terça-feira, 18 de março de 2014

Intolerância à Lactose: História, Genética, Ciência e Prática Clínica (3)

Aspectos Genéticos da Deficiência e da Persistência  de Lactase
(Parte 2)

Atualmente sabe-se que os primeiros animais a serem domesticados foram os carneiros, e este acontecimento data de 9.000 anos a.C. Entretanto, as primeiras claras evidências aceitáveis da utilização do leite dos animais foram obtidas na região do Saara e datam de 4.000 a 3.000 anos a.C., portanto, cerca de 5.000 anos depois do início da domesticação dos animais (Figura 1).







Figura 1- Desenho em rocha na região do Saara (período medieval pecuário, 4.000 a 3.000 a.C.) (Cópia de Simoons, Geographical Review vol.61, 1971, copyright da American Geographical Society of New York).


A distribuição geográfica dos indivíduos Lactase Persistente correlaciona-se fortemente com a difusão da domesticação do gado. Aproximadamente entre 5.000 a 10.000 anos o haplotipos do gene da Lactase sofreram uma enorme pressão seletiva. Esse período coincide com a disseminação da atividade pecuária, e como esta foi originada na Europa, seus habitantes foram expostos a um aumento da oferta de produtos lácteos contendo Lactose, o que resultou em uma seleção natural positiva. A persistência da Lactase na vida adulta desenvolveu-se em duas áreas geográficas distintas e de forma independente: a) A primeira delas no norte da Europa na região do Mar do Norte (Escandinávia, Alemanha e Grã-Bretanha) (Figura 2).
  

 

Nesta região, em virtude das suas características peculiares foram criadas inúmeras razões para justificar a utilização do leite na vida adulta, a saber (Figuras 3 e 4):
 


1- Clima extremamente inóspito, com frio excessivo e baixa exposição a luz solar, o que reduz a produção de vitamina D pelo corpo;

2- Disponibilidade baixa de vitamina D e absorção de cálcio diminuída;

3- Alta prevalência de raquitismo e osteomalacia como exemplo foi a descoberta das deformidades pélvicas na colônia Viking da Islândia o que acarretava deformidades pélvicas com consequentes dificuldades nos partos. Isto levou a extinção gradual desta comunidade;

4- A mutação LAC*P permitiu que os adultos usassem uma fonte excelente de cálcio e vitamina D;

5- O leite por ser uma substância líquida de fácil transporte proporcionou a possibilidade de que os adultos viessem a consumi-lo em grandes quantidades, o que resultou em uma forte vantagem seletiva. 



b) A outra região geográfica de persistência da Lactase está representada pelas áridas terras da Arábia, Saara e Sudão (Figura 5). 
 



Nesta região a persistência da Lactase está caracterizada somente nas populações nômades altamente dependentes de camelos e gados, tais como, os Beduínos, os Tuareg do Saara, os Fulanis da África oriental, os Bejas e Kabbabish do Sudão.  Por outro lado, as populações agrícolas do entorno quer sejam árabes, turcos, iranianos ou africanos, apresentam taxas muito baixas da persistência da Lactase.

Logo após o início do hábito do uso dos produtos lácteos ter se desenvolvido, este rapidamente se espalhou por todo o universo. Entretanto, o uso do leite e dos laticínios não havia sido adotado por todos os povos do Velho Mundo (Europa, Ásia e África) quando da época dos grandes descobrimentos no século XVI (1500). A região ocidental da África, como por exemplo, aquela habitada pelos povos que viriam a ser trazidos para o Novo Mundo, os Ibo, Yoruba e Hausa, não possuíam hábitos pecuários e apresentavam altas taxas de mal absorvedores à Lactose. Vale a pena enfatizar que os povos nativos habitantes das Américas não eram consumidores do leite e seus derivados na vida adulta. De fato, estudos realizados principalmente nas décadas de 1960 e 1970, envolvendo as mais variadas etnias das populações nativas das Américas, do Norte, Central e do Sul, e seus descendentes demonstraram taxas de aproximadamente 100% de mal absorvedores à Lactose em indivíduos adultos.

Em contra partida, povos do norte da Europa, tais como os escandinavos, britânicos, irlandeses, alemães, holandeses, suíços, polacos, franceses, italianos do norte, e a população branca dos Estados Unidos e Canadá apresentam taxas muito baixas (30% ou menos) de mal absorvedores à Lactose. Essa capacidade de digerir a Lactose na vida adulta adquirida por esses indivíduos deve-se a uma mutação genética explicada pela “Hipótese Histórico-Cultural”. Esta hipótese parte da premissa de que durante os estágios precoces da evolução, os seres humanos muito provavelmente apresentavam o mesmo padrão de desenvolvimento da atividade da Lactase que os demais mamíferos. Admite-se que os lactentes humanos teriam níveis elevados de Lactase no intestino antes do desmame e que a partir deste momento haveria uma queda abrupta desta atividade enzimática a qual persistiria durante toda a vida adulta. Conforme anteriormente mencionado, supõe-se que por necessidade de sobrevivência, em especial no norte da Europa, em virtude da dificuldade de obtenção de alimentos devido aos rigores do clima, os habitantes dessa região passaram a utilizar o leite do gado estabulado, inicialmente em pequenas quantidades, posto que houvesse pouca disponibilidade do mesmo. Quando o leite tornou-se disponível em abundância, seu consumo passou a ser generalizado e os sintomas de má absorção à Lactose passaram a ocorrer com freqüência; então, várias possibilidades vieram a ocorrer. Em primeiro lugar, foi limitar o seu consumo a níveis toleráveis de absorção. Em segundo lugar, modificar a composição do leite, processando-o de tal forma a diminuir a concentração da Lactose por meio da fermentação, gerando subprodutos tais como iogurte e queijos. Nenhum desses procedimentos teria sido capaz de impedir o declínio da atividade da Lactase após o desmame, e, assim, o consumo de laticínios per se não deve ter levado à elevação da atividade da Lactase ao longo da vida adulta. Acredita-se, na verdade, que este fenômeno, somente pode ter ocorrido devido a uma seleção genética, de tal forma que surgiram indivíduos de comportamento “aberrante” com altos níveis de atividade da Lactase ao longo da vida, os quais se tornaram favorecidos na luta pela sobrevivência. Estes indivíduos de comportamento “aberrante” puderam tolerar o leite em grandes quantidades, e, com isso, também conseguiram desfrutar melhor saúde, adquiriram maior vigor físico, maior capacidade de multiplicação e maior disposição para defender suas famílias contra outros agressores. Finalmente, estas populações do norte da Europa invadiram outros povoados da região, conquistando-os e, assim, disseminaram o gene da capacidade de digerir a Lactose, visto que como sabemos esta propriedade é controlada por um gene autossômico dominante. É por esta razão que inúmeros povos descendentes de etnias do norte da Europa, e que se encontram espalhados por todo o globo terrestre, em especial nas Américas e Austrália, apresentam altas taxas de tolerância à Lactose, e, consequentemente, conseguem consumir o leite ao longo de toda a vida (Figura 6). 
 

terça-feira, 11 de março de 2014

Intolerância à Lactose: História, Genética, Ciência e Prática Clínica (2)



Aspectos Genéticos da Deficiência e da Persistência  de Lactase

Mendel, em 1909, demonstrou nitidamente que a Lactase encontra-se presente, e em grande quantidade, no intestino dos mamíferos (exceção feita à foca) durante o período de amamentação e está ausente ou em menor concentração nos adultos. Somente após 60 anos comprovou-se, por meio da determinação bioquímica, a elevada atividade da Lactase no recém-nascido humano; tal enzima atinge atividade máxima durante o período perinatal e é seguida por uma notável depressão progressiva ou mesmo desaparecimento na vida adulta (Figura 1). 

Na verdade, após o desmame, cerca de 75% (5,25 bilhões) da população mundial sofre um declínio da atividade da Lactase, que é geneticamente determinado, sendo denominado hipolactasia do tipo adulto ou deficiência de Lactase, o qual pode acarretar má digestão e consequentemente má absorção e/ou intolerância à Lactose (Figura 2).

Desconfortos gastrointestinais em adultos após o consumo do leite e derivados foram descritos em antigos textos gregos e romanos, porém, até meados do século XX não eram conhecidos relatos clínicos da deficiência de Lactase; portanto, o problema não tinha sido estudado até o desenvolvimento das novas técnicas para se determinar laboratorialmente a ação enzimática da Lactase no intestino. Consequentemente a alta prevalência da diminuição da atividade da Lactase em adultos saudáveis foi descrita somente na década de 1960 por A. Dahlqvist e cols. A partir das décadas de 1960-70 inúmeras pesquisas em diferentes centros do globo terrestre passaram a demonstrar que o desaparecimento da atividade da Lactase, na vida adulta, é uma condição comum nos seres humanos e nos demais mamíferos. Por outro lado, aqueles adultos que conservam a capacidade de digerir a Lactose representam uma inovação evolutiva “anormal”. Por esta razão, embora o leite continue a ser utilizado em larga escala no mundo ocidental, na vida adulta, na maior parte do globo terrestre, o leite nunca mais é servido como alimento depois do período da amamentação. Esta habilidade que alguns grupos étnicos adquiriram para digerir a Lactose após o período da amamentação e que se prolonga por toda a vida é explicada por uma mutação genética baseada na “Hipótese Histórico-Cultural”.

  Os mecanismos do controle da produção da Lactase têm sido profundamente debatidos ao longo dos anos por antropólogos, cientistas sociais, historiadores, cientistas e médicos. Alguns pesquisadores, baseados em estudos de regulação genética nas bactérias, argumentavam nos anos 1960 que a Lactase era uma enzima induzível pela presença do substrato, ou seja, que a produção da Lactase acreditava-se ser estimulada pela presença da Lactose. Baseando-se nesta visão, as populações que não utilizavam o leite na vida adulta perdiam a capacidade de produzir a Lactase, enquanto que aqueles grupos que consumiam o leite e seus subprodutos conservavam a capacidade de produzir a Lactase.



Entretanto, estudos bioquímicos colocaram em dúvida esta hipótese, e investigações realizadas com grupos de famílias demonstraram que a persistência da produção da Lactase é controlada por um gene autossômico dominante localizado no cromossoma 2. Os dois alelos para a persistência da produção da Lactase passaram a ser denominados de LAC*P (Figura 3).


 





Por outro lado, os alelos responsáveis pela restrição da produção da Lactase na vida adulta são denominados LAC*R. O lócus LAC é um gene regulador que reduz a síntese da Lactase pela redução da transcrição do RNA mensageiro. Indivíduos que herdam os alelos LAC*P dos seus pais mantém a produção da Lactase na vida adulta, enquanto que aqueles indivíduos que herdam os alelos LAC*R deixam de produzir a Lactase na vida adulta. Os heterozigotos receberão diferentes alelos, LAC*P/LAC*R, mas como LAC*P é um traço dominante, a atividade da Lactase mantém-se ao longo da vida adulta e consequentemente também sua habilidade para digerir a Lactose. Vale ressaltar que o genótipo LAC*P não está necessariamente condicionado ao consumo de produtos lácteos após o desmame. 



Uma nítida demonstração da hipótese genética de que a persistência da produção da Lactase é um traço dominante foi obtida a partir de um estudo realizado na África envolvendo duas populações distintas quanto à capacidade de digerir a Lactose na vida adulta. Foram incluídos no estudo um grupo da etnia Yoruba, reconhecidamente não absorvedores de Lactose, um grupo misto Yoruba-Europeus dos quais 44% eram não absorvedores de Lactose, e um grupo de Europeus com apenas 22% de não absorvedores. Quando ambos os pais eram não absorvedores toda a progênie resultou não absorvedora; entretanto, quando se deu o cruzamento entre um dos pais, absorvedor de Lactose, com um não absorvedor de Lactose, ou quando ambos os pais eram absorvedores de Lactose, obteve-se como resultado final uma progênie mista (Figura 4).

 Na era Paleolítica (superior a 10.000 anos a.C), antes da fase da domesticação dos animais, os lactentes humanos consumiam o leite das suas mães somente durante o período que abrangia desde o nascimento até o desmame. Após o desmame o leite deixava de ser um nutriente da dieta do indivíduo. Os seres humanos somente tiveram a oportunidade de obter regularmente leite quando os animais selvagens foram domesticados. As populações coletoras-caçadoras anteriores à Era Neolítica (Período da Pedra Polida, 10.000 anos a.C, sedentarização e surgimento da agricultura, até 3.000 anos a.C – Período dos Metais), eram intolerantes à Lactose. Estudos genéticos sugerem que as mutações mais antigas associadas com a persistência da Lactase, somente alcançaram níveis apreciáveis nos seres humanos nos últimos 6.000 anos. Vale enfatizar que a persistência da Lactase é um exemplo recente de duas evoluções: a) traço genético e b) domesticação e acasalamento dos animais, traço cultural (Figura 5).