quinta-feira, 29 de julho de 2010

A história da realização de um Pós-Doutorado na Cornell University, Nova Iorque (9)

O Projeto de Pesquisa Experimental: “Absorção de Macromoléculas Intactas Pelo Jejuno De Ratos in vivo: Influência Dos Sais Biliares Taurocolato, Colato e Deoxicolato”
Introdução


A- Aspectos de Importância da Fisiologia dos Sais Biliares
A bile é uma solução aquosa complexa, constituída por compostos orgânicos e inorgânicos e que se encontra armazenada na vesícula biliar. Sua composição, cor, fluxo, viscosidade e conteúdo sólido totais variam largamente durante o decorrer do dia, assim como de uma espécie para outra (Figura 1).
Figura 1- Representação esquemática do ciclo de produção da bile a partir do fígado, armazenamento na vesícula biliar, liberação no duodeno e respectiva reabsorção no íleo terminal.

Quando a bile alcança o duodeno uma grande proporção dos seus constituintes não estará irreversivelmente perdida nas fezes, ao contrário, em condições normais estará destinada a ser reabsorvida, retornará ao fígado e será reexcretada na bile.

Os sais biliares e a bilirrubina são produzidos no fígado e constituem 2 dos mais importantes solutos orgânicos componentes da bile; são também típicos exemplos do mecanismo do reaproveitamento anteriormente mencionado, muito embora se dêem por vias distintas e independentes entre si. Os outros componentes orgânicos da bile são o colesterol e fosfolípides, em especial a lecitina (Figura 2).
Figura 2- Visão esquemática da cara posterior do fígado evidenciando a localização da vesícula biliar.

Os sais biliares vêm despertando a curiosidade dos químicos, bioquímicos, fisiologistas e médicos há mais de 150 anos. Como resultado direto deste interesse uma avalanche de conhecimentos sobre a natureza química e física dos sais biliares tem se acumulado na literatura científica. Entretanto, somente nestas últimas décadas têm sido descritos estados de enfermidade que são causados diretamente pelos sais biliares, ou então, de forma indireta, como resultado das alterações do seu metabolismo e/ou fisiologia, particularmente causadas pela degradação da microflora bacteriana intestinal sobre os mesmos.

No fígado do ser humano, a partir da molécula do Colesterol são sintetizados 2 tipos de sais biliares, e por isto são chamados Primários, a saber: Ácido Cólico (Figura 3) e Ácido Quenodeoxicólico.
Figura 3- Estrutura química do Ácido Cólico, sal biliar primário.

Os sais biliares constituem-se em compostos de 24 átomos de Carbono que possuem um núcleo com a configuração do ciclopentanoperhidrofenantreno, derivado do Colesterol. A cadeia lateral contém 5 átomos de Carbono que termina em grupo Carboxila (OH) e que se comporta como ácido orgânico, daí o nome Ácido Biliar; recebe a inclusão de um ou dois radicais hidroxilas (OH) em posições 7α e 12α. O Ácido Cólico é tri-hidroxilado (ácido 3α, 7α e 12α, trihidroxi, 5β colanóico) e o Ácido Quenodeoxicólico é dihidroxilado (ácido 3α e7α, dihidroxi, 5β colanóico). Os sais biliares estão ligados em forma peptídica com glicina e/ou taurina e a relação entre os compostos conjugados glicina/taurina se faz na proporção de 3:1. Este tipo de conjugação se dá no hepatócito via CoA e tem por objetivo proporcionar um aumento da solubilidade dos sais biliares em sistemas aquosos porque abaixa sua constante de dissociação. Os valores de pK destes conjugados são mais baixos do que o pH do conteúdo intestinal e por esta razão os Ácidos Biliares existem no nosso organismo sob a forma de Sais de Sódio ou Potássio, e por este motivo são denominados Sais Biliares (Figura 4).

Figura 4- Estrutura química dos ácidos biliares primários e secundários. Observar nas cadeias laterais a conjugação com glicina ou taurina.

Nos vertebrados a molécula do colesterol é o mais importante constituinte das membranas celulares, e a maioria dos tecidos do organismo sintetiza colesterol continuamente. A retenção excessiva do colesterol está associada a elevadas taxas do colesterol sérico e doença arterial. Assim sendo, torna-se necessário que o organismo disponha de meios apropriados para provocar a eliminação do excesso do colesterol sérico. Este objetivo é alcançado quimicamente pela conversão do colesterol em seus derivados hidrosolúveis, os sais biliares, os quais são secretados com a bile. Além disso, esta função é também fisicamente executada pela excreção do colesterol como tal, que passa a formar um complexo micelar constituído por sais biliares-lecitina-colesterol. Como se pode depreender os sais biliares são praticamente os únicos responsáveis pela excreção do colesterol do organismo; além de serem sintetizados a partir da molécula do colesterol atuam diretamente no seu transporte, criando as condições propicias de solubilização para eliminar seu precursor do organismo. Os sais biliares também induzem o fluxo biliar, isto é, estimulam o movimento dos fluidos durante sua secreção para o interior dos canalículos biliares, ainda dentro do parênquima hepático. Além disso, um eficiente sistema de transporte para a circulação sistêmica, localizado no íleo terminal, possibilita conservar a maior parte das moléculas dos sais biliares, posto que estes retornam ao fígado, e são novamente secretados na bile. Este processo é denominado Circulação Entero-Hepática o qual permite, por um lado, reciclar os sais biliares, e de outra parte, de forma concomitante, controlar a excreção do colesterol (Figuras5 & 6).
Figura 5- Representação esquemática da circulação entero-hepática.



Figura 6- Visão das estruturas anatômicas componentes da circulação entero-hepática.

A existência da circulação entero-hepática assegura a manutenção de uma concentração ideal dos sais biliares no organismo. Os sais biliares participam da circulação entero-hepática sob 2 formas de estrutura química, a saber: 1- sais biliares primários, Ácido Cólico e Ácido Quenodeoxicólico; 2- sais biliares secundários, Ácido Deoxicólico (ácido 3α e 12α, dihidroxi, 5β colanóico) e Ácido Litocólico (ácido 3α hidroxi, 5β colanóico), os quais são formados no íleo terminal a partir dos sais biliares primários decorrentes de uma mudança estrutural denominada 7-alfa desidroxilação, por ação das bactérias componentes da microflora normal, em especial as anaeróbias (Figuras 7 & 8).




Figura 7- Transformação do sal biliar primário Colato em sal biliar secundário Deoxicolato pela ação da enzima bacteriana acarretando a 7 alfa desidroxilação (em vermelho).


Figura 8- Estruturas químicas dos sais biliares primários (Cólico e Quenodeoxicólico) e secundários (Litocólico e Deoxicólico).

O Ácido Deoxicólico é prontamente absorvido a partir do íleo e do colon, retorna ao fígado aonde é reconjugado e secretado na bile, perfazendo cerca de 20% do total dos sais biliares, enquanto que o Ácido Litocólico é pouco solúvel à temperatura corporal, é absorvido em mínimas quantidades, sua maior parte é excretada nas fezes. A circulação entero-hepática é mantida por 2 bombas químicas, as quais extraem eficientemente os sais biliares e transportam-nos em sentido unidirecional. A primeira delas localiza-se no fígado e é responsável pela extraordinária rapidez pela qual os sais biliares retornam ao fígado, são extraídos do plasma e reexcretados na bile. A segunda bomba química está localizada no íleo terminal e remove 95% dos sais biliares que atingem esta porção do intestino e transporta-os para a circulação portal. Desta forma somente até 5% dos sais biliares sintetizados no fígado são eliminados nas fezes. Além dessas 2 bombas químicas, a vesícula biliar e o intestino delgado podem ser também considerados como bombas físicas.

Estima-se que o “pool” de sais biliares realiza a circulação entero-hepática 10 vezes por dia. Um indivíduo normal apresenta um “pool” de sais biliares de aproximadamente 3,5g e a circulação entero-hepática deste “pool” é da ordem de 35.000mg/24 horas.
Ao atingir o íleo terminal, cerca de 25% dos sais biliares primários conjugados com taurina ou glicina sofrem desconjugação por ação da flora bacteriana, principalmente anaeróbia, a qual existe em concentração elevada (aproximadamente 10 elevada a 9 colonias/ml de secreção ileal). Por outro lado, a maior parte destes sais biliares desconjugados é reabsorvida, retorna ao fígado e é novamente conjugada com glicina e/ou taurina dando sequência, assim, a seu ciclo diário de circulação.

A função mais importante dos sais biliares é, indiscutivelmente, criar um meio ambiente propício no lúmen jejunal para favorecer a solubilização das gorduras ingeridas com a dieta e assim permitir que o processo de digestão das mesmas se realize com máximo aproveitamento. Esta propriedade particular dos sais biliares primários está diretamente relacionada com sua capacidade de “detergência”. Detergentes são compostos químicos que apresentam dupla atividade, ou seja, uma porção da sua molécula interage de forma efetiva com a água (fração hidrofílica) ao passo que a outra porção o faz de forma débil (fração hidrofóbica). No caso dos sais biliares, as hidroxilas (radicais OH) e a cadeia lateral são hidrofílicas, ao passo que a estrutura esteróide é hidrofóbica (Figura 9).

Figura 9- Representação esquemática dos polos hidrofílicos e hidrofóbicos dos sais biliares.

Em baixas concentrações as moléculas dos sais biliares encontram-se dispersas em solução, mas em concentrações mais elevadas e dependendo de certas condições basais do fluido intestinal (pH, temperatura etc.) ao atingir a denominada concentração micelar crítica começa a ocorrer uma agregação molecular. Estes agregados são denominados micelas (Figura 10).

Figura 10- Representação esquemática da formação da micela.

Em condições fisiológicas a concentração micelar crítica encontra-se ao redor de 1 a 3 mM, e, em adultos normais, a concentração dos sais biliares varia de 5 a 25 mM; por outro lado, em recém-nascidos e nos primeiros meses de vida esta concentração é significativamente mais baixa, ao redor de 1,2 a 3 mM. A criação da fase micelar juntamente com a solubilização dos compostos de gordura acelera a reação lipolítica (digestão da gordura) no sentido de sua completa realização e, ao mesmo tempo, aumenta consideravelmente a disponibilidade da gordura já digerida pela lípase pancreática sob a forma de glicerol e ácidos graxos (reação de desesterificação) para ser absorvida pelos enterócitos do jejuno (Figura 11).

Figura 11- Representação esquemática do processo de digestão das gorduras da dieta.

No interior dos enterócitos irá ocorrer a reação de re-esterificação, ou seja, volta a ser formada a união do glicerol com os ácidos graxos (gordura), que serão transportados na circulação sanguínea pela veia porta em direção ao fígado ligados pela β-lipoproteina, fechando-se o ciclo da digestão-absorção das gorduras (Figura 12).

Figura 12- Representação esquemática do processo absortivo do colesterol, dos ácidos graxos e dos monoglicerídeos.

Pode-se, portanto, depreender que os sais biliares desempenham algumas funções de extrema importância para que os processos digestivo-absortivos se dêem de forma plena e além disso têm também crucial papel no controle dos níveis séricos do colesterol no organismo humano. Por outro lado, alterações patológicas na localização da microflora bacteriana do trato digestivo interferem diretamente nos mecanismos fisiológicos acima descritos e irão provocar inúmeros efeitos colaterais indesejáveis para o organismo, sobre os quais versará este projeto de pesquisa experimental.

No nosso próximo encontro abordarei, ainda na introdução, o conceito de barreira de permeabilidade intestinal e sua relação direta com o potencial surgimento de Alergia Alimentar, quando ela for rompida.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

A história da realização de um Pós-Doutorado na Cornell University, Nova Iorque (8)

O Início das Minhas Atividades no North Shore University Hospital (NSUH)
O NSUH é um hospital de ensino afiliado à Cornell University e como tal possui um amplo programa de Residência Médica e de Especializações. Para poder manter esta afiliação, além das atividades docentes e de treinamento em serviço, tem também que desenvolver produção científica tanto clínica quanto experimental. Para atender este requisito determinado pela universidade o Departamento de Pediatria possui um laboratório de Pesquisa Experimental associado a um Centro de Microscopia Eletrônica (CME). Este laboratório, naqueles tempos (1977), era chefiado pelo Dr. Fima Lifshitz (Figura 1), com quem fui trabalhar e que também acumulava a chefia da Divisão de Endocrinologia e Nutrição, enquanto que o CME era chefiado pelo PhD Saul Teichberg (Figura 2).
Figura 1- Dr. Fima Lifshitz atendendo suas pacientes portadoras de Anorexia nervosa internadas no NSUH para tratamento. Era a primeira vez que eu via este tipo de doença.


Figura 2- Saul Teichberg em seu Centro de Microscopia Eletrônica.

Originalmente de acordo com as tratativas prévias acertadas com Dr. Fima minhas atividades de pesquisa experimental envolveriam ações em ambos os locais em decorrência da natureza do projeto de pesquisa desenvolvido conjuntamente entre eles e eu. Naquela ocasião estava em franca expansão o estudo da microflora bacteriana do trato digestivo, havia uma avalanche de trabalhos na literatura médica a respeito da microflora bacteriana normal desde o final dos anos 1960, e, também começavam a aparecer trabalhos evidenciando os efeitos nocivos sobre a mucosa do intestino delgado provocados por alterações desta mesma microflora. Como eu já havia realizado 2 trabalhos de investigação clínica estudando a microflora bacteriana do intestino delgado em pacientes portadores de diarréia aguda e crônica associados à desnutrição quando da minha especialização em Buenos-Aires, e continuasse a fazê-lo na minha volta ao Brasil a partir de 1974 e, da mesma forma, Dr. Fima também havia publicado vários trabalhos similares em crianças mexicanas com as mesmas condições clínicas, nossos interesses científicos eram totalmente confluentes. Tratava-se agora de ampliar as fronteiras dos conhecimentos a respeito de outros possíveis efeitos prejudiciais à mucosa do intestino delgado causados pelo crescimento anormalmente elevado da microflora colônica nas porções altas do trato digestivo (em inglês o termo consagrado para esta alteração foi denominado de “bacterial overgrowth”), duodeno e jejuno, as quais em condições normais devem ser estéreis ou muito próximas disso (Figura 3).

Figura 3- Distribuição da microflora normal do trato digestivo.

O projeto de pesquisa elaborado apresentava-se, a meu ver, duplamente sofisticado porque em primeiro lugar envolvia uma técnica laboratorial sobre a qual eu não tinha o menor domínio, denominada perfusão intestinal em ratos (Figura 4) e, porque, em segundo lugar, adicionava mais um fator de complicação que dizia respeito ao estudo da morfologia intestinal utilizando a microscopia eletrônica de transmissão.

Figura 4- A técnica da perfusão intestinal em ratos em pleno funcionamento. Quando voltei para o Brasil graças a uma bolsa de pesquisa que recebi da FAPESP pude comprar estas mesmas máquinas e realizar vários experimentos utilizando esta técnica, os quais se converteram em tese de Mestrado e Doutorado de alunos de pós-graduação por mim orientados.

Teria eu que, por conseguinte, rapidamente desenvolver as competências para dominar concomitantemente as 2 novas habilidades, as quais eram técnicas que não tinham nada em comum, ambas extremamente trabalhosas, de execução que demandava muita paciência e tempo prolongado. Além disso, minhas tarefas teriam que estar necessariamente compreendidas entre 2 laboratórios funcional e fisicamente independentes entre si. Este era mais um grande desafio que se me apresentava, pois teria que me integrar com técnicas de laboratório e pessoas distintas, mas era esta a razão da minha vinda aos USA, portanto, não tinha do que me queixar, tinha que “por a mão na massa” de imediato e enfrentar os possíveis problemas vindouros, visto que todas as condições materiais e de infra-estrutura estavam dadas. Mais ainda, tive a sorte grande de ter como professora, para dominar a técnica da perfusão intestinal e as determinações bioquímicas que o projeto exigia, uma figura encantadora com quem desenvolvi uma profunda relação de amizade a bióloga Mary Ann Bayne (Figuras 5 e 6).

Figura 5- A bióloga Mary Ann Bayne minha maestra e grande amiga para sempre.

Figura 6- Mary Ann pacientemente me ensinando a realizar o procedimento de preparo para o início da perfusão intestinal.

Felizmente, no CME também tive a mesma sorte com Saul e sua assistente Dale. Saul logo que cheguei me deu um livro intitulado “Cells and Organels” para eu estudar e assim me familiarizar com a Biologia Celular (Figura 7), o qual devorei em curto espaço de tempo, enquanto ia aprendendo as delicadíssimas técnicas de inclusão do material para ser visualizado à microscopia eletrônica (Figura 8).
Figura 7- Material de biópsia do intestino delgado normal de rato. Trata-se de um enterócito em cuja porção apical visualiza-se a região das microvilosidades, e, já no interior do citoplasma podem ser vistas diversas organelas, tais como: mitocôndrias, retículos endoplasmáticos com seus ribossomos acoplados, bem como corpos multivesiculares.

Figura 8- Eu em plena atividade de preparo do material para visualização no microscópio eletrônico. Ao fundo vê-se a técnica Hyacinth Spencer uma jamaicana, pessoa admirável e de espírito altamente divertido, que também trabalhava no laboratório.
Além disso, também fui em seguida apresentado ao “monstro”, um microscópio eletrônico de transmissão de fabricação japonesa marca JEOL, equipamento de última geração, que eu teria que manusear para poder estudar as amostras de biópsias de intestino delgado dos ratos que eu submeteria à perfusão intestinal (Figuras 9 e 10).

Figura 9- Eu ao ser apresentado ao "monstro" no primeiro contato com a máquina que eu teria que manusear para poder produzir os trabalhos de pesquisa.

Figura 10- O "monstro" sendo dismitificado, a esta altura eu já conseguia manuseá-lo com total intimidade.

Findo o treinamento que durou cerca de 45 dias estava pronto para dar início ao tão ambicionado projeto de pesquisa o qual se intitulou “Bile Salt-Enhanced Jejunal Macromolecular Absorption” (Sais Biliares Provocam Aumento da Absorção Jejunal de Macromoléculas).
Fazendo um breve parêntesis na atividade de investigação experimental, vale a pena referir que logo que cheguei ao NSUH fui apresentado ao chefe do Departamento de Pediatria Dr. Mervin Silverberg (Figura 11) que era Gastroenterologista Pediátrico.

Figura 11- Dr. Silverberg e eu muitos anos depois, em 1985, em um Congresso da nossa especialidade em Bruxelas, Bélgica. A amizade se tornou sólida e ele algumas vezes esteve aqui no Brasil a meu convite.

Como ele se interou da minha formação clínica na especialidade, convidou-me a freqüentar seu ambulatório o qual atendia 2 vezes por semana. Considerando que eu não queria me afastar da atividade clínica e que, com absoluta certeza, teria a oportunidade de incorporar alguns novos conhecimentos na área, senti-me honrado com o convite e de imediato me coloquei à disposição para desempenhar mais essa função durante minha estada no NSUH. Tendo em vista que ainda durante a realização da residência na Escola Paulista de Medicina eu houvesse prestado o exame denominado Educational Council for Foreign Medical Graduates que, na época, uma vez tendo sido aprovado dava a devida autorização para exercer a profissão de médico nos USA, e eu havia sido aprovado, este certificado me dava o direito de atender pacientes de forma autônoma. Este foi mais um fator que me auxiliou no atendimento aos pacientes porque em breve tempo Dr. Silverberg passou-me plena responsabilidade para que eu desenvolvesse meu próprio ambulatório conjuntamente com o dele. Ao fim do expediente discutíamos os casos com muita camaradagem e esta foi uma tarefa que me acrescentou grandes conhecimentos, em especial sobre algumas doenças que eram raramente vistas em nosso meio naqueles anos. Ademais, também me ajudou a “matar as saudades” da vida de clínico. Além de tudo isso, esta atividade conjunta, serviu para construir uma sólida amizade com Dr. Silverberg, a qual se manteve por muitos anos depois que retornei ao Brasil.

Após este interregno, voltando à investigação experimental, no nosso próximo encontro irei abordar com riqueza de detalhes todo o racional deste primeiro projeto de pesquisa experimental, porque na esteira do sucesso deste estudo pioneiro ainda realizei 2 outros, dos quais também me ocuparei.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A história da realização de um Pós-Doutorado na Cornell University, Nova Iorque (7)

A chegada em Nova Iorque e o Nosso Novo Lar
Finalmente, após quase 2 anos de espera (o convite para trabalhar nos Estados Unidos foi formulado em outubro de 1975) a família completa (mulher, 3 filhos e eu) embarcava para Nova Iorque em junho de 1977. Havia, portanto, chegado o tão aguardado momento de iniciarmos nossa aventura de vida nos Estados Unidos. Uma enorme ansiedade e excitação envolviam todos nós, íamos para um novo país, costumes e cultura muito diferentes das nossas, as expectativas e as fantasias de como seria viver lá eram as mais variadas e muitas vezes ambivalentes. Como seria o apartamento que havia sido reservado para nós? Como funcionaria o hospital? Como seria o dia a dia? Haveria escola para as crianças? O local seria suficientemente seguro? Qual seria o custo de vida, teríamos condições de manter um padrão de vida digno para todos? Como nos comportaríamos em um meio ambiente totalmente estranho a nós, sem termos nenhum parente, amigo ou conhecido a quem recorrer em caso de necessidade? Eu me adaptaria a uma nova atividade totalmente diferente daquela que estava acostumado a desempenhar, pois ao invés de atuar como clínico, tarefa que me enchia de satisfação e me fazia sentir plenamente realizado, agora iria me transformar em um cientista devotado à pesquisa experimental, a bancada do laboratório passaria a ser meu consultório, isto me traria a mesma satisfação que a atividade clínica me proporcionava? Teria eu a suficiente competência para aprender as técnicas laboratoriais altamente sofisticadas que certamente seriam propostas? Teria eu a capacidade para readquirir as necessárias habilidades que havia aprendido nos primeiros anos do curso de Medicina, e que de há muito tempo não mais faziam parte das minhas práticas, para manusear os mais diversos equipamentos e materiais de um laboratório de investigação experimental? Tudo isto eram as incertezas que secretamente atormentavam meus pensamentos, as quais não podiam ser compartilhadas com ninguém, era um problema meu, só meu, eu é que havia me metido nesta potencial enrascada, portanto, cabia somente a mim solucionar ou não a questão. Enfim, as dúvidas e as incertezas eram incontáveis, porém a sorte já estava lançada, não havia mais possibilidade de recuar da decisão tomada, todas as pontes haviam sido destruídas. A partir de então era seguir em frente para desvendar o mistério e enfrentar o desconhecido da melhor forma possível. Foi o que tratamos de fazer ao longo de todo o período de vida nos Estados Unidos entre 1977 e 1978, e que será relatado a seguir.

A primeira e boa surpresa foi a localização do hospital e da moradia que nos havia sido reservada. O North Shore University Hospital está localizado no distrito de Manhasset, no condado de Nassau, em Long Island. Para que se tenha uma idéia mais precisa desta localização, a cidade de Nova Iorque está dividida em 5 distritos, a saber: Manhatan, Staten Island, Bronx, Brooklyn e Queens (Figura 1).
Figura 1- Mapa da cidade de Nova Iorque e o trajeto a ser trilhado entre nosso apartamento e Manhatan.

Os 2 últimos distritos de Nova Iorque encontram-se localizados em Long Island, aonde também se encontram os 2 aeroportos principais de Nova Iorque, JF Kennedy e La Guardia. O condado de Nassau está situado ao leste de Long Island e faz divisa com Queens, sendo que Manhasset dista cerca de 30 km de Manhatan. A ilha de Manhatan pode ser alcançada por carro pela Long Island Expressway ou por trem pela Long Island Railroad, cujo ponto inicial encontra-se no Madison Square Garden, em Manhatan, e o ponto final em Port Washington (Manhasset é a penúltima estação da linha férrea) (Figura 2).

Figura 2- Mapa da região onde está situado o hospital e o distrito de Manhasset. Pode-se observar o trajeto da LIE (495), bem como a Northern Boulevard e a linha férrea.

Por sua vez, o apartamento que nos foi reservado encontrava-se no terreno do próprio hospital (na parte posterior do mesmo) em uma área de 6 prédios residenciais especialmente destinados para os médicos residentes e os “fellows” que desempenham atividades profissionais de assistência e/ou pesquisa. Além disso, dispunha de uma lavanderia comunitária, salão de jogos e de festas, e um amplo gramado com quadra de tênis, quadra esportiva multiuso e um pequeno “play-ground” para as crianças (Figuras 3 - 4 - 5 - 6 & 7).


Figura 3- Vista aérea da região onde se localiza o hospital. Em A está a entrada para o estacionamento do apartamento, o círculo verde está sobre o hospital e o círculo vermelho sobre o prédio do nosso apartamento. Em frente ao hospital há um lindo campo de golf.
Figura 4- Juliana e Marina no jardim do conjunto de prédios tendo ao fundo o pequeno play-ground.


Figura 5- Uly em frente a porta de entrada do nosso prédio.

Figura 6- Uly e eu bem debaixo da janela do nosso apartamento durante o auge do inverno que foi extremamente severo e prolongado.

Figura 7- Uma visão do prédio onde morávamos e Uly se divertindo na neve com o seu trenó.

Mais ainda, o apartamento distava exatamente 100 metros da entrada do hospital, bastava apenas descer um lance de escadas, visto que o prédio estava situado numa colina atrás do hospital. Tratava-se de um apartamento de 2 dormitórios, banheiro, sala de estar, copa e cozinha, cujas dependências eram de tamanho absolutamente satisfatórios para uma experiência de vida temporária (Figuras 8 - 9 - 10 - 11 - 12 & 13).

Figura 8- A família reunida já totalmente adaptada à nova forma de vida.

Figura 9- Juliana e Uly assistindo televisão; este era um mecanismo muito útil para dominar o novo idioma.

Figura 10- Uly na sala de estar do apartamento e os aparelhos de som que à época eram altamente modernos e sofisticados. O Brasil estava sempre presente nas nossas lembranças.

Figura 11- Uly e Marina com minha mãe Walkyria e minha tia Yvonne, a visita tão esperada dos entes queridos.

Figura 12- As crianças desfrutando da visita da avó paterna.



Figura 13- Nossos filhos e seus amigos, um indiano e outro coreano.

Próximo ao hospital, seguindo um pouco mais adiante, descendo a avenida que se denomina Community Drive, distando não mais de 500 metros, havia um clube municipal, cuja freqüência era gratuita, e um pouco mais abaixo do clube havia um centro comercial, com várias lojas pequenas de comércio variado e uma grande loja de departamento denominada A&S (Figura 14 & 15).

Figura 14- Uly e Juliana no centro comercial próximo do nosso apartamento, em pleno verão.

Figura 15- Uly e Juliana em frente à loja de departamento A&S.

Seguindo adiante e cruzando a Northern Boulevard havia um parque público denominado Whiteney-Pond Park (Figura 16 & 17).


Figura 16- Marina no colo da Eurídice e Juliana ao fundo no Whiteney-Pond Park.


Figura 17- A família em passeio ao Whiteney-Pond Park.

Isto posto, todas as condições logísticas e de conforto material estavam dadas para que eu pudesse desempenhar minhas funções a contento. E, como não se bastasse, nosso filho mais velho, por já ter completado 5 anos, pode ser matriculado na escola pública do distrito, com direito a transporte da própria escola e aulas de inglês suplementares para poder dominar o idioma. As meninas, por sua vez, tiveram que ser matriculadas em uma escola maternal privada. Assim sendo, como se pode depreender, rapidamente todas aquelas dúvidas e angústias que nos afligiam, na questão familiar, antes de viajar, quanto a desvendar o desconhecido foram rapidamente dissipadas. Mais ainda, descobrimos que estávamos vivendo em um micro-cosmos multiétinico e multicultural porque nossos vizinhos eram na sua imensa maioria estrangeiros como nós, provenientes dos mais variados rincões do globo terrestre que para lá se aventuraram pelas mesmas razões que a mim me atraíram. Havia indianos, coreanos, argentinos, italianos, japoneses etc. e até mesmo outros brasileiros (Figuras 18 & 19).

Figura 18- Uly e Juliana com seus amigos dos mais diversos países.

Figura 19- Juliana e sua grande amiga Ciara, filha de um casal de italianos.

As incertezas profissionais ainda permaneciam latentes somente o futuro poderia decifrar este aparente enigma. Logo mais adiante veremos como as coisas foram se encaminhando para que o êxito final fosse alcançado.

No nosso próximo encontro passarei a detalhar os aspectos mais interessantes da vida no hospital e do laboratório de investigação experimental.