtude da dificuldade de obtenção de alimentos devido aos rigores do clima,
os habitantes dessa região passaram a utilizar o leite do gado estabulado,
inicialmente em pequenas quantidades, posto que houvesse pouca disponibilidade
do mesmo. Quando o leite tornou-se disponível em abundância, seu consumo passou
a ser generalizado e os sintomas de má absorção à Lactose passaram a ocorrer
com freqüência; então, várias possibilidades vieram a ocorrer. Em primeiro
lugar, foi limitar o seu consumo a níveis toleráveis de absorção. Em segundo lugar,
modificar a composição do leite, processando-o de tal forma a diminuir a
concentração da Lactose por meio da fermentação, gerando subprodutos tais como
iogurte e queijos. Nenhum desses procedimentos teria sido capaz de impedir o
declínio da atividade da Lactase após o desmame, e, assim, o consumo de
laticínios per se não deve ter levado à elevação da atividade da Lactase ao
longo da vida adulta. Acredita-se, na verdade, que este fenômeno, somente pode
ter ocorrido devido a uma seleção genética, de tal forma que surgiram
indivíduos de comportamento “aberrante” com altos níveis de atividade da Lactase
ao longo da vida, os quais se tornaram favorecidos na luta pela sobrevivência.
Estes indivíduos de comportamento “aberrante” puderam tolerar o leite em
grandes quantidades, e, com isso, também conseguiram desfrutar melhor saúde,
adquiriram maior vigor físico, maior capacidade de multiplicação e maior
disposição para defender suas famílias contra outros agressores. Finalmente,
estas populações do norte da Europa invadiram outros povoados da região,
conquistando-os e, assim, disseminaram o gene da capacidade de digerir a Lactose,
visto que como sabemos esta propriedade é controlada por um gene autossômico
dominante. É por esta razão que inúmeros povos descendentes de etnias do norte
da Europa, e que se encontram espalhados por todo o globo terrestre, em
especial nas Américas e Austrália, apresentam altas taxas de tolerância à Lactose,
e, consequentemente, conseguem consumir o leite ao longo de toda a vida (Figura
6).
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