Meu querido mestre e
amigo Horácio Toccalino: um exemplo de determinação e perseverança na vida
pessoal e profissional
Assim que cheguei ao Posadas para
trabalhar já no primeiro contato com Dr. Toccalino (Figuras 1-2) tive uma
nítida sensação de que seria recebido com especial atenção, o que eu poderia
traduzir com a expressão “empatia recíproca à primeira vista".
Figura 1-
Toccalino (o terceiro da esquerda para a direita) participando da reunião da
Sociedade Latino Americana de Investigação Pediátrica, em Viña del Mar, Chile,
em 1968.
Figura 2-
Toccalino juntamente com Licastro e Ortiz participando da reunião da Sociedade
Latino Americana de Investigação Pediátrica, em 1975, dias antes da fundação da
nossa Sociedade.
De fato, o tempo somente fez
confirmar esta primeira impressão. Ao longo de todo o ano, tanto no campo profissional
como no pessoal, sempre mantivemos um relacionamento extremamente amistoso,
dava até a percepção de que já nos conhecíamos de longa data, eu me sentia
muito à vontade em sua companhia, principalmente quando juntos atendíamos os
pacientes no ambulatório de gastroenterologia. No intervalo entre as consultas
sempre arranjávamos alguns minutos para conversar sobre assuntos de trabalho,
de planos futuros ou mesmo de temas absolutamente informais, até de problemas
pessoais e familiares. Enfim, sinto que ele me adotou e que eu me apropriei
desta adoção com muita satisfação, mesmo porque este relacionamento tão afetivo
perdurou nos anos que se seguiram até sua morte prematura em dezembro de 1977.
Sim, Dr. Toccalino faleceu muito jovem, aos 48 anos, com muitos projetos
pessoais e profissionais para serem desenvolvidos, o mais caro, no entanto, era
a fundação da Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica e
Nutrição, a qual se logrou concretizar em outubro de 1975, em São Paulo,
durante o transcurso do Congresso Pan-Americano de Pediatria. Anteriormente,
porém, em 1974, durante a realização do Congresso Mundial de Pediatria, em
Buenos Aires, em um determinado dia, nos reunimos para almoçar em uma
churrascaria denominada El Gaucho Imortal, Toccalino, Licastro, Martins Campos
(José Vicente Martins Campos, gastroenterologista brasileiro, embora sendo
especialista de adultos, tinha grandes interesses em investigação na área da
gastroenterologia pediátrica, de quem me tornei amigo e admirador, participava
ativamente dos eventos pediátricos e era um grande amigo de Toccalino desde
longa data. Vale lembrar que Dr Martins Campos tornou-se posteriormente meu
orientador no curso de Mestrado no IBEPEGE) e eu. Vínhamos de um encontro da
Sociedade Latino Americana de Investigação Pediátrica, em Escobar, cidade localizada
nas vizinhanças de Buenos Aires. Durante o almoço Toccalino manifestou seu
descontentamento com os rumos daquela Sociedade, porque entendia que a
gastroenterologia estava sendo cada vez mais marginalizada em detrimento de
outras especialidades pediátricas, em especial a endocrinologia e a nefrologia.
Toccalino sentia que havia chegado o momento de se fundar uma Sociedade
especificamente voltada à gastroenterologia, já haveria uma massa crítica
suficiente para tal empreendimento. Ele conhecia alguns colegas no Uruguai que
certamente adeririam à idéia, e também mesmo no Brasil já havia alguns embriões
da especialidade sendo gestados (Figura 3).
Figura 3-
Simpósio em Belo Horizonte, no início de 1975, como parte da divulgação da
criação da nossa Sociedade. Da direita para a esquerda Toccalino, Martins
Campos, Francisco Penna, eu e um colega nefrologista José Silvério.
Criaríamos uma Sociedade tendo
como pilares de sustentação o eixo Argentina, Uruguai e Brasil, e pouco a pouco
colegas de outros países seguramente viriam também a se incorporar nessa nova
proposta. Martins Campos prontamente concordou com a idéia, o mesmo ocorrendo
com Licastro. Eu também concordei de imediato, porque afinal das contas quem
era eu para emitir qualquer opinião a respeito de um assunto sobre o qual não
tinha a menor experiência, fiz o que meu mestre mandou. Ato seguinte, Martins
Campos lançou mão de um guardanapo de papel do restaurante e elaborou a
primeira ata de fundação desta nova Sociedade com a subscrição dos quatro
presentes. Ficou então combinado que no ano seguinte durante o transcorrer do
Congresso Pan-Americano, em São Paulo, nós criaríamos oficialmente a Sociedade
Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica. Toccalino e Martins Campos se
ocuparam de contatar os potenciais membros da futura Sociedade, convidando-os
para a reunião oficial da sua fundação. Tínhamos praticamente um ano inteiro
para desenvolver essa empreitada com êxito, era tempo suficiente. Eu fiquei encarregado
de organizar a reunião, a qual se realizou na Escola Paulista de Medicina, no
anfiteatro de Pediatria do Hospital São Paulo, em outubro de 1975 (Figura 4).
Figura 4- Reunião da fundação oficial da Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição realizada em São Paulo, na Escola Paulista de Medicina, em outubro de 1975. Da esquerda para a direita Elza Guatavino (1º Secretária), Horácio Toccalino (Presidente eleito) e José Vicente Martins Campos (Secretário Geral eleito) constituindo a primeira diretoria da Sociedade.
Vinte e cinco colegas latino americanos firmaram a constituição desta nova Sociedade; estava enfim, naquele dia, tornando-se realidade o tão almejado sonho de Toccalino (Vide cópia da ata abaixo).
Infelizmente, porém, naquela
mesma ocasião ele tinha acabado de receber a notícia de que estava enfermo e o
diagnóstico era de uma doença extremamente grave, ele sofria de um tipo muito
raro de câncer, extremamente agressivo, incurável para os conhecimentos
científicos daquela época e que teria uma evolução bastante rápida (Figura 5).
Figura 5-
Festa de abertura do Congresso Pan-Americano de Pediatria realizado em São
paulo, em outubro de 1975. Horácio Toccalino já enfermo viajaria dias depois
para os EUA para tentar tratamento para sua enfermidade.
Entretanto, em um ato de enorme bravura e autocontrole, para não prejudicar os andamentos da fundação da Sociedade, o que era para ele uma questão primordial, decidiu não contar a ninguém o seu padecimento e assim que terminou o Congresso, de São Paulo mesmo viajou diretamente para Nova Iorque, na tentativa desesperadora de encontrar alguma solução, ainda que paliativa fosse, para sua doença (Vide trecho da carta por ele escrita e a mim dirigida abaixo).
Desafortunadamente, porém, apesar
do tratamento quimioterápico proposto e realizado, a cura era inviável, e o
prognóstico emitido foi que inexoravelmente o câncer progrediria e ele não
teria muito mais tempo de vida, provavelmente não mais que seis meses (na
realidade ainda viveu três anos mais após o diagnóstico). Mas, apesar de todo
este sofrimento e frustração quanto ao futuro próximo, ele não deixou se abater
animicamente, ao contrário, o florescimento da nova Sociedade passou a ser o
grande estímulo da sua existência daí em diante. Durante sua estada em Nova
Iorque me escrevia cartas, nas quais vislumbrava o sucesso futuro da nossa
Sociedade, mas para que tal êxito fosse alcançado deveríamos seguir
rigorosamente determinados postulados e a mim ele atribuía a responsabilidade
de assim fazê-los cumprir.
Toccalino retornou dos Estados
Unidos, recobrou suas forças, e continuou sua missão de fortalecer nossa
Sociedade de forma obstinada, viajando freqüentemente enquanto sua saúde assim
o permitiu, para consolidar a recém nascida Sociedade Latino Americana de
Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição. Eu assumi com ele um compromisso
irrestrito, continuar a luta de manter viva a chama que com tanto sacrifício
foi por ele acesa e, mais ainda, fazer florescer nossa Sociedade, tornando-a
reconhecida mundialmente. O destino foi extremamente generoso comigo, também é
verdade que o esforço foi gigantesco, mas valeu a pena o desafio. Nossa
Sociedade passou a se reunir regularmente a cada dois anos nos mais diversos
países da América Latina desde a Argentina até o México, estive presente na quase
totalidade das reuniões, nestes trinta e seis anos somente me ausentei de duas
delas, organizei o Congresso de 1996, em são Paulo, e fui presidente da mesma
de 1996 a 1998. A Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica e
Nutrição, em decorrência da sua importância conquistada como conseqüência do
trabalho incessante de longo prazo desenvolvido pelos seus membros associados,
tornou-se reconhecida pelas existentes congêneres internacionais, a saber:
européia, norte-americana e asiática. Assim, finalmente, a partir deste
reconhecimento foi criado o evento Congresso Mundial, congregando todas as
sociedades internacionais, o qual, foi inaugurado em 2000, em Boston (Figuras 6-7), seguindo-se em 2004, em Paris,
com o compromisso de ser realizado a cada quatro anos, em forma de rodízio, em
cada um dos continentes.
Figura 6-
Comissão organizadora do I Congresso Mundial reunida em Denver, em outubro de
1999. Da esquerda para a direita, Ron Sokol (EUA), Samy Cadranel (Bélgica), eu,
Yushiro Yamashiro (Japão) e Harland Winter (EUA).
Figura 7-
Parte da delegação da Disciplina de Gastropediatria da Escola Paulista de
Medicina, UNIFESP, docentes, pós-graduandos e especializandos, presente ao I
Congresso Mundial, em Boston, em agosto de 2000.
O terceiro Congresso Mundial foi realizado em Foz do
Iguaçu, em agosto de 2008, o qual eu tive a imensa alegria e honra de presidir.
Revestiu-se de um extraordinário sucesso, com mais de 2500 participantes,
vindos de 102 países, tendo sido apresentados 1025 trabalhos de pesquisa na
área. Na sessão de abertura do Congresso Mundial, durante meu discurso, pude
então, com muito orgulho e tomado de emoção, reverenciar publicamente a figura
de Horácio Toccalino, por tudo aquilo que havia batalhado e realizado em pró do
engrandecimento da nossa Sociedade (Vide abaixo parte transcrita do discurso de
abertura) (Figuras 8-9).
Figura 8- Momento da abertura do III Congresso Mundial de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição em Pediatria.
Figura 9- Os membros componentes do Comitê Científico durante o jantar de confraternização ao final do Congresso Mundial. Da esquerda para a direita: Jaime Gerson (México), Joaquin Kohn (Argentina), Daniel Dagostino (Argentina), Ricardo Uauy (Chile), Eduardo Salazar-Lindo (Perú), Ulysses Fagundes-Neto (Brasil), José Vicente Spolidoro (Brasil) e Domingo Jaen (Venezuela).
Figura 8- Momento da abertura do III Congresso Mundial de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição em Pediatria.
Figura 9- Os membros componentes do Comitê Científico durante o jantar de confraternização ao final do Congresso Mundial. Da esquerda para a direita: Jaime Gerson (México), Joaquin Kohn (Argentina), Daniel Dagostino (Argentina), Ricardo Uauy (Chile), Eduardo Salazar-Lindo (Perú), Ulysses Fagundes-Neto (Brasil), José Vicente Spolidoro (Brasil) e Domingo Jaen (Venezuela).
Finalmente, meu compromisso de
vida com meu mestre e amigo Horácio Toccalino havia sido cumprido. A partir
daquele momento passei a me sentir em paz com a minha consciência, a missão
estava concretizada!
O término da Especialização, o
retorno ao Brasil e a criação da Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da
Escola Paulista de Medicina
Em meados de outubro tive a
grande alegria de receber a visita do Prof. Azarias Andrade de Carvalho, Chefe
do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina. Ele fez questão de
conhecer o Policlínico Alejandro Posadas e conversar com Dr. Toccalino a
respeito do meu aproveitamento. Ficou muito bem impressionado com as
instalações que conheceu e também ficou bastante satisfeito em ouvir do Dr.
Toccalino que meu rendimento estava sendo ótimo, sendo que ele até mesmo
recomendava minha contratação quando voltasse ao Brasil, para implantar o
Serviço de Gastroenterologia Pediátrica. Prof. Azarias muito gentilmente deu-me
a segurança que eu necessitava, assim que houvesse concurso para ingresso na
carreira do magistério superior ele apoiaria minha candidatura. Desta forma
pude respirar aliviado e seguir os últimos dias da minha especialização com
maior tranqüilidade e assim escrevi em meu diário, em novembro de 1973:
“Creio que esta será a última vez que escrevo, a verdade é que o tempo é inexorável e sempre caminha em um mesmo sentido, tudo que começa tem que ter um final. No meu caso parece que o final está chegando e o faz muito mais rapidamente do que eu poderia esperar. Já estou aqui há 10 meses e logo mais estarei de volta. O interessante, e ao mesmo tempo pode parecer uma contradição, é que tudo se passou tão rapidamente que nem deu bem para sentir, mas, por outro lado, parece que estou aqui há muitos anos, ou melhor, que aqui sempre foi o lugar do meu trabalho; adaptei-me tão bem, sou muito bem tratado e respeitado que talvez seja essa a razão do meu sentimento... Nunca poderei me esquecer de todos estes médicos que constituem o serviço da gastropediatria (Figuras 10-11-12)...
“Creio que esta será a última vez que escrevo, a verdade é que o tempo é inexorável e sempre caminha em um mesmo sentido, tudo que começa tem que ter um final. No meu caso parece que o final está chegando e o faz muito mais rapidamente do que eu poderia esperar. Já estou aqui há 10 meses e logo mais estarei de volta. O interessante, e ao mesmo tempo pode parecer uma contradição, é que tudo se passou tão rapidamente que nem deu bem para sentir, mas, por outro lado, parece que estou aqui há muitos anos, ou melhor, que aqui sempre foi o lugar do meu trabalho; adaptei-me tão bem, sou muito bem tratado e respeitado que talvez seja essa a razão do meu sentimento... Nunca poderei me esquecer de todos estes médicos que constituem o serviço da gastropediatria (Figuras 10-11-12)...
Figura 10-
Almoço da minha despedida do Policlínico Alejandro Posadas, em dezembro de
1973, com a participação da equipe de médicos da Gastropediatria.
Figura 11-
Enfermeira Anita, responsável pelos cuidados dos pacientes durante os procedimentos
de investigação clínica, e eu em frente a entrada principal do Policlínico
Alejandro Posadas.
Figura 12-
Festa da minha despedida do Policlínico Alejandro Posadas realizada na casa da
enfermeira Anita, em dezembro de 1973.
Por fim, o grande chefe do circo
todo, o comandante genial, o cérebro de toda a coisa, o homem prático e
matemático, o conselheiro de todas as horas, o amigo irrestrito. Este homem,
Horácio Toccalino, eu não poderei nunca deixar de lembrar a cada momento da
minha existência como médico e cidadão. Para que se tenha idéia, um dia quando
me queixava de que no Brasil não havia possibilidades de se montar um serviço
como o dele, ele me disse: Lá não é nada diferente daqui, e o que é necessário
é trabalhar, trabalhar, trabalhar e acima de tudo formar uma equipe coesa.
Pensei muito a respeito dessas
palavras e depois de algum tempo cheguei à conclusão de que tudo é possível de
se realizar basta haver determinação para tal. EU VOU FAZER O QUE ELE PREGA.”
Dito e feito retornei ao Brasil,
houve concurso para ingresso no magistério superior, fui aprovado, iniciei a
carreira docente e juntamente com Prof. Jamal Wehba, montamos o Setor de
Gastropediatria. Trabalhamos ombro a ombro durante bons anos, começamos a
receber especializandos da nossa instituição e de outros serviços. Em pouco
tempo mais começamos a produzir conhecimento, nos transformamos em Disciplina
do Departamento de Pediatria, abrimos programas para a Pós-Graduação sentido
restrito, Mestrado e Doutorado. A Disciplina cresceu, novos docentes foram
incorporados, passamos a receber especializandos de todo o país e mesmo de
outros países da América Latina (Figuras 13-14).
Figura 13-
Cena de uma reunião clínica da Disciplina de Gastropediatria, no início dos
anos 1990. Da esquerda para a direita Profa. Elisabete Kawakami, Prof. Jamal
Wehba e Prof. Mauro Batista de Morais.
Figura 14-
Parte da delegação da Disciplina de Gastropediatria, docentes, pós-graduandos e
especializandos, presentes no V Congresso da Sociedade Latino Americana de
Gastroenterologia e Nutrição realizado em Buenos Aires, em 1984.
Enfim, nossa missão está sendo
cumprida e nossa Disciplina é atualmente reconhecida pela sua excelência
nacional e internacionalmente. Seguimos com sucesso o lema de Horácio Toccalino!
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