A Síndrome do Intestino Irritável (SII) continua a ser um grande desafio para pesquisadores e clínicos, além de trazer um enorme aborrecimento e desconforto para os pacientes que padecem deste transtorno funcional. Está bem estabelecido que a SII pode se apresentar por meio de 3 manifestações clínicas distintas, a saber: diarreia, constipação com distensão e dor abdominal, e uma alternância dos sintomas anteriormente mencionados. Até há alguns anos admitia-se que a SII era um transtorno funcional que afetava apenas a população adulta, porém inúmeras publicações que se iniciaram na década de 1960, a partir dos estudos de Murray Davidson, nos Estados Unidos, sob a designação de Diarreia Crônica Inespecífica, e de Horácio Toccalino, na Argentina, sob a designação de Diarreia Fermentativa, outras experiências em diversos países passaram a confirmar que esta entidade clínica soe iniciar sua sintomatologia na infância, inclusive mesmo nos primeiros meses de vida e acompanha o indivíduo ao longo de toda sua existência. No Brasil, tive a oportunidade de descrever pela primeira vez um grupo de pacientes portadores de SII na década de 1980 (Síndrome do Cólon Irritável na infância: diagnóstico e evolução, Ulysses Fagundes-Neto, Marli Pedra e Valéria Ferreira, Jornal de Pediatria 58: 366-70, 1985). Desde então, este tipo de manifestação clínica passou a ser globalmente reconhecida e admite-se mesmo que 20% das consultas em Gastroenterologia se devem a este transtorno funcional. Paradoxalmente, no entanto, muito pouco se conhece a respeito dos mecanismos íntimos da sua gênese, e, como este transtorno funcional não apresenta alterações estruturais visíveis e nem tampouco anormalidades bioquímicas detectáveis pelas técnicas até o presente momento disponíveis, torna-se um grande quebra-cabeças para explicar sua fisiopatologia e consequentemente uma grande frustração para a intervenção terapêutica. Entretanto, a revista Gastroenterology, no seu número 136 de 2009 (páginas 1487-1490) traz um editorial assinado por Magnus Simrén, extremamente interessante, aonde o autor faz uma série de observações sobre os novos conhecimentos que tentam desvendar a fisiopatologia da SII, e assim trazer uma perspectiva otimista para que em futuro próximo possamos compreender completamente a gênese deste transtorno funcional e, a partir daí, possibilitar a oferecer o merecido alívio dos sintomas aos nossos sofridos pacientes. A seguir transcrevo os principais tópicos deste trabalho.
INTRODUÇÃO
Flatulência e distensão abdominal são sintomas frequentes e extremamente desconfortáveis, para os quais inexistem explicações fisiopatológicas claramente definidas e, consequentemente, as opções terapêuticas disponíveis são bastante limitadas. Flatulência refere-se à sensação subjetiva de inchaço abdominal enquanto que a distensão abdominal visível diz respeito a um real aumento da circunferência abdominal. Um recente estudo populacional demonstrou uma prevalência de 19% de flatulência entre a população de brancos norte-americanos, enquanto que distensão abdominal visível foi observada em 9% deles. Nesta investigação associações com o gênero feminino e somatização foram constatadas assim como a existência de transtornos gastrointestinais funcionais (Gut 2008;57:756-63). Esses achados estão de acordo com investigações realizadas em pacientes com transtornos intestinais funcionais, tais como a SII, na qual a maioria dos pacientes queixa-se de flatulência com ou sem distensão abdominal visível, e a maioria dos pacientes considera estes sintomas como os mais desconfortáveis. Desde longa data, flatulência e distensão abdominal visível tem sido sintomas pouco compreendidos, mas, estudos recentes realizados por grupos de Manchester e Barcelona tem trazido alguma luz à respeito dos diferentes mecanismos envolvidos na gênese destes sintomas. Estes novos conhecimentos foram incorporados por Accarino e cols. (Gastroenterology 2009;136:1544-51), que demostraram um importante papel das respostas viscerossomáticas anormais com incoordenação abdomenofrênica e protrusão da parede anterior do abdome.
FLATULÊNCIA VERSUS DISTENSÃO ABDOMINAL
Por meio da utilização do platismógrafo de indutância abdominal e da tomografia computadorizada foi possível demonstrar convincentemente que a distensão abdominal é um fenômeno verdadeiro entre os pacientes que sofrem da SII a qual pode chegar a alcançar até 12cm em determinados casos. Embora a sensação de flatulência e distensão abdominal visível ocorram geralmente em associação, nem sempre isto acontece e em pacientes que sofrem da SII e que se queixam de flatulência, aproximadamente em metade deles objetivamente ocorre distensão abdominal visível. Neste grupo de pacientes, Constipação tem sido a queixa mais comum e hiposensibilidade visceral tem sido observada mais frequentemente. Nos outros 50% dos pacientes, ou seja, aqueles que se queixam apenas de flatulência sem distensão abdominal visível, neste subgrupo de pacientes, predomina a queixa de diarreia e estes pacientes geralmente demonstram sinal de hipersensibilidade visceral. Além disso, em uma recente pesquisa que utilizou barostato foi possível também demonstrar que uma percepção retal alterada estava associada com um grau importante de flatulência, achado este que dá suporte a esta associação. Baseados nestes resultados tudo indica que flatulência e distensão abdominal visível compartilham alguns aspectos sintomáticos, mas eles podem se originar de processos fisiopatológicos distintos.
EXCESSIVA QUANTIDADE DE GÁS NO TRATO GASTROINTESTINAL?
A imensa maioria dos pacientes que sofre de SII e que se queixa de flatulência e distensão abdominal está convencida de que isto se deve à presença “de demasiada quantidade de gás” no interior do trato gastrointestinal. Entretanto, a partir de estudos recentemente realizados com o emprego de técnicas modernas e sofisticadas tem sido claramente demonstrado que uma quantidade excessiva de gás no trato gastrointestinal não é o principal problema na maioria dos pacientes que sofrem de transtorno intestinal funcional, muito embora tenha sido sugerido em alguns estudos a ocorrência de fermentação colônica anormal. Entretanto, um defeito em manejar cargas exógenas de gás no interior do trato gastrointestinal em pacientes que sofrem SII e apresentam flatulência tem sido convincentemente demonstrado em vários estudos, e a retenção destes gases tem reproduzido seus sintomas. De fato, na maioria dos pacientes incluídos nestes estudos foi demonstrada uma retenção gasosa e/ou uma percepção aumentada de cargas exógenas de gás, o que aponta para uma combinação de trânsito prejudicado e sensibilidade aumentada, como sendo as responsáveis por estes sintomas. Desde um ponto de vista mecânico, a atividade reflexa alterada do trato gastrointestinal e a sensibilidade aumentada para determinados alimentos tem sido atribuídas como importantes fatores envolvidos no trânsito gasoso prejudicado nestes pacientes, bem como a percepção dos sintomas. Além disso, por meio da utilização de técnica cintilográfica foi demonstrado que o intestino delgado é o responsável pela propulsão ineficaz dos gases nos pacientes que se queixam de flatulência, o que provavelmente contraria aquilo que a maioria dos pesquisadores esperava, posto que o intestino grosso pareceria ser a escolha mais lógica.
Considerando-se todos esses aspectos conjuntamente chegamos à conclusão de que pacientes que sofrem de SII não precisam necessariamente produzir mais gases para apresentarem sintomas relacionados aos mesmos, mas ao contrário, estes sintomas podem ser devidos a uma disfunção motora, que cria um problema de transporte e aumenta a sensibilidade visceral. Além disso, a ocorrência de acúmulo focal de gases pode liberar respostas viscerossomáticas anormais, as quais resultam em flatulência e distensão abdominal visível.
No nosso próximo encontro continuarei a transcrição deste excelente editorial sobre o intrigante tema que é a SII.
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