segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (2)

Histórico

No passado, praticamente até meados do século XX, nas mais diversas formas de sociedades e culturas existentes (Figuras 1-2 e 3), salvo raríssimas exceções, as crianças eram rotineiramente amamentadas ao seio materno de forma exclusiva e por tempo prolongado.

Figura 1- Lactente de sociedade dita de "cultura primitiva" mamando com total naturalidade.


Figura 2- Lactente da sociedade dita "moderna" que recebeu aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado, seguindo, assim, um hábito cultural tradicional.


Figura 3- Lactente pertencente à família moradora da favela Cidadae Leonor cuja mãe se incorporou ao programa de promoção do aleitamento natural exclusivo e venceu mitos e tabus negativos em relação ao aleitamento natural.
Entretanto, como é do conhecimento geral, as mudanças ocasionadas pelo desenvolvimento tecnológico industrial, em meados do século XIX e definitivamente consolidado no século XX, entre as sociedades ditas “modernas”, nas quais as mulheres passaram a ocupar um espaço significativo no mercado de trabalho, associado ao amplo e contínuo desenvolvimento da indústria de alimentos, houve, em consequência, uma drástica redução na prática do aleitamento materno. Outros tipos de leite, distintos do materno, foram sendo, então, progressivamente introduzidos em idades cada vez mais precoces na alimentação dos lactentes; a partir dessa mudança de hábitos e costumes começaram a aflorar os problemas dessa nova prática nutricional e, assim, passaram a surgir as Alergias Alimentares em escala cada vez mais crescente.

Vale a pena lembrar que os efeitos adversos dos alimentos são reconhecidos desde épocas imemoriais. Hipócrates já havia observado, há 2.000 anos, que a ingestão de leite de vaca pode provocar problemas gastrointestinais e urticária, mas hipersensibilidade aos alimentos foi poucas vezes descrita até que Von Pirquet, em 1906, introduziu o conceito de Alergia. O primeiro caso de hipersensibilidade à proteína do leite de vaca (Alergia) foi descrito na literatura médica da Alemanha em 1901; nos EUA a primeira referência ao problema data de 1916, enquanto que na Inglaterra verifica-se apenas uma descrição de hipersensibilidade à proteína do leite de vaca (Alergia) antes de 1958.

Na busca de substitutos do leite de vaca, para o tratamento de crianças com sintomas de alergia, passaram a ser desenvolvidas fórmulas preparadas industrialmente a partir da proteína vegetal da soja, introduzidas em 1929, ainda que tal preparação já fosse conhecida e utilizada desde 1909, porém em pequena escala. Posteriormente, já na década de 1940, surgiram os preparados de hidrolizados de caseína e do soro leite como alternativa no tratamento das alergias alimentares múltiplas. Mais recentemente, no fim do século XX, passaram a ser elaboradas as fórmulas à base de mistura de amino-ácidos, as quais são praticamente desprovidas de quaisquer estímulos antigênicos. Elas são indicadas naqueles casos de comprovada intolerância aos hidrolizados protéicos.

Genética associada ao meio ambiente: fatores que contribuem para o surgimento de Alergia Alimentar

Atualmente, está bem estabelecido que há uma significativa contribuição genética para o surgimento de alergia e, mais ainda, que inúmeros genes tem sido identificados como responsáveis pelo aparecimento tanto de eczema quanto de asma. Mutações genéticas têm sido descritas em até 27% dos pacientes portadores de eczema grave e estas parecem conferir fatores de risco para a persistência da doença, sensibilização para alergias múltiplas, e aparecimento de asma associada ao eczema. A descoberta dessas mutações genéticas demonstra de forma inequívoca a importância do papel da ruptura da barreira de defesa da pele como fator primordial na patogênese do eczema e na sensibilização alérgica.

Por outro lado, a genética isoladamente não pode ser responsabilizada pelo significativo aumento da prevalência das doenças alérgicas, as quais tem sido caracterizadas cada vez mais frequentemente nestas últimas duas décadas. Este incremento da incidência das doenças alérgicas se deve muito provavelmente a uma íntima associação “genética-meio ambiente”. Este complexo “genética-meio ambiente” pode interagir durante a gravidez ou mesmo logo após o nascimento do ser humano, ainda nos primeiros meses de vida extra-uterina (Figura 4).


Figura 4- Esquema dos vários fatores envolvidos na gênese da Alergia Alimentar.

É interessante assinalar que, no caso dos pacientes portadores de eczema grave, foram encontrados auto-anticorpos circulantes dirigidos contra determinadas proteínas celulares. Este fato levou à especulação de que aquilo que se iniciou como um processo essencialmente alérgico sofreu uma evolução para tornar-se uma enfermidade autoimune. Daí a necessidade de se programar ações efetivas para prevenir a evolução da doença para a cronicidade.

A “Marcha da Alergia” nos lactentes de alto risco
Como já foi anteriormente referido APLV tende a apresentar remissão espontânea, mas geralmente vem a ser substituida por outra manifestação de alergia. O surgimento do eczema é freqüentemente visto como o prenúncio de que ocorreu a sensibilização do organismo por um alergeno alimentar, com aumento dos níveis de IgE especificamente para um determinado alimento, cujos picos séricos se mantém dentro dos primeiros 2 anos de vida. Este cortejo sintomático é seguido por um incremento da sensibilização por alergenos inalatórios, os quais, por sua vez, acarretam uma correspondente elevação na incidência de asma e rinite. Eczema atópico é geralmente a primeira manifestação da doença alérgica, sendo que cerca de metade de todos os lactentes que sofrem de eczema acabam por apresentar asma, enquanto que 2/3 deles desenvolvem rinite alérgica nos anos subseqüentes. Esta associação de eventos patológicos é freqüentemente referida como a “Marcha da Alergia”.

A sensibilização por alergenos inalatórios e alimentares é bastante comum no caso de surgimento de eczema atópico. Há uma clara evidencia de que a ocorrência de sensibilização atópica em lactentes portadores de eczema representa um marcador da intensidade da doença. A sensibilização provocada por alimentos e agentes inalatórios está associada ao aparecimento de eczemas mais graves, aumento do risco para a persistência da doença além dos 7 anos de vida, e também, risco maior para o surgimento de alergia das vias respiratórias.

Estudos realizados na década de 1980, utilizando testes de provocação, tipo duplo cego, com alimentos controlados e placebo, já comprovavam que 30 a 56% das crianças portadoras de eczema moderado ou grave apresentavam alergia alimentar. A eliminação da dieta destes alergenos alimentares acarretava significativa regressão da lesão atópica. É necessário evitar a ingestão do alimento alergênico, posto que mesmo mínimas quantidades do antígeno alimentar são capazes de induzir a síntese de IgE específica, e, portanto, levar à liberação de histamina desde os basófilos, a qual por sua vez determina a deflagração dos sintomas de Alergia.

O acompanhamento rotineiro dos pacientes e a conseqüente realização de testes de provocação constituem importante estratégia de atuação, posto que a história natural da doença, para a vasta maioria dos pacientes, é a aquisição de tolerância em relação aos alergenos, ao longo dos tempos.

No nosso próximo encontro seguiremos a discussão deste fascinante e desafiante tema que é a Alergia Alimentar e suas mais variadas nuances.

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