Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
A
renomada revista JPGN publicou o artigo intitulado “The Power of Observation in Advancing
Celiac Disease”, de Barbara Bosch e Peter Holt, em fevereiro
de 2023, que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos.
INTRODUÇÃO
A
Doença Celíaca (DC) já havia sido reconhecida há décadas quando, nos anos 1930,
Willem Karel Dicke, um pediatra holandês, observou que as crianças portadoras
desta enfermidade apresentavam recidiva quando consumiam produtos contendo
trigo, e, por outro lado, não apresentavam quaisquer sintomas quando não
ingeriam este alimento. Dicke publicou em um manuscrito, em 1941, suas
observações e propôs o uso da dieta isenta de trigo. Os anos sombrios da
Segunda Guerra Mundial impediram que ele realizasse as investigações
necessárias para comprovar suas observações clínicas. Por outro lado, durante o
inverno de 1944 houve uma grande escassez de alimentos, o que tornou praticamente
inexistente a disponibilidade de pão na Holanda. Este acontecimento levou as
crianças portadoras de DC a apresentar uma marcada regressão dos sintomas, os
quais rapidamente recidivaram quando pão branco foi enviado por paraquedas
pelos aviões aliados durante a operação Marshall. Este fato sugeriu fortemente a
ação dos efeitos nocivos dos produtos do pão sobre a DC. Entre 1946 e 1960,
Dicke com os Drs Weijers e Van de Kamer, finalmente realizaram uma brilhante
pesquisa clínica que comprovou os efeitos nocivos da farinha de trigo sobre as
crianças que estavam sob seus cuidados médicos. Quando essas crianças
apresentavam a recidiva das suas enfermidades, elas eram internadas nos
hospitais Wilhelmina e Juliana Children’s, e lá permaneciam vários meses para
serem submetidas a investigações clínicas e laboratoriais. Inicialmente, elas
eram alimentadas com dieta à base de farinha de batata para induzir alívio
clínico. Então, elas eram observadas quando dietas contendo trigo ou
componentes do trigo eram introduzidas na sua alimentação. O propósito desses
repetidos estudos tinha por objetivo definir quais as frações tóxicas eram responsáveis
pelos sintomas e pela má absorção. Antes de receberem alta hospitalar, as
crianças eram alimentadas novamente com dieta isenta de trigo para eliminar os
sintomas e provocar aumento do peso corporal. O elo fisiopatológico entre a
farinha de trigo e a DC foi comprovado pelos estudos de quantificação das perdas
fecais de gordura realizadas em 5 pacientes, cujos resultados foram publicados
na tese de PhD de Dicke, em 1950. Os efeitos benéficos da dieta isenta de trigo
na DC foram rapidamente confirmados na Europa e nos EUA, o que acarretou em um
êxito terapêutico, e que, posteriormente, com seu uso generalizado uma
diminuição da mortalidade.
Considerando-se
que essas crianças contribuíram de forma definitiva para a compreensão e o
tratamento exitoso da DC, nós decidimos tentar contactá-los. Nós tínhamos a
esperança de saber o que eles se lembravam, como eles manejavam a sua dieta à
medida que cresciam para a vida adulta, e, finalmente o que eles sentiam a
respeito por haver participado da referida pesquisa. Elas forneceram algumas
luzes a respeito desses estudos extraordinários que formaram o pilar
fundamental do nosso conhecimento sobre a fisiopatologia do glúten na DC.
As Vinhetas
das Crianças
JHB
nascida em 1944 foi uma das primeiras crianças com DC a serem estudadas. Foi
internada repetidas vezes no Wilhelmina Children’s Hospital aos 2 anos de
idade. Ela está presente na Figura 1, dentre as crianças estudadas na
enfermaria de pesquisa.
Após
a alta hospitalar, seus pais foram avisados de que ela deveria evitar alimentos
condimentados e gorduras, mas não receberam qualquer outra recomendação
dietética. Ela questiona por que sua família nunca foi avisada de que ela
deveria receber uma dieta isenta de glúten, mas não tem quaisquer
arrependimentos da sua participação na pesquisa.
HA
foi hospitalizada aos 9 meses de idade em um hospital local durante 3 anos, mas
nunca havia sido diagnosticada como DC, seu médico sugeriu uma dieta de bananas
e água de arroz, mas seus pais apresentavam dificuldades em adquirir esses
alimentos especiais. Seus irmãos nunca aceitaram que ela fosse enferma e ela
nunca podia vê-los ingerindo alimentos rotineiros. Durante a infância ela
precisou de repetidas transfusões de sangue. Ela foi diagnosticada com DC
somente aos 62 anos de idade. Suas lembranças a respeito das hospitalizações
foram muito positivas. Ela desejaria participar em estudos futuros caso isso
possa ser de maior valor para a compreensão da enfermidade.
VOF
foi hospitalizada para investigação detalhada aos 5 anos de idade. Ao longo de
toda sua infância, ela sentia-se sempre cansada, com abdome distendido e
retardo do crescimento, e, geralmente ela assumia o lugar no carrinho de bebê
que pertencia a sua irmã mais nova. Ela sofreu hospitalização prolongada
recebeu inúmeras injeções e se recorda de não ter visto seus pais ou irmãos
durante muitas semanas. Após a alta ela iniciou dieta de arroz e pão produzido
por uma padaria especial. Subsequentemente ela descobriu ser intolerante à
lactose e foi novamente diagnosticada com DC em idade posterior. Ela refere que
não tem más lembranças a respeito das hospitalizações e se sentiria feliz em
participar de estudos futuros.
As
Lembranças da Enfermeira
Complementando
essas estórias pessoais há também o relato de BN que aos 19 anos de idade começou
a trabalhar como estagiária de enfermagem pediátrica na enfermaria de pesquisa
do Wilhelmina Children’s Hospital. Ela se recorda que tinha entre 5 a 6
crianças sob seus cuidados, e que inclusive foram incluídos alguns dos 6
pacientes pesquisados, descritos na tese de Dicke. O time de enfermeiras tinha conhecimentos
de que os pacientes com DC eram tratados com dietas especiais para a pesquisa.
Ela se recorda que preparava mingaus com diversos grãos. As crianças permaneciam
hospitalizadas durante 6 meses cada vez, e eram permitidas ver suas famílias apenas
semanalmente. Ela enfatizou o papel do Dr Weijers que geralmente decidia a
respeito da composição das dietas das crianças.
CONCLUSÕES
O
que essas estórias nos dizem respeito sobre as crianças submetidas à pesquisa e
seus familiares? Em primeiro lugar, a extraordinária resiliência demonstrada
por essas crianças que foram repetidamente provocadas com alimentos que as
tornavam enfermas. A fé desses familiares nos seus médicos durante os estudos ainda
permanece muito clara após decorridos 70 anos. Todas elas ainda se dispõem a
ser voluntárias de pesquisa novamente. Nós ouvimos que havia uma falta de
entendimento a respeito do que era a DC, e que a DC somente poderia ser tratada
com alimentos especiais isentos de glúten, os quais eram difíceis de serem
encontrados e muito caros. As crianças eram acusadas de fingir a sua
enfermidade para obter mais atenção familiar e ter o privilégio de que elas
ingerissem suas refeições isoladamente dos seus irmãos. Ao ouvir essas
estórias, nós podemos compreender a importância das sociedades leigas de apoio
à DC, que forneciam recomendações dietéticas práticas e suporte psicológico, em
um determinado momento em que a enfermidade era pouco compreendida. Através dos
olhos da enfermeira pediátrica, nós podemos ter um lampejo do ambiente no qual
Dicke e seus colaboradores testavam as crianças com DC. Vale ressaltar que
esses estudos foram conduzidos antes da implantação dos comitês de ética para
aprovar estudos de pesquisa clínica. Nós nos perguntamos se esses tais estudos teriam
sido aprovados pelos comitês de ética atualmente existentes.
MEUS
COMENTÁRIOS
Passaram-se
mais de 60 anos entre a primeira descrição da DC feita por Samuel Gee, em 1888,
e o conhecimento da etiologia da DC, definitivamente constatada por Dicke em
sua tese de PhD, publicada em 1950.
Ao longo desse período inúmeras investigações em diferentes centros foram realizadas para tentar caracterizar a etiologia e o tratamento da DC, sem sucesso. A perspicácia e a perseverança de Dicke e seus colaboradores foram fundamentais para que o objetivo final fosse alcançado. Uma ironia do destino foi um fator coadjuvante essencial para esta concretude. Os horrores causados pela deflagração da Segunda Guerra Mundial, na qual a Holanda foi uma grande vítima, em virtude da escassez dos alimentos, particularmente do trigo e seus produtos, auxiliaram o poder de observação de Dicke para levantar a suspeita de que o trigo fosse o agente etiológico da DC. Este fato foi definitivamente por ele comprovado porque seus pacientes, que durante o período de escassez alimentar apresentavam recuperação clínica e mantinham-se assintomáticos, e, com o final da guerra, com a implantação do plano Marshall, que propiciou o fornecimento de inúmeros alimentos pelas forças aliadas inclusive os derivados do trigo, incluindo o pão, Dicke percebeu, então, que seus pacientes voltaram a apresentar os sintomas da DC. Foi, portanto, a partir dessas observações acuradas, que Dicke chegou à comprovação da causa etiológica da DC. Vale ressaltar, que naquela época ainda não existia a disponibilidade para a realização da biópsia do intestino delgado. O dado laboratorial mais específico limitava-se ao balanço fecal de gorduras introduzido por Weijers e Van de Kamer. A esteatorreia passou a ser o marcador laboratorial de maior valia para caracterizar o quadro da Síndrome de Má Absorção provocado pela DC. Vale ressaltar, que o advento da biópsia do intestino delgado, foi rudimentarmente implantado em meados dos anos 1950, sendo a médica inglesa Margot Shiner a primeira pesquisadora a caracterizar as lesões microscópicas de atrofia vilositária subtotal, em 1957, em um artigo publicado na revista Lancet. Devo dizer que a conheci pessoalmente na década de 1970 aqui em São Paulo, e, com ela tive o prazer de realizar um trabalho de pesquisa em crianças desnutridas, ao analisar as graves alterações morfológicas do intestino delgado, por meio da microscopia eletrônica. Este trabalho está publicado na Revista American Journal of Clinical Nutrition, em 1979 (3).
Outro grande avanço para
o diagnóstico da DC, veio logo a seguir, e deveu-se ao
tenente-coronel médico Crosby. No início do inverno de 1952-53, Crosby era o
diretor médico do Hospital das Forças Armadas americanas na Coréia, e, foi
neste período que ele teve conhecimento de que alguns soldados e suas esposas
poderiam sofrer de DC. Ao retornar aos Estados Unidos, em
1963, no Hospital Walter Reed, em Washington, Crosby organizou uma equipe de
trabalho para investigar o que era denominado “Sprue”. Para tal, ele
desenvolveu juntamente com o engenheiro mecânico Kugler um instrumento menos
invasivo que o de Shiner, para a obtenção de fragmentos de biópsia intestinal,
o qual passou a ser conhecido pela denominação de “cápsula de Crosby-Kugler”. A
partir da introdução desta nova cápsula foi possível a realização das biópsias
de intestinal delgado de forma rotineira para a investigação da DC. Esta
nova técnica de investigação resultou no avanço mais espetacular para a época,
pois, passou a proporcionar o estudo detalhado das lesões da mucosa do
intestino delgado tornando-se, desde então, até os dias atuais, no padrão ouro
para o diagnóstico da DC. Nas figuras 7 e 8 podem ser
visualizadas a “cápsula de Crosby-Kugler” com o orifício de abertura lateral
que obtém o fragmento de mucosa intestinal e parte do procedimento da biópsia.
Figuras
7 e 8
Vale ressaltar que a
partir da década de 1980, com a implantação praticamente universal da técnica
da endoscopia digestiva alta com endoscópios flexíveis especificamente
fabricados para uso em crianças, as biópsias de intestino delgado passaram a
ser realizadas rotineiramente com as pinças endoscópicas. Esta nova técnica
trouxe algumas vantagens indiscutíveis, posto que as biópsias podiam ser
realizadas sob visão direta, com a possibilidade de obtenção de vários fragmentos
de tecido, e não mais às cegas, o que levou ao abandono da utilização da
cápsula de Crosby-Kugler.
Ao final da década de
1960 alcançava-se assim o conhecimento de 3 importantes elementos, a saber: 1-
que o glúten é o agente desencadeador da DC; 2- que havia uma
indiscutível e facilmente identificável lesão da mucosa do intestino delgado;
3- a disponibilidade de um instrumento para a realização rotineira de biópsias
do intestino delgado, e, com isto, possibilitar o início da solução do mistério
da patogênese da DC.
Quanto
a DC especificamente, nosso grupo da Gastropediatria da EPM teve a primazia de
descrever o primeiro relato de caso de DC comprovada com biópsia do intestino
delgado no nosso meio e, a respectiva recuperação clínica e nutricional com o
uso da dieta isenta de glúten (4).
Figura
9 – Paciente portador de DC no momento da internação, e logo após o inicio da
dieta isenta de glúten, evidenciando os primórdios da sua recuperação
clínica.
Figura
10- O mesmo paciente portador de DC em plena recuperação clínica após 6 meses
de uso da dieta isenta de glúten.
Figura
11- Fragmentos de biópsia de intestino delgado revelando a foto superior
atrofia vilositária subtotal, e, na inferior a recuperação morfológica
apresentando vilosidades digitiformes e uma relação vilosidade/cripta 4/1.
É
importante assinalar que após esta primeira descrição da DC no nosso meio,
muitos outros casos, até então considerados pacientes portadores de desnutrição
por verminose e/ou problemas de ordem socioeconômica, vieram também a ser
diagnosticados. Atualmente sabe-se que a prevalência da DC no
nosso meio é tão elevada quanto aquela descrita nos outros países do mundo
ocidental.
No
final dos anos 1980, um grande estudo multicêntrico realizado na Itália,
levando-se em consideração estritos critérios clínicos e laboratoriais, pode-se
estabelecer com 95% de segurança que o diagnóstico de DC poderia
ser realizado com apenas 1 biópsia de intestino delgado. Este achado conduziu a
ESPGHAN à publicação, em 1990, de novos critérios de conduta para o diagnóstico
da DC,
ao utilizar os marcadores sorológicos positivos e apenas 1 biópsia de intestino
delgado.
No
início dos anos 2000 a DC passou a ser universalmente
considerada como exemplo de uma enfermidade autoimune associada ao complexo
genético HLA DQ2/DQ8, e o autoanticorpo, até então desconhecido, revelou-se ser
o anticorpo anti-transglutaminase. Nas figuras abaixo estão representadas a
molécula do HLA, a predisposição genética e sua frequência na população geral.
No passado, há cerca de 40 anos,
a DC era considerada uma enfermidade rara que afetava
majoritariamente indivíduos de origem europeia, e que usualmente se caracterizava
por seu aparecimento nos dois primeiros anos de vida. Naquela ocasião, o
diagnóstico baseava-se inteiramente no surgimento dos sintomas típicos de má
absorção, com diarreia crônica e perda de peso, cuja comprovação ocorria
através da biópsia do intestino delgado. Entretanto, mais recentemente, a partir
da década de 1980, com a disponibilidade dos marcadores sorológicos, o
rastreamento da DC pode ser inicialmente realizado utilizando-se
estes testes, os quais apresentam elevadas taxas de sensibilidade e
especificidade, tais como os anticorpos anti-endomíseo e o anticorpo
anti-transglutaminase tecidual da classe IgA. Com o advento desses métodos
rápidos de rastreamento sorológico ocorreu um significativo aumento no
conhecimento da DC, o que possibilitou, por sua vez, também, que se
estabelecesse o diagnóstico de DC em um número crescente de
indivíduos, até então, aparentemente assintomáticos. Estes avanços diagnósticos
possibilitaram tornar conhecidas inúmeras outras manifestações clínicas
da DC, evidenciando outras variedades sintomáticas, e não mais apenas
aquelas relacionadas com o trato digestivo. A DC tem sido descrita
também associada com outras múltiplas enfermidades autoimunes, como por
exemplo, tireoidite autoimune e diabetes tipo I. Há também fortes evidências de
uma ocorrência aumentada de DC em crianças portadoras de dermatite
herpetiforme, defeitos no esmalte dentário, deficiência de IgA, síndrome de
Down, síndrome de Turner e nos familiares de primeiro grau dos pacientes
portadores de DC. Uma série de estudos tem demonstrado que a prevalência
da DC pode estar presente também entre 5 a 13% dos irmãos dos
pacientes. Tomando-se por base inúmeros estudos realizados na Europa e nos
Estados Unidos, a prevalência da DC entre as crianças de dois a
quinze anos na população geral é de 3 a 13 para cada 1.000 crianças, ou
aproximadamente 1:300 a 1:80 crianças (Figura 12).
No Brasil, contrariamente às previsões do passado, a prevalência da DC, à semelhança dos países da Europa e dos Estados Unidos, embora com variação na dependência geográfica dos estudos realizados, também se configura com níveis compatíveis como um problema de saúde pública a ser devidamente enfatizado (Figura 13).
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
1- Bosch, B e Holt, P - JPGN 2023;76:120-22.
2- Fagundes-Neto U. Igastroped, 2016. Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se revelou de alta prevalência no mundo ocidental.
3- Fagundes-Neto, U.; Campos, JVM; Patricio, FRS; Wehba, J; Carvalho, AA; Shiner, M - American Journal Clinical Nutrition 1979;32:1575-1591. Jejunal mucosa in marasmatic children. Clinical, pathological, and fine structural evaluation of the effect of protein-energy malnutrition and environmental contamination.
4- Fagundes-Neto, U - Pediatria Prática 1976;43:23-26. Doença Celíaca: aspectos práticos de importância.