sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (6)

Manifestações Clínicas no Trato Digestivo das Alergias Alimentares

Esofagite Eosinofílica e Gastroenterite Eosinofílica


Estas duas entidades alérgicas podem ser mediadas por IgE e também não mediadas por IgE, ou ainda por ambos os mecanismos imunológicos. Caracterizam-se por intensa infiltração de eosinófilos ao longo das mucosas do esôfago, estômago e intestino delgado, associada à hiperplasia da zona basal, alongamento das papilas, ausência de vasculite e eosinofilia periferia em até 50% dos casos (Figura 1).


Figura 1- Material de biópsia do intestino delgado de paciente portador de Gastroenteropatia Eosinofílica, evidenciando importante atrofia vilositária e intenso infiltrado linfo-plasmocitário e eosinofílico na lâmina própria.


Esofagite Eosinofílica
é mais frequentemente observada em escolares e adolescentes e tipicamente se apresenta com sintomas de refluxo gastro-esofágico, como por exemplo, náusea, disfagia, vômitos e dor epigástrica.

Gastroenterite Eosinofílica pode ocorrer em qualquer idade, inclusive em lactentes, particularmente nestes últimos a manifestação clínica pode ser de estenose hipertrófica do piloro, com vômitos intensos. Perda de peso ou ganho pondero-estatural insuficiente é uma característica marcante dessa entidade clínica. Na dependência da extensão e da localização do envolvimento do processo inflamatório, o paciente pode apresentar dor abdominal, vômitos, diarréia, sagramento intestinal, anemia ferropriva e até mesmo enteropatia perdedora de proteínas, levando a edema dos membros inferiores devido à hipoalbuminemia (Figura 2).

Figura 2- Paciente portador de Gastroenteopatia Eosinofílica com enteropatia perdedora de proteínas; notar discreto edema tibial biteral devido à hipoalbuminemia.


Colite Alérgica (Para uma análise mais completa vide capítulo específico sobre Colite Alérgica publicado anteriormente)


A manifestação clínica mais intensa e exuberante é a diarréia sanguinolenta associada a cólicas, as quais estão presentes em cêrca de 90% dos pacientes. Geralmente os sintomas apresentam-se de início insidioso instalando-se na imensa maioria dos casos nos primeiros 6 mêses de vida, mais particularmente ainda nos primeiros 3 mêses. O sangue costuma ser "vivo" misturado às fezes, e, em algumas circunstâncias pode haver apenas sangramento retal em decorrência do processo inflamatório que afeta a mucosa colônica, tratando-se, portanto, de uma lesão interna. O sangramento costuma ser intermitente e de escassa quantidade; somente em raras situações pode haver perda importante de sangue, acarretando anemia aguda. Em alguns casos, especialmente quando o lactente está recebendo aleitamento natural o sangramento pode não ser visível a "olho nú", e isto é o que se denomina sagramento "oculto", o qual é detectado através de método bioquímico em fezes recém eliminadas.

Regurgitação e vômitos também podem estar presentes com frequência muito variável entre 20 e 100% dos pacientes, o que pode ser um fator de interpretação equivocada da Doença do Refluxo Gastroesofágico. Na maioria das vezes não há uma clara percepção do agravo do crescimento pondero-estatural, porém, ao se instituir o tratamento correto nota-se nitidamente a ocorrência de uma rápida recuperação nutricional, com ganho pondero-estatural acelerado (Figuras 3 e 4).

Figura 3- Paciente portadora de Colite Alérgica ao leite de vaca e à soja por ocasião do diagnóstico.

Figura 4- A mesma paciente da figura anterior após a recuperação clínica e nutricional.

À colonoscopia a mucosa colônica encontra-se hiperemiada, friável com sangramento espontâneo à passagem do colonoscópio, podendo-se também observar pequenas ulcerações na mucosa (Figura 5). À microscopia óptica observa-se solução de continuidade do epitélio colônico, intenso aumento do infiltrado linfo-plansmocitário e eosinofilico na lâmina própria, diminuição do conteúdo de muco das glândulas crípticas e inclusive até mesmo presença de abscesso críptico (presença de polimorfonucleares no interior da glândula críptica) (Figuras 6 & 7). Após a cura há completa regeneração da mucosa colônica (Figura 8).

Figura 5- Visão da colonoscopia de paciente portadora de Colite Alérgica evidenciando hiperemia e fragilidade da mucosa associada a ulcerações da mesma.


Figura 6- Material de biópsia do reto da paciente portadora de Colite Alérgica evidenciando solução de continuidade do epitélio superficial, intenso infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria, diminuição da quantidade de muco nas glândulas crípticas e presença de abscesso críptico no interior da glândula.
Figura 7- Material de biópsia do reto de paciente portador de Colite Alérgica evidenciando intensa infiltração eosinofílica no epitélio, lâmina própria e nas glândulas crípticas.

Figura 8- Material de biópsia do reto de paciente portador de Colite Alérgica em fase de recuperação; houve regeneração do epitélio, infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria discreto e presença normal de muco nas glândulas crípticas.

No nosso próximo encontro continuaremos a descrever as manifestações digestivas das Alergias Alimentares.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (5)

Alergenos Alimentares

A diversidade alimentar do ser humano nas mais variadas culturas é vastíssima, mas, na verdade apenas um número relativamente pequeno de alimentos é responsável pela ocorrência de Alergias Alimentares no nosso universo.

A sensibilização pelos alergenos alimentares pode acontecer basicamente de 2 formas, a saber: 1- pelo Trato Gastrointestinal, considerada tradicional ou Classe 1 de Alergia Alimentar; 2- por Inalação, denominada de Alergia Alimentar Classe 2.

Os alergenos Classe 1 mais freqüentemente descritos como causadores de Alergia Alimentar nas crianças são o leite, soja, ovo, e, nos EUA, o amendoim, enquanto que nos adultos os alergenos alimentares que mais comumente causam reações alérgicas são o amendoim, castanhas, peixes e frutos do mar.
A maioria dos alergenos alimentares Classe 1 são glicoproteínas solúveis em água com peso molecular que varia entre 10 e 70 kilodaltons, e são razoavelmente estáveis ao aquecimento, desnaturação ácida e ação das proteases.

Por outro lado, é importante ressaltar que proteínas vegetais têm sido cada vez mais caracterizadas como alergenos alimentares e cuja composição aparentemente se assemelha à dos alergenos animais. A maioria dos alergenos de origem vegetal, descritos até o presente, podem ser enquadrados em 2 grandes grupos, de acordo com suas funções na própria planta, a saber:

1- Proteínas de Defesa (incluídas as denominadas proteínas PR ou “proteínas relacionadas à patogenicidade”), as quais estão envolvidas em mecanismos de auto-proteção contra pragas, vírus e parasitas. Estas proteínas também são produzidas como respostas às agressões ambientais e conseqüentemente podem estar presentes em quantidades variáveis dentro de uma mesma espécie de fruta ou vegetal. As profilinas, que tem um papel fundamental na regulação da polimerização dos filamentos de actina e correspondem à maior porção dos alergenos Classe 2, são altamente preservadas em todo o reino vegetal e freqüentemente apresentam uma reação cruzada entre o pólen e o alimento. Os pacientes com freqüência tornam-se sensibilizados ao pólen inalado e, em virtude das reatividades cruzadas com as profilinas das frutas ou vegetais, apresentam sintomas orais e faríngeos após a ingestão da fruta crua ou do vegetal, o que é denominado de Alergia Alimentar ao pólen ou Síndrome Alérgica Oral.
2- Proteínas de Estocagem, as quais se encontram acumuladas principalmente nas sementes maduras, e que são mobilizadas durante a germinação como fonte de Nitrogênio (amino-ácidos) e cadeias de Carbono para o embrião e a nova planta, nos momentos iniciais do desenvolvimento da mesma. Neste grupo estão incluídas as superfamílias das prolaminas e das cupinas.
A superfamília das prolaminas inclui as proteínas majoritárias das farinhas de trigo (asma do padeiro), cevada e centeio, e a albumina 2S das leguminosas, frutos secos e especiarias. A superfamília das cupinas agrupa as proteínas tipo germinas, leguminas e vicilinas. Germinas alergênicas têm sido caracterizadas na laranja, pimenta e trigo. As leguminas são alergenos proeminentes no amendoim, soja e frutos secos (castanha do Pará e avelã). As vicilinas estão presentes nos frutos secos e em sementes como o sésamo.
Manifestações Clínicas no Trato Digestivo das Alergias Alimentares
As hipersensibilidades alimentares, como já anteriormente referidas, são deflagradas em indivíduos geneticamente susceptíveis, presumivelmente quando fracassa o desenvolvimento natural da tolerância oral ou quando este mecanismo sofre algum agravo importante. As reações alérgicas mediadas por IgE surgem quando anticorpos IgE alimentos-específicos residindo nos mastócitos e basófilos entram em contacto e se ligam aos alergenos alimentares circulantes e ativam as células para a liberação de potentes mediadores químicos e citoquinas. Na Tabela abaixo estão discriminadas as afecções digestivas causadas por Alergia Alimentar até o presente momento conhecidas e seus respectivos mecanismos imunológicos de ação.

Afecção -- ---------------------------Mecanismo de Ação

Síndrome Pólen-Alergia Alimentar -- mediada por IgE
(Síndrome Alérgica Oral)

Anafilaxia Gastrointestinal --------- mediada por IgE

Esofagite Eosinofílica -- -------------mediada por IgE e/ou celular

Gastrite Hemorrágica -- ------------mediada por IgE?

Gastroenteropatia eosinofílica -- ----mediada por IgE e/ou celular

Colite Alérgica -- -------------------mediada por células

Enteropatia Alérgica -- -------------mediada por células

Enteropatia Alérgica pós-gastroenterite -- mediada por células

Constipação -- ---------------------mediada por IgE e/ou células?


Síndrome Alérgica Oral

Esta afecção é causada por uma grande variedade de proteínas de plantas que apresentam reação cruzada com alergenos dispersos no meio ambiente, especialmente os polens liberados pelas seguintes plantas: Ambrosia, Bétula e Artemísia. Indivíduos alérgicos a Ambrosia podem apresentar alergia a melão e banana, aqueles que são alérgicos a grama podem desenvolver sintomas ao ingerir tomate cru, e indivíduos alérgicos ao pólen da Bétula podem deflagrar sintomas depois da ingestão de alimentos crus tais como cenouras, maçãs, peras e kiwi. Tendo em vista que os alergenos responsáveis por essas reações são facilmente destruídos pelo calor e pelos ácidos gástricos, na maioria dos pacientes, as manifestações de alergia permanecem circunscritas às mucosas orais e faríngeas (Sampson H., J Allergy Clin Immunol 2004: 113: 805-19).

Anafilaxia Gastrointestinal

Esta é uma manifestação que se apresenta tipicamente de forma aguda com náuseas, dor abdominal em cólica e vômitos; pode ocorrer também o surgimento, em forma concomitante, de manifestações sintomáticas em outro órgão alvo.

Constipação
Muito embora desde longa data haja referência da associação de constipação e alergia ao leite de vaca, mais recentemente Iacono e cols. (J Pediatr 1995: 126: 34-9), em 1995, na Itália, trouxeram este tema de volta à literatura médica. Foram avaliadas 27 crianças menores de 3 anos que sofriam de constipação crônica funcional, as quais foram submetidas a uma dieta de exclusão de leite de vaca e derivados durante 1 mês. Neste período de tempo observou-se que houve aumento no número das evacuações, que estas ocorriam sem dor, houve eliminação de fezes pastosas, e, também, ocorreu cura das fissuras anais em 78% dos casos (21/27). O teste de desencadeamento realizado nas 21 crianças resultou positivo, ou seja, as crianças voltaram a sofrer de constipação em média 48 horas após a reintrodução do leite de vaca. Ao ser novamente retirado o leite de vaca da dieta destas crianças houve total normalização das evacuações. Posteriormente, em 1998, Iacono e cols. (N Engl J Med 1998: 339: 1100-4) estudaram 65 crianças menores de 6 anos de idade que sofriam de constipação crônica funcional e que não responderam ao tratamento com laxantes. Foram realizados dois testes de desencadeamento duplo-cego e 68% (44/65) dos pacientes revelaram-se alérgicos ao leite de vaca, apresentando normalização das evacuações quando submetidos à dieta isenta de leite de vaca e derivados.

Em 2001, Daher e cols. (Pediatr Allergy Immunol 2001: 12: 339-42), em São Paulo, na Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da Escola Paulista de Medicina, investigaram 25 crianças com idades que variaram de 3 meses a 11 anos que sofriam de constipação funcional e constataram que em 7 (28%) delas a constipação se resolveu quando o leite de vaca foi retirado da dieta por um período de 4 semanas, e, reapareceu dentro das primeiras 48-72 horas após a reintrodução do leite de vaca na dieta. Níveis elevados de IgE foram observados em 5 delas e que regrediram com a dieta de eliminação. Desta forma, alergia ao leite de vaca deve ser considerada naqueles casos de constipação refratários aos tratamentos habituais, muito embora o mecanismo fisiopatológico não esteja definitivamente elucidado.

Gastrite Hemorrágica

Trata-se de manifestação clínica bastante incomum e até 2003 tinham sido descritos apenas 10 casos na literatura médica. Entretanto, em 2003, Machado e cols. (Jornal de Pediatria 79: 80-1: 2003), em São Paulo, na Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da Escola Paulista de Medicina, descreveram mais 2 casos de gastrite hemorrágica, em crianças de 2 anos de idade que apresentavam desde os 2 meses hematêmese, vômitos e desnutrição. Submetidos à endoscopia digestiva alta observou-se em ambos os pacientes pangastrite erosiva hemorrágica e a biópsia gástrica revelou gastrite aguda ulcerada com intenso infiltrado eosinofílico (24,1 eosinófilos/campo de grande aumento). A biópsia duodenal evidenciou atrofia vilositária sub-total e a biópsia retal colite inespecífica. Após a eliminação de leite de vaca e derivados da dieta houve total regressão da sintomatologia e recuperação do estado nutricional.

No nosso próximo encontro continuaremos a apresentar as manifestações de Alergia Alimentar que acometem o trato digestivo.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (4)

Conceito da Barreira de Permeabilidade Intestinal: fatores imunológicos e dos enterócitos

Diferentemente do equipamento imunológico sistêmico, que em condições normais tem que se defrontar com quantidades relativamente pequenas de antígenos e desenvolver uma resposta inflamatória adequada, o sistema imunológico das mucosas, a intestinal é uma delas, vê-se face a face, diariamente, com enormes quantidades de antígenos e, da mesma forma, tem como missão suprimir a reatividade imunológica dos antígenos alimentares e dos microorganismos comensais. Mais ainda, este sistema imunológico é também dotado de uma competente capacidade protetora para responder a ataques de patógenos mais agressivos. Além das barreiras físicas e químicas anteriormente mencionadas, respostas imunológicas inatas (células “killer” naturais, leucócitos polimorfonucleares, macrófagos, células epiteliais, receptores especializados) e adaptativas (linfócitos presentes na lâmina própria e intra-epiteliais, placas de Peyer, IgA secretora e citoquinas) fornecem uma formidável barreira contra a penetração de antígenos do meio ambiente que nos circunda. Dentre todos os componentes do sistema imunológico a IgA secretora é a que se encontra presente nas mais altas concentrações nas secreções intestinais. A IgA secretora tem uma característica muito especial posto que ela é um dímero formado por 2 moléculas de IgA, a qual é produzida pelos plasmócitos na lâmina própria da mucosa intestinal e que se acopla com uma peça secretora produzida pelo enterócito, e, daí lançada na luz do intestino. Esta característica lhe confere estabilidade no meio físico-químico do lúmen intestinal, tornando-a resistente à ação das enzimas proteolíticas produzidas pelo pâncreas, conferindo, dessa maneira, um eficiente mecanismo de ação para evitar o transporte de antígenos desde a luz do intestino para a circulação sistêmica (Figura 1).

Figura 1- Representação esquemática da barreira da mucosa intestinal.
Além do sistema imunológico, a barreira de permeabilidade intestinal é também formada pelas próprias células epiteliais. Caso, por alguma razão, antígenos ou fragmentos de antígenos potencialmente alergênicos consigam aderir à superfície luminal dos enterócitos, estes serão interiorizados ao citoplasma por um mecanismo de endocitose (reverso da fagocitose); já agora no interior do citoplasma serão atacados e devidamente digeridos pelos lisosomas produzidos pelo aparelho de Golgi, perdendo, assim, sua capacidade de estímulo antigênico. Finalmente serão eliminados da célula no espaço baso lateral por um processo de exocitose (Figuras 2 - 3 & 4).

Figura 2- Representação esquemática dos mecanismos celulares de proteção da mucosa intestinal.

Figura 3- Representação esquemática do processo de degradação antigênica intracelular.

Figura 4- Material de biópsia do intestino delgado em microscopia eletrônica mostrando a formação de um corpo multivesicular, produto da ação degradativa lisosomal.

Entretanto, a imaturidade no desenvolvimento de vários destes componentes da barreira intestinal e do sistema imunológico nos lactentes reduz de forma significativa sua eficiência, tornando-a suscetível para a penetração de antígenos potencialmente alergênicos (proteínas do leite de vaca e da soja, por exemplo) (Figuras 5 & 6). Sabe-se que a atividade enzimática no período neonatal é sub-ótima, e o sistema da IgA secretora não se encontra totalmente maduro antes dos 4 anos de idade. Conseqüentemente, o estado de imaturidade da barreira mucosa joga um papel importante na prevalência de infecções entéricas e alergia alimentar observadas nos primeiros anos de vida.
Figura 5- Representação esquemática da imaturidade da barreira mucosa no recém-nascido.

Figura 6- Material de biópsia do intestino delgado em microscopia eletrônica mostrando na figura superior duas células intestinais adjacentes submetidas à perfusão com o marcador macromolecular Horseradish peroxidase representado pela imagem enegrecida confinada à região das microvilosidades (V), L mostra o lumen intestinal. Observar o espaço intercelular (seta) totalmente preservado e a mitocôndria (M) intacta. Na figura inferior resultante da perfusão com sais biliares secundários observa-se que o marcador macromolecular provoca uma ruptura no poro intercelular e a imagem enegrecida estende-se ao longo de todo o espaço intercelular (seta). No detalhe podem ser observadas alterações importantes nas organelas com inchaço e degeneração da mitocôndria (M) e do aparelho de Golgi (G).
Papel do Colostro

Como foi acima mencionado, recém-nascidos e lactentes nos primeiros meses de vida são desprovidos de muitos dos fatores fisiológicos de proteção oferecidos pela barreira de permeabilidade intestinal para enfrentar o meio ambiente da vida extra-uterina. Afortunadamente, a “natureza” ofereceu um excelente substituto para proteger o lactente vulnerável durante este período crítico da existência. Este substituto, o leite humano, contém inúmeros fatores que compensam de sobra a imaturidade do organismo do lactente, e, ao mesmo tempo, estimula a maturidade do intestino para tornar-se funcionalmente independente. Tem sido largamente demonstrado que a ingestão do colostro favorece a maturação dos enterócitos, aumenta a capacidade absortiva e também acelera o desenvolvimento da barreira de permeabilidade. Além disso, o colostro tem uma ação potencializadora na produção das enzimas das microvilosidades, possui um fator de crescimento da mucosa, favorece a colonização intestinal por lactobacilos bífidos e acidófilos, oferece lactoferrina, e, mais ainda, contém uma alta concentração de IgA secretora, a qual vai proporcionar uma proteção passiva para a superfície intestinal ao longo do processo natural de maturação do intestino do lactente.

No nosso próximo encontro iniciaremos a discussão dos aspectos fiopatológicos e clínicos deste fascinante e dasafiador tema que é a Alergia Alimentar.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (3)

Conceito da Barreira de Permeabilidade Intestinal
O trato gastrointestinal representa uma extensa barreira física ao ambiente exterior com o objetivo de proteger nosso organismo das potenciais agressões físicas e químicas, representadas por eventuais produtos nocivos dos alimentos, dos agentes patogênicos existentes na natureza e mesmo dos simbióticos microorganismos que naturalmente nos colonizam desde a boca até o reto e com os quais obrigatoriamente de forma cotidiana convivemos. Concomitantemente, associado a esta barreira física, o sistema imunológico, por meio do tecido linfóide intestinal, funciona também como mais um fator de proteção, possuindo a capacidade de discriminar proteínas estranhas, ou microorganismos comensais, ou perigosos agentes enteropatogênicos.

Além disso, o trato gastrointestinal nos fornece também uma formidável superfície absortiva equivalente em área ao tamanho de uma quadra de tênis (aproximadamente 200 m²), para que normalmente possam ocorrer os processos digestivo-absortivos, os quais são essenciais para a preservação do estado nutricional e, conseqüentemente, a manutenção da vida (Figuras 1 & 2).
Figura 1- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum apresentando morfologia normal. As vilosidades são digitiformes e representam uma relação vilosidade:cripta 5/1. As células epiteliais são cilíndricas com núcleo em posição basal e o infiltrado linfo-plasmocitário encontra-se dentro dos limites da normalidade.

Figura 2- Vilosidade individualizada em aumento maior com aspecto digitiforme. As células epiteliais (enterócitos) são cilíndricas com núcleo em posição basal e se assentam na membrana basal. Células califormes produtoras de muco podem ser observadas ao longo das vilosidades (células esbranquiçadas arredondadas).
A barreira de permeabilidade intestinal (Figura 3) constitui uma importante adaptação do trato digestivo ao meio ambiente extra-uterino (no interior do útero o feto se desenvolve em um meio totalmente estéril protegido pelo líquido aminiótico, o qual é envolvido pela bolsa aminiótica) contra a penetração de antígenos e fragmentos antigênicos usualmente presentes no lúmen intestinal. Ao nascer, o recém-nascido necessita estar preparado para conviver com a colonização bacteriana do intestino, com a formação de subprodutos tóxicos pelas bactérias e vírus (enterotoxinas e endotoxinas) e com a ingestão de potenciais antígenos alimentares (proteínas do leite de vaca e da soja, por exemplo). Estas substâncias que são imunologicamente ativas se conseguirem romper a barreira da mucosa intestinal e, por conseguinte, penetrar na circulação sanguínea, podem causar reações inflamatórias ou alérgicas, as quais poderão resultar, por sua vez, em enfermidades gastrointestinais ou sistêmicas.

Figura 3- Exemplo gráfico de transporte de macromoléculas em situação normal e patológica, quando há fracasso de um ou mais mecanismos de constituição da barreira de permeabilidade intestinal.
A Tabela abaixo elenca os componentes da Barreira de Permeabilidade Intestinal contra a penetração de Antígenos

A- Não ImunológicosIntraluminaisAcides gástrica
Proteólise
Peristaltismo Intestinal

Superfície Mucosa
Cobertura de Muco
Membrana das Microvilosidades
Poros intercelulares

B- Imunológico
Sistema da IgA secretora

C- Combinação de fatores imunológicos e não ImunológicosFormação de imune-complexo mediado pelo muco
Proteólise na superfície mucosa facilitada pela formação de imune-complexo
Fagocitose pelas células de Kupffer dos imune-complexos formados

O ácido clorídrico produzido pelas células parietais da mucosa gástrica tem, entre outras finalidades, funcionar como a primeira potente barreira química contra as agressões de microorganismos patogênicos que por ventura venham a ser ingeridos pelo hospedeiro. Ao mesmo tempo também atua na primeira fase da digestão dos nutrientes, em especial as proteínas, formando complexos menores que irão ser mais facilmente digeridos pelas enzimas proteolíticas pancreáticas. O peristaltismo intestinal age como fator mecânico de depuração dos potenciais agentes tóxicos e/ou microorganismos patogênicos ingeridos com a alimentação.

A cobertura de muco (por meio da sua espessura e composição química) que se deposita sobre a superfície das microvilosidades intestinais contribui de forma especial contra a adesão e penetração de antígenos. O muco é produzido pelas células caliciformes, as quais se encontram intercaladas aos enterócitos ao longo de todas as vilosidades intestinais (Figura 4- 5 - 6 & 7). A espessura física da cobertura de muco sobre a superfície da mucosa intestinal pode se expandir na dependência do estímulo antigênico recebido, contribuindo, assim, como um fator de expulsão de parasitas e antígenos microbianos intestinais.
Figura 4- Ação protetora física e química da cobertura de muco sobre o epitélio intestinal.


Figura 5- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia eletrônica com estrutura preservada evidenciando a formação das microvilosidades no topo da imagem formando uma verdadeira paliçada. No interior do citoplasma podem ser observados alguns retículos endoplásmicos rugosos, mitocondrias e corpos multivesiculares.

Figura 6- Material de biópsia do intestino delgado em microscopia eletrônica destacando as microvilosidades em maior aumento e as micromiofibrilas que delas emergem e que dão suporte ao muco produzido pelas células califormes.

Figura 7- Material de biópsia do intestino delgado em microscopia eletrônica mostrando uma célula caliciforme produtora de muco.
Os poros intercelulares apresentam dimensões bem determinadas, e, de tal forma a permitirem a passagem apenas de água e pequenos íons, como por exemplo, sódio e cloro. Eles se constituem em um importante mecanismo fisiológico para absorção de água e eletrólitos, e, em condições normais, exceto nos primeiros meses de vida, não permitem a penetração de macromoléculas intactas (Figuras 7 & 8).

Figura 8- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia eletrônica mostrando duas células adjacentes com poro intercelular intacto e a presença de um desmosoma em botão que confere a limitação do tamanho do poro.

Figura 9- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia eletrônica mostrando ruptura discreta do poro intercelular. Notar a presença, em negro, de um marcador macromolecular (Horseradish peroxidase) ao longo do espaço interceluilar.
Em situações patológicas, como por exemplo, nas infecções entéricas por determinados agentes enteropatogênicos, a função seletiva destes poros intercelulares pode estar seriamente comprometida, e, portanto, passar a dar lugar para a penetração maciça de antígenos e levar ao surgimento de alergias alimentares (Figuras 9 & 10).
Figura 10- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum em grande aumento, corte semi-fino, mostrando colônias de Escherichia coli enteropatogênica firmemente aderidas à superfície mucosa provocando intensas alterações morfológicas no epitélio intestinal.


Figura 11- Esquema gráfico da sequência fisiopatológica da provocação de alergia alimentar devido à infecção por Escherichia coli enteropatogênica.
No nosso próximo encontro seguiremos na descrição dos outros componentes da barreira de permeabilidade intestinal, em especial, o sistema da IgA secretora.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (2)

Histórico

No passado, praticamente até meados do século XX, nas mais diversas formas de sociedades e culturas existentes (Figuras 1-2 e 3), salvo raríssimas exceções, as crianças eram rotineiramente amamentadas ao seio materno de forma exclusiva e por tempo prolongado.

Figura 1- Lactente de sociedade dita de "cultura primitiva" mamando com total naturalidade.


Figura 2- Lactente da sociedade dita "moderna" que recebeu aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado, seguindo, assim, um hábito cultural tradicional.


Figura 3- Lactente pertencente à família moradora da favela Cidadae Leonor cuja mãe se incorporou ao programa de promoção do aleitamento natural exclusivo e venceu mitos e tabus negativos em relação ao aleitamento natural.
Entretanto, como é do conhecimento geral, as mudanças ocasionadas pelo desenvolvimento tecnológico industrial, em meados do século XIX e definitivamente consolidado no século XX, entre as sociedades ditas “modernas”, nas quais as mulheres passaram a ocupar um espaço significativo no mercado de trabalho, associado ao amplo e contínuo desenvolvimento da indústria de alimentos, houve, em consequência, uma drástica redução na prática do aleitamento materno. Outros tipos de leite, distintos do materno, foram sendo, então, progressivamente introduzidos em idades cada vez mais precoces na alimentação dos lactentes; a partir dessa mudança de hábitos e costumes começaram a aflorar os problemas dessa nova prática nutricional e, assim, passaram a surgir as Alergias Alimentares em escala cada vez mais crescente.

Vale a pena lembrar que os efeitos adversos dos alimentos são reconhecidos desde épocas imemoriais. Hipócrates já havia observado, há 2.000 anos, que a ingestão de leite de vaca pode provocar problemas gastrointestinais e urticária, mas hipersensibilidade aos alimentos foi poucas vezes descrita até que Von Pirquet, em 1906, introduziu o conceito de Alergia. O primeiro caso de hipersensibilidade à proteína do leite de vaca (Alergia) foi descrito na literatura médica da Alemanha em 1901; nos EUA a primeira referência ao problema data de 1916, enquanto que na Inglaterra verifica-se apenas uma descrição de hipersensibilidade à proteína do leite de vaca (Alergia) antes de 1958.

Na busca de substitutos do leite de vaca, para o tratamento de crianças com sintomas de alergia, passaram a ser desenvolvidas fórmulas preparadas industrialmente a partir da proteína vegetal da soja, introduzidas em 1929, ainda que tal preparação já fosse conhecida e utilizada desde 1909, porém em pequena escala. Posteriormente, já na década de 1940, surgiram os preparados de hidrolizados de caseína e do soro leite como alternativa no tratamento das alergias alimentares múltiplas. Mais recentemente, no fim do século XX, passaram a ser elaboradas as fórmulas à base de mistura de amino-ácidos, as quais são praticamente desprovidas de quaisquer estímulos antigênicos. Elas são indicadas naqueles casos de comprovada intolerância aos hidrolizados protéicos.

Genética associada ao meio ambiente: fatores que contribuem para o surgimento de Alergia Alimentar

Atualmente, está bem estabelecido que há uma significativa contribuição genética para o surgimento de alergia e, mais ainda, que inúmeros genes tem sido identificados como responsáveis pelo aparecimento tanto de eczema quanto de asma. Mutações genéticas têm sido descritas em até 27% dos pacientes portadores de eczema grave e estas parecem conferir fatores de risco para a persistência da doença, sensibilização para alergias múltiplas, e aparecimento de asma associada ao eczema. A descoberta dessas mutações genéticas demonstra de forma inequívoca a importância do papel da ruptura da barreira de defesa da pele como fator primordial na patogênese do eczema e na sensibilização alérgica.

Por outro lado, a genética isoladamente não pode ser responsabilizada pelo significativo aumento da prevalência das doenças alérgicas, as quais tem sido caracterizadas cada vez mais frequentemente nestas últimas duas décadas. Este incremento da incidência das doenças alérgicas se deve muito provavelmente a uma íntima associação “genética-meio ambiente”. Este complexo “genética-meio ambiente” pode interagir durante a gravidez ou mesmo logo após o nascimento do ser humano, ainda nos primeiros meses de vida extra-uterina (Figura 4).


Figura 4- Esquema dos vários fatores envolvidos na gênese da Alergia Alimentar.

É interessante assinalar que, no caso dos pacientes portadores de eczema grave, foram encontrados auto-anticorpos circulantes dirigidos contra determinadas proteínas celulares. Este fato levou à especulação de que aquilo que se iniciou como um processo essencialmente alérgico sofreu uma evolução para tornar-se uma enfermidade autoimune. Daí a necessidade de se programar ações efetivas para prevenir a evolução da doença para a cronicidade.

A “Marcha da Alergia” nos lactentes de alto risco
Como já foi anteriormente referido APLV tende a apresentar remissão espontânea, mas geralmente vem a ser substituida por outra manifestação de alergia. O surgimento do eczema é freqüentemente visto como o prenúncio de que ocorreu a sensibilização do organismo por um alergeno alimentar, com aumento dos níveis de IgE especificamente para um determinado alimento, cujos picos séricos se mantém dentro dos primeiros 2 anos de vida. Este cortejo sintomático é seguido por um incremento da sensibilização por alergenos inalatórios, os quais, por sua vez, acarretam uma correspondente elevação na incidência de asma e rinite. Eczema atópico é geralmente a primeira manifestação da doença alérgica, sendo que cerca de metade de todos os lactentes que sofrem de eczema acabam por apresentar asma, enquanto que 2/3 deles desenvolvem rinite alérgica nos anos subseqüentes. Esta associação de eventos patológicos é freqüentemente referida como a “Marcha da Alergia”.

A sensibilização por alergenos inalatórios e alimentares é bastante comum no caso de surgimento de eczema atópico. Há uma clara evidencia de que a ocorrência de sensibilização atópica em lactentes portadores de eczema representa um marcador da intensidade da doença. A sensibilização provocada por alimentos e agentes inalatórios está associada ao aparecimento de eczemas mais graves, aumento do risco para a persistência da doença além dos 7 anos de vida, e também, risco maior para o surgimento de alergia das vias respiratórias.

Estudos realizados na década de 1980, utilizando testes de provocação, tipo duplo cego, com alimentos controlados e placebo, já comprovavam que 30 a 56% das crianças portadoras de eczema moderado ou grave apresentavam alergia alimentar. A eliminação da dieta destes alergenos alimentares acarretava significativa regressão da lesão atópica. É necessário evitar a ingestão do alimento alergênico, posto que mesmo mínimas quantidades do antígeno alimentar são capazes de induzir a síntese de IgE específica, e, portanto, levar à liberação de histamina desde os basófilos, a qual por sua vez determina a deflagração dos sintomas de Alergia.

O acompanhamento rotineiro dos pacientes e a conseqüente realização de testes de provocação constituem importante estratégia de atuação, posto que a história natural da doença, para a vasta maioria dos pacientes, é a aquisição de tolerância em relação aos alergenos, ao longo dos tempos.

No nosso próximo encontro seguiremos a discussão deste fascinante e desafiante tema que é a Alergia Alimentar e suas mais variadas nuances.