RESPOSTAS VISCEROSSOMÁTICAS ANORMAIS
Tem sido proposto que a ação conjunta do rebaixamento do diafragma, abaixo da lordose lombar, hipotonia da musculatura abdominal, e protrusão voluntária do abdome podem ter importância na geração da flatulência e da distensão abdominal, porém nenhuma destas alterações foi confirmada em um estudo anterior utilizando tomografia computadorizada (Maxton e cols., Gut 1991; 32: 662-64), ou mesmo em outro estudo, realizado na Austrália, aonde se verificou ser normal a atividade da musculatura abdominal na SII (McManis e cols., Am J Gastroenterol 2001; 96: 1139-42). Entretanto, com a utilização da eletromiografia da parede abdominal e do diafragma e a análise da imagem da tomografia computadorizada moderna, o grupo de Barcelona em uma série de cuidadosos estudos incluindo voluntários sadios e pacientes trouxe novos importantes conhecimentos a respeito da gênese da distensão abdominal em pacientes com transtornos funcionais gastrointestinais. Nestes estudos ficou demonstrado que a acomodação abdominal a sobrecargas de volume é um processo ativo que envolve respostas musculares abdominofrênicas (Vitoria e cols., Am J Gastroenterol 2008; 103: 2807-15) e que pacientes com SII que apresentam flatulência sofrem de reflexos viscerossomáticos prejudicados e distonia da parede abdominal, com fracasso na concentração tônica da parede abdominal, e relaxamento do músculo oblíquo interno em resposta a uma sobrecarga gasosa colônica (Perez e cols., Am J Gastroenterol 2007; 102: 842-49). Accarino e cols. (Gastroenterology 2009; 136: 1544-51) investigaram um grupo significantemente grande de pacientes que apresentavam queixa predominantemente de flatulência e voluntários sadios utilizando a tomografia abdominal de varredura, por meio de um software especializado para analisar o conteúdo de gás e os volumes intra-abdominais. Considerando-se o grande interesse do tema, pacientes que sofrem de flatulência como queixa do transtorno funcional foram comparados com aqueles com grave dismotilidade intestinal e flatulência. Ambos os grupos foram submetidos a um estudo com tomografia computadorizada de varredura durante condições basais e também durante um episódio de flatulência intensa. Não houve diferença significativa entre os grupos no estado basal. Entretanto, diferentes mecanismos de origem foram detectados durante os episódios de flatulência entre os dois grupos; os pacientes que sofriam de dismotilidade funcional demostraram um real aumento do volume abdominal total com um deslocamento cefálico do diafragma; por outro lado, os pacientes com transtorno funcional apresentaram um incremento muito modesto do volume abdominal, e, ao contrário do grupo anterior, a distensão abdominal mostrou-se relacionada com um movimento descendente do diafragma, o que resultou em um deslocamento abdominofrênico e redistribuição dos conteúdos gasosos intestinais no sentindo ventro-caudal.
Esses achados são potencialmente de grande valor para explicar os desconfortos sintomáticos da flatulência e da visível distensão abdominal; um pequeno, embora significante, aumento do conteúdo gasoso intestinal, como demonstrado neste estudo pode provocar o desencadeamento da distensão abdominal através da existência de reflexos viscerossomáticos anormais. Entretanto, este estudo apresenta alguns aspectos que merecem críticas. O grupo que sofria de distensão abdominal de causa funcional foi selecionado baseando-se na existência de sintomas graves de flatulência e distensão abdominal, e compreendia pacientes com SII, com constipação e hábitos intestinais mistos, assim como um grupo de pacientes com flatulência funcional, mas nenhum paciente portador de SII com diarreia foi incluído; portanto, a partir deste estudo a generalização dos achados para todos os pacientes que sofrem de transtorno funcional intestinal não fica clara, e a relevância dos achados fica confinada a pacientes com distensão abdominal visível e não para pacientes com a sensação isolada de flatulência. Estudos de acompanhamento são agora necessários utilizando diferentes grupos de pacientes fazendo-se comparações entre diferentes subgrupos de pacientes. Além disso, outro ponto que merece crítica no presente estudo refere-se ao papel do índice de massa corporal, o que não foi claramente esclarecido.
De qualquer forma um novo e potencialmente muito importante mecanismo desencadeador da distensão abdominal nos transtornos funcionais gastrointestinais foi demostrado, e os próximos passos a serem seguidos deverão ser para avaliar sua relativa relevância para conjuntamente atuar em outros mecanismos propostos, e encontrar uma potencial opção de tratamento para se tentar reduzir os sintomas que causam desconforto.
CONCLUSÃO
Os mecanismos potenciais que se encontram por traz dos sintomas desconfortáveis de flatulência e distensão abdominal visível têm emergido nos últimos anos e estão diagramados na Figura 1.
Figura 1- Representação esquemática dos potenciais mecanismos causadores de flatulência e distensão abdominal nos transtornos funcionais gastrointestinais.
O trânsito prejudicado de gás no intestino parece desempenhar um importante papel associado a uma alteração da motilidade funcional, fato frequentemente encontrado em pacientes com transtornos gastrointestinais funcionais. A hipersensibilidade visceral, um dos principais fatores fisiopatológicos nos transtornos gastrointestinais funcionais, é de grande importância no desencadeamento dos sintomas, em especial naqueles pacientes que sofrem de flatulência e que não apresentam uma distensão abdominal visível. Respostas viscerossomáticas anormais podem resultar de uma aglomeração focal do conteúdo intestinal com incoordenação abdominofrênica e, como consequência, protrusão da parede abdominal. Outros fatores ainda não bem esclarecidos e/ou estudados, e que são de potencial importância, referem-se a uma ativação imunológica anormal da mucosa, alteração da flora bacteriana, hormônios sexuais, e fatores psicológicos, incluindo somatização. O próximo passo que agora deve ser seguido refere-se a avaliação da importância relativa destes diferentes fatores e a inter-relação entre eles. Assim sendo, algumas perguntas permanecem para serem respondidas: será relevante do ponto de vista clínico constituir subgrupos de pacientes que sofrem de flatulência isoladamente versus flatulência com distensão abdominal, baseados na presença/ausência de diferentes fatores fisiopatológicos? Além disso, desde o ponto de vista do paciente, tudo indica ser de enorme importância traduzir estes achados no desenvolvimento de potenciais opções terapêuticas para reduzir a intensidade da flatulência e da distensão abdominal visível. Sem duvida alguma este será o maior passo a ser dado para atender as necessidades dos pacientes e de seus médicos assistentes.
Meus Comentários
Como é possível depreender deste editorial e dos artigos a que ele se refere, os transtornos funcionais gastrointestinais continuam a ser um enorme desafio para os pesquisadores/investigadores/indústria farmacêutica, quanto à sua fisiopatologia e, consequentemente, ao surgimento de potenciais medicamentos que possam a vir controlar/curar os pacientes portadores destes transtornos. Indiscutivelmente, ao longo dos anos, tem ocorrido avanços para uma melhor compreensão dos mecanismos íntimos que geram uma sintomatologia comum a alguns transtornos funcionais, porém, por outro lado, sabemos que ainda estamos engatinhando para alcançarmos uma solução definitiva a respeito do tema. Sem dúvida alguma, os avanços verificados nos critérios de Roma (I - II e III) têm contribuído decisivamente para que sejam definidos de forma mais detalhada cada um dos transtornos considerados como funcionais, bem como inclusive tem sido ampliada a lista dos mesmos, como no caso da Pediatria, agora subdividindo-os entre recém-nascidos e lactentes, e entre escolares e adolescentes. Os últimos conhecimentos gerados pelos pesquisadores vêm demonstrando cada vez mais que estamos diante de um problema que não é necessariamente devido a uma única causa específica, mas sim, pode ser a múltiplos fatores que interagem para desencadear um sintoma comum, ou seja, estamos literalmente lidando com uma síndrome, e discriminar qual ou quais os mecanismos causais para a deflagração dos sintomas torna-se o grande desafio a ser vencido. Será, sem dúvida alguma, a partir do conhecimento específico de cada um destes mecanismos, e de como eles estão atuando em um determinado paciente, é que se poderá propor o melhor tratamento. Torna-se ainda necessário aprimorar a metodologia e a técnica de investigação clínica para serem elucidados e identificados os meandros desta síndrome, para que se possa em futuro próximo, discriminar com exatidão qual o fator/fatores desencadeante/desencadeantes dos sintomas em um determinado paciente, e assim propormos o tratamento correto. Este é, sem dúvida alguma, o grande desafio para a indústria farmacêutica, desvendar medicamentos específicos para abarcar cada um dos fatores causais dos sintomas, porém, sabe-se de antemão, que isto será praticamente impossível enquanto o conhecimento íntimo de cada processo fisiopatológico não for conhecido. Entretanto, nem tudo são desilusões, porque se sabe, isto sim está bem estabelecido, que apesar do desconforto causado pela flatulência, distensão abdominal, constipação e/ou diarreia que por ventura afeta os pacientes portadores dos transtornos gastrointestinais funcionais, estes sintomas tem caráter absolutamente benigno, e, portanto, não oferecem riscos de efeitos colaterais indesejáveis.