segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Afecções Funcionais Gastrointestinais: Um Problema Emergente e de Alta Prevalência (8)

A2. Dor Abdominal Relacionada às AFGs

Os principais sintomas e sinais de alarme que geralmente se encontram AUSENTES nas crianças e adolescentes portadoras de dor abdominal relacionadas às AFGs estão listados na tabela abaixo, a saber:

Dor persistente nos quadrantes superior ou inferior direito
Disfagia
Vômitos persistentes
Sangramento gastrointestinal
História familiar de doença inflamatória intestinal, doença celíaca ou úlcera péptica
Dor abdominal que desperta a criança do sono
Artrite
Doença perianal
Perda de peso involuntária
Desaceleração do crescimento
Retardo da puberdade
Febre de origem desconhecida

Os membros do Comitê de experts reconheceram a grande variabilidade na intensidade e no fenótipo da apresentação da dor abdominal relacionada às AFGs e, portanto, decidiram dividir a dor abdominal funcional em 2 categorias individualizadas: dor abdominal funcional na infância e a síndrome da dor abdominal na infância (SDAI). Desta forma, esta última categoria inclui uma população de pacientes com distribuição mais homogênea de sintomas. Feita esta ressalva passarei a abordar os aspectos mais relevantes das manifestações clínicas deste capítulo das AFGs.

1- Dispepsia Funcional
Estudos realizados em comunidades e em colégios revelaram que a queixa de dispepsia varia entre 3.5% e 27% segundo o gênero e o país de origem da pesquisa. Por exemplo, na Itália a prevalência da dispepsia referida por Pediatras generalistas foi de 0,3%, enquanto que nos Estados Unidos a prevalência referida por Pediatras gastroenterologistas variou de 12,5% a 15,9% entre as crianças de 4 a 18 anos de idade.

Quanto à avaliação clínica os membros do Comitê de experts concordaram que a endoscopia digestiva alta está indicada naqueles pacientes que persistem com sintomas de dispepsia a despeito do uso de antiácidos ou naqueles pacientes que apresentam recidiva dos sintomas após a suspensão do medicamento antiácido e nos casos que se deseja confirmar o diagnóstico de infecção associada ao Helicobacter pylori.
Anormalidade na atividade mioelétrica gástrica, retardo no esvaziamento gástrico, alteração na motilidade antro-duodenal e volume gástrico reduzido em resposta à alimentação têm sido descritas em crianças que sofrem de dispepsia funcional. Por outro lado, esvaziamento gástrico rápido associado a trânsito intestinal lento tem sido demonstrado em crianças dispépticas cujo sintoma predominante é a distensão abdominal.

Para a caracterização diagnóstica da Dispepsia Funcional devem ser incluídas todas as seguintes manifestações:

1. Persistência ou recorrência da dor ou sensação de desconforto localizada na região supra-umbilical
2. Dor não é aliviada após a evacuação
3. Não há evidência de processos inflamatórios, anatômicos, metabólicos ou neoplásicos que possam explicar os sintomas.

2- Síndrome do Intestino Irritável (SII)
No mundo ocidental a SII tem sido diagnosticada em cerca de 6% das crianças que cursam o ensino fundamental e em 14% das crianças no ensino médio. A prevalência da SII sobe para 22% a 45% das consultas em gastroenterologia pediátrica.

Os sintomas que cumulativamente dão suporte ao diagnóstico são: a) freqüência anormal das evacuações – 4 ou mais evacuações por dia e 2 ou menos evacuações por semana; b) formato anormal das fezes (secas/endurecidas ou amolecidas/líquidas); c) eliminação das fezes com dificuldade e sensação de evacuação incompleta; d) presença de muco nas fezes; e) sensação de distensão abdominal.
Hipersensibilidade visceral tem sido descrita em crianças que sofrem da SII. Esta hipersensibilidade pode ser devida a inúmeras causas incluindo processo infeccioso, inflamação, trauma intestinal, alergia, e também pode estar associada à anormalidade na motilidade intestinal. Há nítidas evidências de predisposição genética, bem como está associada a situações de estresse e sinais psicológicos de ansiedade, depressão e outras múltiplas manifestações somáticas. É importante ressaltar que um melhor conhecimento da SII por parte do paciente e seus familiares auxilia de forma efetiva na atenuação dos sintomas.

Para a caracterização diagnóstica da Síndrome do Intestino Irritável devem ser incluídas todas as seguintes manifestações:

1. Desconforto abdominal (uma sensação desconfortável não descrita como dor) ou dor abdominal associada a 2 ou mais dos seguintes sintomas durante pelo menos 25% do tempo:
a) alivia com a evacuação
b) instalação está associada com a alteração do rítmo intestinal
c) instalação está associada a alteração no formato das fezes
2. Não há evidência de processos inflamatórios, anatômicos, metabólicos ou neoplásicos que possam explicar os sintomas.

3- Enxaqueca Abdominal
Alguns autores têm sugerido que a enxaqueca abdominal, a síndrome dos vômitos cíclicos, e a enxaqueca com cefaléia constituem variantes de uma mesma afecção, a qual afeta os pacientes geralmente alternando de uma entidade clínica para a outra.A enxaqueca abdominal afeta entre 1% a 4% das crianças, é mais freqüente em meninas do que em meninos na proporção de 3:2 e costuma surgir ao redor dos 7 anos apresentando pico de incidência entre 10 e 12 anos de idade.

Para a caracterização diagnóstica da Enxaqueca Abdominal devem ser incluídas todas as seguintes manifestações:

1. Episódios paroxísticos de intensa dor periumbilical que perdura por pelo menos 1 hora.
2. Períodos assintomáticos de estado normal de saúde que perduram por semanas ou meses.
3. A dor interfere nas atividades normais.
4. A dor está associada a 2 ou mais dos seguintes sintomas:
a) Anorexia
b) Náuseas
c) Vômitos
d) Dor de cabeça
e) Fotofobia
f) Palidez
5. Não há evidência de processos inflamatórios, anatômicos, metabólicos ou neoplásicos que possam explicar os sintomas
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No nosso próximo encontro continuarei a discutir as mais variadas nuances e os novos conhecimentos deste excitante problema que afeta um sem número de crianças e adolescentes em todo o globo terrestre.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Afecções Funcionais Gastrointestinais: Um Problema Emergente e de Alta Prevalência (7)

Afecções Funcionais Gastrointestinais em Escolares e Adolescentes (AFGs)

As AFGs nos escolares e adolescentes também são definidas como uma combinação variável de sintomas gastrointestinais crônicos e/ou recorrentes que não são explicados por anormalidades estruturais ou bioquímicas. O Comitê de experts (Gastroenterology 2006;130:1527-37) decidiu estabelecer os critérios diagnósticos para as crianças e adolescentes abrangendo entre os 4 e os 18 anos de idade. Além disso, também ficou decidido que continuariam a basear-se na classificação das AFGs tomando-se em conta as principais queixas relatadas pelos próprios pacientes e/ou seus familiares mais do que levar em consideração os órgãos afetados. Na verdade, os critérios foram desenhados para servirem de ferramentas diagnósticas, e o Comitê entendeu que a classificação baseada em sintomas seria de maior auxílio para o clínico. Esta assertiva mostrou-se particularmente útil no que se refere à dor abdominal de caráter funcional quando a opção diagnóstica da dor abdominal aventada pelo médico tiver sido incorporada somente após terem sido eliminadas as outras causas etiológicas relacionadas à dor abdominal.

Na Tabela abaixo estão discriminadas as AFGs consideradas pelo Comitê de experts:
A. Afecções Funcionais
A1. Vômitos e Aerofagia1- Síndrome da Ruminação do Adolescente
2- Síndrome dos Vômitos Cíclicos
3- Aerofagia

A2. Dor Abdominal Relacionada às AFGs1- Dispepsia Funcional
2- Síndrome do Intestino Irritável
3- Enxaqueca Abdominal
4- Dor Abdominal Funcional da Infância
5- Síndrome da Dor Abdominal na Infância

B. Constipação e Incontinência Fecal1- Constipação Funcional
2- Incontinência Fecal Não Retentora

A1. Vômitos e Aerofagia
1- Síndrome da Ruminação do Adolescente
A ruminação é mais freqüente em meninos do que em meninas. O diagnóstico se caracteriza pela repetidas regurgitações sem qualquer esforço, a nova deglutição e/ou a expulsão para o exterior dos alimentos, alguns minutos após a sua ingestão. Este comportamento costuma perdurar por cerca de uma hora e raramente ocorre à noite. As seguintes enfermidades devem ser descartadas através de investigação apropriada: refluxo gastro-esofágico, acalasia esofágica, gastropresia, bulemia nervosa e doenças anatômicas obstrutivas.

Geralmente, detecta-se uma anormalidade característica no estudo manométrico evidenciada por um aumento sincronizado da pressão, através de múltiplos canais, no intestino superior. Este fenômeno é atribuído a um aumento da pressão intra-abdominal gerada pela contração dos músculos esqueléticos da parede abdominal. Essas ondas pressóricas têm sido documentadas em 40 a 67% dos adolescentes que sofrem de ruminação, assim como também foi encontrado um moderado retardo no tempo de esvaziamento gástrico em 45% dos casos.

Em aproximadamente 1/3 dos casos de ruminação têm sido observados distúrbios psicológicos que incluem depressão, ansiedade, comportamento obsessivo-compulsivo e até mesmo outros problemas de ordem emocional.

Para a caracterização diagnóstica da Síndrome da Ruminação do Adolescente devem ser incluídas todas as seguintes manifestações:

1- Repetidas regurgitações indolores e nova deglutição ou expulsão do alimento que:
a- se inicia logo após a ingestão da comida
b- não ocorre durante o sono
c- não responde aos tratamentos rotineiros para o refluxo gastro-esofágico
2- Não ocorrem náuseas
3- Não há evidencias da existência de doenças inflamatórias, anatômicas, metabólicas ou neoplásicas que possam justificar as manifestações clínicas.

2- Síndrome dos Vômitos Cíclicos
Muito embora esta síndrome também esteja presente em escolares e adolescentes, ela já foi profundamente discutida em seção anterior na qual nos referimos aos lactentes e pré-escolares, e não há quaisquer diferenças dignas de nota para serem aqui expandidas.

Para a caracterização diagnóstica da Síndrome dos Vômitos Cíclicos devem ser incluídas todas as seguintes manifestações:
1- Dois ou mais episódios de náuseas intensas associados a vômitos repetidos ou ânsias que perduram durante horas a dias.
2- Há um retorno ao estado usual de saúde o qual perdura por semanas ou meses.

3- Aerofagia
Aerofagia tem sido observada em aproximadamente 9% da população institucionalizada por problemas de deficiências mentais.

Em geral, o ar é deglutido de forma não perceptível pelos pacientes e familiares e deve ser objetivamente verificado pelo médico. A excessiva deglutição de ar é freqüentemente causada pela ansiedade e pode vir acompanhada de uma crise de asma. Em virtude da concomitante distensão abdominal, a aerofagia com freqüência é confundida com outras anormalidades da motilidade, tais como a síndrome da pseudo-obstrução e síndromes digestivo-absortivas. Nos pacientes que sofrem de aerofagia, a distensão abdominal regride ou desaparece durante o sono. Os testes do Hidrogênio no ar expirado podem ser utilizados para descartar a existência de má absorção aos carboidratos e/ou a síndrome do sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado.

É essencial que se explique aos familiares e aos pacientes a origem do problema para que estes se tranqüilizem. Deve-se também recomendar aos pacientes que comam vagarosamente, evitem mascar gomas ou beber líquidos gaseificados, além de oferecer técnicas psicoterapêuticas para diminuir a ansiedade.

Para a caracterização diagnóstica da Aerofagia devem ser incluídas todas as seguintes manifestações:

1. Deglutição de ar
2. Distensão abdominal devido à presença de ar intraluminal
3. Eructações recorrentes e/ou aumento na eliminação de gases.

No nosso próximo encontro continuarei a discutir as mais variadas nuances e os novos conhecimentos deste excitante problema que afeta um sem número de crianças e adolescentes em todo o globo terrestre.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Afecções Funcionais Gastrointestinais: Um Problema Emergente e de Alta Prevalência (6)

Distúrbios da Evacuação

A freqüência das evacuações nos lactentes e pré-escolares sadios tende a diminuir à medida que as crianças avançam na idade. Lactentes que recebem aleitamento natural chegam a evacuar até 12 vezes ao dia ou podem mesmo evacuar apenas 1 vez por semana. Por outro lado, lactentes que recebem aleitamento artificial à base de fórmulas tendem a eliminar fezes mais firmes desde as primeiras semanas de vida. Em particular, esses lactentes podem sofrer dor para evacuar e, em conseqüência, passam a apresentar predisposição para desenvolver constipação funcional.

Usualmente, ocorre um declínio na freqüência das evacuações, a qual em média é de 4 vezes por dia na primeira semana para 1 a 2 vezes por dia até o quarto ano de vida. Aproximadamente 97% das crianças entre 1 e 4 anos de vida evacuam de 3 vezes diariamente a 1 vez em dias intercalados. É importante enfatizar que não é possível acelerar a aquisição dos controles esfincterianos vesical e intestinal por meio da realização de um treinamento intensivo. A iniciativa demonstrada pela própria criança do desejo de se livrar das fraldas é um indicativo importante de que ela já se encontra em condições de receber o treinamento apropriado. A maioria das crianças alcança o controle voluntário parcial da evacuação ao redor dos 18 meses de vida, porém a idade em que este controle torna-se completo varia consideravelmente. É bem conhecido que aos 4 anos de idade 98% das crianças detém o controle esfincteriano voluntariamente.

As preocupações relacionadas aos problemas da evacuação são responsáveis por aproximadamente 25% das consultas ambulatoriais ao gastroenterologista pediátrico, e disto passaremos a nos ocupar a seguir.

1- Disquezia do Lactente
A disquezia se caracteriza pelo relato dos familiares dos lactentes quando estes últimos apresentam dificuldades para evacuar. Nestas circunstâncias o lactente faz um grande esforço para evacuar durante longos minutos, com choro intenso, irritabilidade e rubor facial devido ao esforço. Os sintomas costumam persistir durante cerca de 10 a 20 minutos até que venha a ocorrer a eliminação de fezes pastosas e às vezes mesmo fezes líquidas. Estes sintomas são o prenúncio de que mais adiante surgirão os sintomas clássicos da Síndrome do Intestino Irritável. Os sintomas se iniciam nas primeiras semanas de vida e desaparecem espontaneamente depois de algumas semanas.

O médico deve obter uma história clínica detalhada, analisar o gráfico de crescimento pondero-estatural e realizar um exame clínico que inclui toque retal (na presença dos familiares) para descartar anormalidades ano-retais.


Os critérios diagnósticos para a “Disquezia do Lactente” devem incluir todos os seguintes sintomas nos lactentes desde o nascimento até os 6 meses de idade:
1. Pelo menos 10 minutos de grande esforço para evacuar associado a choro intenso antes da evacuação.
2. O lactente não deve apresentar nenhum outro problema de saúde.

2- Constipação Funcional
Constipação é uma queixa principal em cerca de 3% das consultas em Pediatria, e aproximadamente 40% das crianças desenvolvem o problema durante o primeiro ano de vida. Admite-se que a dor para evacuar seja uma razão primordial para o surgimento do comportamento de retenção das fezes. A identificação de uma massa fecal palpável nos flancos antes da evacuação representa um aspecto característico da constipação funcional. A defecação dolorosa de um bolo fecal geralmente acarreta uma resistência para a criança evacuar e isto leva a um círculo vicioso de difícil solução.

O diagnóstico da constipação funcional deve ser estabelecido pela história clínica e pelo exame físico. A rigor, pouca ou nenhuma investigação laboratorial é necessária ou desejável para se estabelecer o diagnóstico. A instalação dos sintomas freqüentemente surge durante 1 de 3 períodos da vida, a saber: (1) na fase de lactente, com o surgimento de fezes endurecidas, geralmente no momento que corresponde à transição do aleitamento natural para a introdução de fórmulas comerciais e/ou a introdução de dieta sólida; (2) na idade pré-escolar durante a fase do treinamento esfincteriano, quando o lactente está tentando controlar suas evacuações e eventualmente pode apresentar dor ao evacuar; (3) quando a criança tem que ir para a escola e por questões variadas evita evacuar durante todo o dia. As crianças que apresentam comportamento de retenção usualmente assumem posições e atitudes que dificultam a ação fisiológica da evacuação, tais como permanecer na posição ereta, agarrar-se a alguma mobília, cruzar as pernas, ou mesmo esconder-se em algum canto do ambiente doméstico.

Em algum momento durante a vigência da constipação pode vir a ocorrer escape fecal e como as fezes que são eliminadas pelo escape geralmente são líquidas podem ser confundidas com um episódio de diarréia. O escape fecal ocorre quando o bolo fecal endurecido mantém contato com a mucosa e, por atrito, provoca uma secreção líquida que é eliminada quando o paciente inadvertidamente relaxa o esfíncter anal externo (durante o sono, devido ao cansaço ou na tentativa de eliminação de gases).

Ao exame físico geralmente é possível palpar o bolo fecal no flanco esquerdo na região que topograficamente corresponde ao colo descendente e ao sigmóide. O toque retal deve ser realizado (na presença dos familiares) para confirmar o diagnóstico, porém, sempre após o estabelecimento de uma relação de boa intimidade e confiança com o paciente, para evitar uma reação negativa de medo ou constrangimento.

Os sintomas se devem ao esforço voluntário da criança para evitar a evacuação. A dor abdominal ocorre em virtude das contrações colônicas normais, que impulsionam o conteúdo luminar em sentido distal e o qual se choca com o esfíncter anal externo contraído (músculo voluntário).

Os critérios diagnósticos para a “Constipação Funcional” devem incluir todos os seguintes sintomas nos lactentes até os 4 anos de idade:
1. Duas ou menos evacuações por semana
2. Pelo menos um episódio de escape fecal por semana
3. História de retenção excessiva de fezes
4. História de dor para evacuar e fezes endurecidas
5. Presença de bolo fecal palpável no reto
6. História de fezes de grande calibre que chegam a obstruir o vaso sanitário.

No nosso próximo encontro continuarei a discutir as mais variadas nuances e os novos conhecimentos deste excitante problema que afeta um sem número de crianças em todo o globo terrestre.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Afecções Funcionais Gastrointestinais: Um Problema Emergente e de Alta Prevalência (5)

Critérios Diagnósticos das AFGs
É necessário enfatizar que as AFGs não têm porque oferecer riscos à saúde dos pacientes sempre e quando os sintomas relatados pelos familiares são suficientemente bem explicados de tal forma a possibilitar ao médico a compreensão do problema. Isto possibilitará que o médico, por sua vez, elucide os familiares a respeito da ausência de efeitos adversos das manifestações clínicas. Por outro lado, caso venha a ocorrer equívoco diagnóstico, este ato, automaticamente, será acompanhado de tratamento inapropriado, posto que são sintomas meramente funcionais, o que poderá ser causa de sofrimento físico e emocional perfeitamente evitáveis. Por estas razões, segue adiante a discriminação dos elementos fundamentais que compõe os critérios diagnósticos de cada uma das AFGs.

1- Regurgitação Fisiológica do Lactente
A regurgitação do conteúdo gástrico para o esôfago e a boca é um fenômeno bastante freqüente entre os lactentes. A regurgitação em um lactente com aparência normal deve ser encarada como uma questão do desenvolvimento e não como uma enfermidade. A regurgitação se caracteriza pelo retorno involuntário do alimento previamente ingerido até a boca ou mesmo para o exterior. A regurgitação deve ser diferenciada do vômito, o qual é definido como um reflexo do sistema nervoso central envolvendo tanto os músculos lisos (involuntários) como os estriados (voluntários) onde o conteúdo gástrico é expelido forçadamente através da boca devido a movimentos coordenados que envolvem o intestino delgado, o estômago, o esôfago e o diafragma.

Para a caracterização do Refluxo Gastro-esofágico Fisiológico devem estar incluídos todos os seguintes sintomas que se apresentam em um lactente aparentemente normal entre as 3 semanas e 1 ano de vida:

1. Regurgitação de 2 ou mais vezes por dia por pelo menos 3 semanas.
2. Ausência de náuseas, hematêmese, aspiração, apnéia, déficit de ganho ponderal, dificuldades para se alimentar ou para deglutir o alimento, ou postura anômala.

2- Síndrome da Ruminação
Trata-se de uma afecção rara caracterizada pela regurgitação voluntária do conteúdo gástrico para a boca por estímulo próprio. A ruminação é a regurgitação dos alimentos recentemente deglutidos, os quais são remastigados, e que tanto podem ser deglutidos novamente como expelidos para o exterior. Embora a ruminação se enquadre como uma AFG, ela reflete uma afecção psiquiátrica causada por deprivação social.

Para a caracterização da Síndrome da Ruminação devem estar incluídos todos os seguintes sintomas que se apresentam durante pelo menos 3 meses:

1. Contrações repetitivas dos músculos abdominais, diafragma e da língua.
2. Regurgitação do conteúdo gástrico para a boca, o qual é mastigado novamente e que pode ser deglutido ou expelido para o exterior.
3. Deve estar acompanhada de 3 ou mais características, tais como:
a. início entre 3 e 8 meses
b. mostrar-se resistente ao manejo terapêutico para a doença do refluxo gastro-esofágico, ao emprego de drogas anticolinérgicas, mudanças de fórmulas alimentares e alimentação por sonda naso-gástrica
c. não estar associada a sinais de náusea ou estresse
d. não ocorrer durante o sono ou quando a criança está interagindo com outras pessoas
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3- Síndrome dos Vômitos Cíclicos
A síndrome dos vômitos cíclicos (SVC) consiste na ocorrência de episódios recorrentes e estereotipados de náuseas intensas e vômitos que perduram horas ou dias e que são separados por intervalos isentos de sintomas que podem durar semanas ou meses. A freqüência dos vômitos pode variar de 1 a 70 episódios por ano e em média alcançam 12 episódios por ano. As crises podem ocorrer tanto em intervalos regulares como esporadicamente. Tipicamente, os episódios costumam ter início no mesmo período do dia, mais comumente durante a noite ou pela manhã, e a duração dos mesmos em geral obedece uma constante em um determinado paciente. A SVC atinge sua maior intensidade durante as primeiras horas de cada crise e os vômitos tendem a diminuir em freqüência e intensidade logo após este período de tempo, muito embora as náuseas continuem a estar presentes até o final de um determinado episódio. Os episódios tendem a se findar tão rapidamente quanto ao seu começo e são marcados por uma pronta recuperação do bem estar clínico, desde que o paciente não tenha sofrido perdas hidro-eletrolíticas significativas. Os principais sinais e sintomas que acompanham as crises de vômitos incluem: palidez, fraqueza, salivação excessiva, dor abdominal, intolerância aos ruídos, à luz e a odores, dor de cabeça, fezes amolecidas, febre, taquicardia, hipertensão e leucocitose. Cerca de 80% dos pacientes conseguem identificar as circunstâncias ou eventos que desencadearam os ataques, tais como alterações do estado emocional, infecções, asma ou exaustão física.

Para a caracterização da SVC devem estar incluídos todos os seguintes sintomas, a saber:

1. Dois ou mais episódios de náuseas intensas e vômitos incoercíveis durando horas ou dias.
2. Retorno ao estado clínico usual de saúde que perdura durante semanas a meses.

4- Cólica do Lactente
O termo “cólica” implica em dor abdominal causada por obstrução do fluxo envolvendo os rins, a vesícula biliar ou o intestino. Por outro lado, a denominação “cólica do lactente” é atribuída a uma síndrome comportamental que afeta o lactente de tenra idade cuja manifestação se dá por longas crises de choro aparentemente devidas à dor abdominal. A “cólica do lactente” foi definida no passado como paroxismos de irritabilidade, mal estar e/ou crises de choro que perduram por mais de 3 horas por dia e que costumam ocorrer mais de 3 dias por semana. Embora até o presente momento não tenha sido possível comprovar que a “cólica do lactente” seja causada por uma dor abdominal ou mesmo em qualquer outra parte do corpo, os pais, geralmente, assumem que a causa do choro excessivo se deve a dor abdominal de origem gastrointestinal.

É necessária a familiaridade com a “cólica do lactente” para que se evite diagnóstico e tratamento equivocados. Embora as crises de choro possam se dever à dor causada por um processo inflamatório naqueles lactentes que apresentam hipersensibilidade às proteínas das fórmulas lácteas é importante enfatizar que, por definição, a “cólica do lactente” não é causada por uma enfermidade orgânica. Os episódios de “cólica” começam e terminam subitamente sem que alguma causa lógica esteja agindo e geralmente soem acontecer ao anoitecer. As crises de choro tendem a desaparecer espontaneamente por volta dos 3 a 4 meses de idade, sendo que na média o pico destas crises é alcançado ao redor das 6 semanas e costumam diminuir por volta das 12 semanas de vida. Provavelmente, a “cólica do lactente” representa o limite superior da “curva de choro” de um lactente normal. A cólica significaria, portanto, “alguma coisa que o lactente externa, muito mais do que uma condição patológica que ele possui”.

Para a caracterização da “Cólica do Lactente” devem estar incluídos todos os seguintes sintomas nos lactentes desde o nascimento até os 4 meses de idade, a saber:

1. Paroxismos de irritabilidade, desconforto ou choro que se iniciam e se findam sem que exista alguma causa óbvia.
2. Os episódios geralmente duram 3 ou mais horas por dia e devem ocorrer pelo menos 3 vezes por dia durante pelo menos 1 semana.
3. Não pode ocorrer déficit do ganho pondero-estatural.

5- Diarréia Funcional

A diarréia funcional é definida como a evacuação indolor, diária de 3 ou mais episódios de fezes mal formadas, por 4 ou mais semanas com início durante o período de lactente evoluindo até a idade pré-escolar. Não há evidencias de déficit pondero-estatural caso a dieta seja adequada quanto à oferta protéico-calórica. A criança se mostra ativa e não apresenta qualquer perturbação do seu estado clínico em decorrência da eliminação de fezes amolecidas, e os sintomas desaparecem espontaneamente quando a criança chega à idade escolar.

Para a caracterização da Diarréia Funcional devem estar incluídos todos os seguintes sintomas nos lactentes desde os 6 meses até os 4 anos de idade, a saber:

1. Eliminação indolor, diária de 3 ou mais episódios de fezes mal formadas.
2. Sintomas perduram por mais de 4 semanas.
3. Início dos sintomas ocorrem a partir dos 6 meses e se estendem até os 36 meses de vida.
4. As evacuações ocorrem durante o período do dia que a criança está em estado alerta.
5. Não ocorre déficit pondero-estatural caso a ingestão alimentar seja adequada quanto à composição protéico-calórica.

Observação: o que o grupo de experts denomina Diarréia Funcional, na minha experiência representa uma das diversas formas de manifestação clínica da Síndrome do Intestino Irritável. Para informações mais detalhadas sugiro a leitura dos capítulos a respeito da Síndrome do Intestino Irritável, os quais estão disponíveis neste blog em datas anteriores.

No nosso próximo encontro continuarei a discutir as mais variadas nuances e os novos conhecimentos deste excitante problema que afeta um sem número de crianças em todo o globo terrestre.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Afecções Funcionais Gastrointestinais: Um Problema Emergente e de Alta Prevalência (4)

Os Critérios de Roma III para o Diagnóstico das Afecções Funcionais Gastrointestinais (AFGs): um grande avanço na melhor compreensão de uma séria preocupação familiar

A Fundação Roma tem como missão estabelecer metas que visem “melhorar a qualidade de vida das pessoas que sofrem de alguma das diversas AFGs”. Essas metas estão dirigidas para “promover o reconhecimento e legitimação das AFGs, bem como desenvolver uma compreensão científica dos seus mecanismos fisiopatológicos e, além disso, proporcionar um tratamento adequado”.

Em 1997 sete gastroenterologistas pediátricos se reuniram em Roma para elaborar o primeiro grupo de critérios baseados em sintomas para o diagnóstico das AFGs em Pediatria e que recebeu a designação dos critérios de Roma II (Gut 1999;45 (Suppl II):I160-68). Vale à pena ressaltar que os critérios de Roma I apenas se restringiram aos aspectos das AFGs em adultos. Sete anos mais tarde, portanto em 2004, foram criados dois grupos de trabalho para revisar os critérios diagnósticos das AFGs em Pediatria. Estes dois grupos de trabalho tiveram por missão, baseados nas pesquisas publicadas nos anos precedentes, melhorar e ampliar os critérios inicialmente propostos. Este encontro resultou na elaboração de dois tipos de critérios diagnósticos para as AFGs, de acordo com o grupo etário pediátrico, assim distribuídos: 1- Lactentes e Pré-escolares (Gastroenterology 2006;130:1519-26) e 2- Escolares e Adolescentes (Gastroenterology 2006;130:1527-37), os quais passarei a descrever e discutir.
As AFGs nos lactentes incluem uma combinação variada de sintomas que geralmente são dependentes da idade, tem a característica de serem crônicas ou recorrentes, e que não são explicáveis por anormalidades estruturais nem tampouco bioquímicas. Estes sintomas durante toda a infância, na imensa maioria das vezes (salvo não ocorra ação iatrogênica), não afetam o crescimento e o desenvolvimento (por exemplo, regurgitação fisiológica do lactente devido à imaturidade do esfíncter esofágico inferior), ou podem surgir como resposta conseqüente a uma má adaptação comportamental de um estímulo interno ou externo (por exemplo, constipação funcional, retenção de fezes desencadeada por defecação dolorosa).

A expressão clínica das AFGs depende do estágio de desenvolvimento autonômico, afetivo e intelectual do indivíduo e concomitantemente com algum distúrbio orgânico ou psicológico. Para exemplificar de uma maneira mais objetiva, tomemos o caso da regurgitação fisiológica do lactente como uma expressão de um sintoma funcional, a qual é um problema transitório que perdura alguns meses durante o primeiro ano de vida, mas que causa grandes preocupações nos pais. Trata-se, aqui, simplesmente da imaturidade do esfíncter esofágico inferior, não havendo quaisquer anormalidades detectáveis, sejam estruturais e/ou bioquímicas. Outro exemplo característico diz respeito à diarréia da Síndrome do Intestino Irritável, a qual costuma instalar-se a partir do sexto mês de vida e que avança de forma recorrente até a idade pré-escolar, sem causar qualquer agravo nutricional, caso não ocorra ação iatrogênica.

A decisão dos familiares de buscar atenção médica em decorrência dos sintomas apresentados é condicionada pelo grau de preocupação dos mesmos para com seu filho. O limiar de preocupação dos familiares varia dependendo das experiências prévias e expectativas, do grau da capacidade de superação do problema e também da idéia de percepção de doença. Por esta razão, a consulta ao médico, neste caso não se trata somente de um sintoma que a criança apresenta, mas tão importante quanto, trata-se do receio dos familiares em relação ao risco de gravidade que os sintomas podem causar. Portanto, o médico deve além de estabelecer o diagnóstico correto também reconhecer a potencial extensão do impacto emocional que os sintomas acarretam na esfera familiar. Desta forma, toda conduta planejada tem necessariamente que atender aos anseios de ambos, criança e familiares.

O manejo terapêutico eficaz do problema depende da garantia do estabelecimento de uma aliança confiável entre o médico e os familiares. Como é do conhecimento geral, durante os primeiros anos de vida a criança não consegue, de forma acurada, relatar seus sintomas, sejam eles náuseas ou dor. O lactente e o pré-escolar não são capazes de discriminar entre um desconforto físico ou emocional. Assim sendo, o médico depende dos relatos e das interpretações dos familiares, posto que estes supostamente são aqueles que melhor conhecem as reações dos seus filhos, aliados das suas vivências como profissional da saúde, para diferenciar entre o estado de saúde e o da doença.

O grupo de trabalho constituído por experts, internacionalmente reconhecidos na área, propôs a seguinte classificação para as AFGs no lactente e no pré-escolar:
1- regurgitação fisiológica; 2- síndrome da ruminação do lactente; 3- síndrome dos vômitos cíclicos; 4- cólica do lactente; 5- diarréia funcional ou síndrome do intestino irritável; 6- disquezia do lactente (dificuldade para evacuar, fazendo grande esforço); 7- constipação funcional.
Para cada uma destas afecções acima listadas são propostos critérios diagnósticos e sobre os quais nos ocuparemos no nosso próximo encontro.