E os tempos se passaram...
Devido à necessidade
familiar de nós, herdeiros de nossos avós paternos, Juventina e Ulysses
Fagundes, vendermos as casas, as quais nos períodos de 1974-80 e 1993-2022
foram meu consultório médico, após 35 anos atendendo meus pacientes, nas casas
onde nasci, cresci e vivi até os
primeiros anos da adolescência e mesmo na vida adulta, tive mais uma vez que
recomeçar, em novo endereço, minhas atividades profissionais.
Figuras 1 e 2 – Meus avós Juventina e Ulysses em diferentes momentos das suas vidas.
Figura 4- Minha irmã Tânia (em pé), uma amiga e eu no portal de entrada da casa da 1229, em nossa adolescência.
Confesso que foi uma enorme
carga emocional desfazer-me de toda uma história de vida intensamente vivida
naquelas casas geminadas e na chamada casa grande da Av. Cons. Rodrigues Alves,
bem em frente ao Instituto Biológico, na Vila Mariana, onde estão fixadas
minhas raízes mais profundas.
Na minha infância era
vizinho de porta dos meus avós paternos, não havia muros para separar os
terrenos. Eu me sentia em casa tanto lá como cá, e era no quintal fronteiriço
da casa, onde havia um banco de madeira, que meu avô Ulysses e eu costumávamos
nos sentar para termos longas conversas sobre as mais variadas coisas da vida.
Foi neste banco que um dia ele solenemente me fez o seguinte pedido: “Meu neto
quando você tiver um filho eu gostaria que você desse a ele o meu nome”. Eu,
na minha inocência da infância lhe respondi simploriamente:” Vô vai ser uma
confusão danada porque tudo mundo vai confundir as pessoas”. Ele então,
muito calmamente me tranquilizou: “Filho pode ficar sossegado porque, quando
ele nascer, com certeza eu já não estarei mais neste mundo”. De fato, ele
faleceu em 1964, aos 77 anos, e, por incrível ironia do destino foi no dia 16
de setembro, dia do meu aniversário de 20 anos, e eu havia sido a última pessoa
a estar com ele antes do seu falecimento, porque o levei para cama naquela
noite do dia 15 de setembro, e, na manhã seguinte, ele foi encontrado sem vida
em sua cama. O tempo passou e em 1972 nasceu um novo Ulysses Fagundes, hoje
médico de sucesso como havia sido seu bisavô, assim eu pude cumprir a promessa feita,
com a anuência da minha mulher à época. Quando eu tinha aproximadamente 12 anos
de idade meu avô me convidou para plantarmos uma jabuticabeira neste jardim
fronteiriço da casa. Isto foi feito, e, assim que terminamos de plantar a muda,
ele me disse com ares de profeta: “Quem planta jabuticabeira não colhe os
frutos, porque ela leva muitos anos para começar a produzir”. De fato, ele
não os colheu, mas eu sim passei a colher as jabuticabas produzidas por ela
durante muitos anos seguidos, até meados do ano passado, pois esta árvore é uma
grande produtora.
Foi olhando, com muita
emoção, para aquela jabuticabeira que eu tive minhas últimas conversas com meu
avô, na tarde do dia 6 de janeiro de 2023, ao me despedir para sempre destas
casas, que tantas e maravilhosas lembranças me permitiram vivenciar, durante os
muitos anos, desde a mais tenra idade até a vida adulta, agora já adentrada nos
anos, que por ali estive.
Tudo na vida tem diversas
facetas para que nós possamos desfrutar os outros lados da nossa existência, e,
foi isso que eu decidi aproveitar, o outro lado da minha existência neste novo
momento da vida. Explico, em virtude da mudança de imóvel, por necessidade
trouxe comigo todo um contingente enorme de informações que foram se acumulando
nos meus arquivos que lá repousavam anestesiadas ao longo dos tempos. Quando
recém me instalei neste novo consultório, que por incrível que pareça, é uma
casa situada na rua do apartamento onde moro, Morgado de Mateus 630, exatamente
a 66 metros de distância e a 50 metros do antigo consultório, que o destino me
ofereceu, comecei a rever alguns documentos do passado, e, dentre eles
encontrei um vasto material de correspondências entre Horácio Toccalino e eu,
objetos primordiais deste relato.
Horácio Nestor Toccalino, o
obstinado visionário pelo sucesso da Sociedade Latino-Americana de
Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição (SLAIPN) e sua inserção internacional
com as congêneres europeia, norte-americana e asiática.
Em respeito à sua memória,
assim escreveu o professor José Vicente Martins Campos: “Os traços marcantes de
sua personalidade, vitalidade, irradiante jovialidade e viva inteligência
revelavam-se com veemência na impetuosa vontade de levar adiante ideias e
planos de estudo. No estímulo constante aos seus discípulos, na sua dinâmica
atividade de trabalhos e nos acalorados debates, que insistentemente
incentivava nas reuniões cientificas, procurava pôr em foco a necessidade do
pediatra de analisar objetivamente os fatos atendendo tanto suas bases
científicas quanto a realidade clínica.
No início dos anos sessenta,
como excelente Pediatra Geral, parte Toccalino entusiasmado para a
Gastroenterologia, procurando estruturá-la dentro de padrões atualizados. Nesta
linha surgem seus primeiros trabalhos no Hospital de Niños de Buenos Aires,
onde, com dificuldades, conseguiu implantar o primeiro núcleo latino-americano
da especialidade; segue-se a formação mais estruturada da especialidade no
Serviço de Gastroenterologia Pediátrica do Policlínico Alejandro Posadas.
Toccalino visando estruturar
a especialidade dentro de bases cientificas, dedicou-se inicialmente a
aprofundar os conhecimentos sobre a metodologia diagnóstica da Síndrome de Má
Absorção. Imediatamente incorporou a técnica da biópsia de intestino delgado,
implantou os testes funcionais digestivo-absortivos e a metodologia da
determinação da dissacaridases. Logo a seguir, sua linha de pesquisa englobou o
vasto capítulo das intolerâncias alimentares, particularmente a má absorção dos
carboidratos, tanto da diarreia aguda como nas inúmeras causas de diarreia
crônica. Aqui, ênfase especial deve ser dada às deficiências secundárias das dissacaridases,
em consequência do sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado nas
crianças com desnutrição e diarreia. Ultimamente dedicava-se à investigação da
penetração de macromoléculas no intestino delgado e sua associação com alergia
alimentar.
Ao sentir, através de sua
própria experiência, que os problemas pediátricos da área geográfica latino-americana
apresentavam características próprias e que
o campo gastroenterológico em particular era pleno de problemas e indagações,
partiu para a ideia de intercambio com diversos países, com vistas à criação de
uma Sociedade Latino-Americana de Gastroenterologia Pediátrica (SLAGPN).
Esta foi uma de suas grandes
realizações. Através de intenso trabalho de aproximação conseguiu atingir seus
fins, concretizados na Fundação SLAGPN, em 1975. Ao lado disto, recebeu em seu
serviço pediatras de toda América Latina, executando um excelente trabalho de
formação de Gastroenterólogos Pediátricos, que hoje atuam em seus próprios
países.
Ao apresentarem com a maior
emoção essa homenagem ao pioneiro da Gastroenterologista Pediátrico na América
Latina, seus amigos assumem o compromisso de manter o congraçamento pela SLAGPN
e de fazer frutificar os ensinamentos valiosos que dele receberam como MESTRE e
AMIGO.
Pelos MEMBROS e pela
DIRETORIA da LAGPN.
J.V. MARTINS CAMPOS”
(Arq. Gastroent – São Paulo-
15 (2):89-90,1978).
Infelizmente Toccalino
faleceu muito jovem, aos 45 anos, com muitos projetos pessoais e profissionais
para serem desenvolvidos. Sem dúvida
alguma, o mais caro deles, no entanto, era a fundação da SLAGPN, a qual se
logrou concretizar em outubro de 1975, em São Paulo, durante o transcurso do
Congresso Pan-Americano de Pediatria. Anteriormente, porém, em 1974, em plena
realização do Congresso Mundial de Pediatria, em Buenos Aires, em um
determinado dia, nos reunimos para almoçar em uma churrascaria denominada El
Gaucho Imortal, Toccalino, Licastro, Martins Campos (José Vicente Martins
Campos, gastroenterologista brasileiro, embora sendo especialista de adultos,
tinha grandes interesses em investigação na área da gastroenterologia
pediátrica, de quem me tornei amigo e admirador, participava ativamente dos
eventos pediátricos e era um grande amigo de Toccalino desde longa data).
Vínhamos de um encontro da Sociedade Latino Americana de Investigação
Pediátrica, em Escobar, cidade localizada nas vizinhanças de Buenos Aires.
Durante o almoço Toccalino
manifestou seu descontentamento com os rumos daquela Sociedade, porque entendia
que a gastroenterologia estava sendo cada vez mais marginalizada em detrimento
de outras especialidades pediátricas, em especial a endocrinologia e a
nefrologia. Toccalino sentia que havia chegado o momento de se fundar uma
Sociedade especificamente voltada à gastroenterologia, já haveria uma massa
crítica suficiente para tal empreendimento. Ele conhecia alguns colegas no Uruguai
que certamente também adeririam à ideia, mesmo no Brasil já havia alguns
embriões da especialidade sendo gestados.
Criaríamos uma Sociedade que
tendo como pilares de sustentação o eixo Argentina, Uruguai e Brasil, pouco a
pouco colegas de outros países seguramente viriam também a se incorporar nessa
nova proposta. Martins Campos prontamente concordou com a ideia, o mesmo
ocorrendo com Licastro. Eu também concordei de imediato, mesmo porque afinal
das contas quem era eu para emitir qualquer opinião a respeito de um assunto
sobre o qual não tinha a menor experiência, fiz o que meu mestre mandou. Ato
seguinte, Martins Campos lançou mão de um guardanapo de papel do próprio restaurante,
e elaborou a primeira ata de fundação desta nova Sociedade com a subscrição dos
quatro presentes. Ficou então combinado que no ano seguinte durante o
transcorrer do Congresso Pan-Americano, em São Paulo, nós criaríamos
oficialmente a SLAGPN.
Toccalino e Martins Campos
se ocuparam de contatar os potenciais membros da futura Sociedade,
convidando-os para a reunião oficial da sua fundação. Tínhamos praticamente um
ano inteiro para desenvolver essa empreitada com êxito, era tempo suficiente.
Eu fiquei encarregado de organizar a reunião, a qual se realizou na Escola
Paulista de Medicina, no anfiteatro de Pediatria do Hospital São Paulo, em
outubro de 1975.
Vinte e cinco colegas
latino-americanos firmaram a constituição desta nova Sociedade; estava enfim,
naquele dia, tornando-se realidade o tão almejado primeiro sonho de Toccalino.
Figuras 12-13 -14
Infelizmente, porém, naquela
mesma ocasião Toccalino tinha acabado de receber a notícia de que estava
enfermo e o diagnóstico era de uma doença extremamente grave, ele sofria de um
tipo muito raro de câncer, extremamente agressivo, incurável para os
conhecimentos científicos daquela época, e que teria uma evolução bastante
rápida.
Entretanto, em um ato de
enorme bravura e autocontrole, para não prejudicar os andamentos da fundação da
Sociedade, o que era para ele uma questão primordial, decidiu não contar a
ninguém o seu padecimento. Assim que terminou o Congresso, de São Paulo mesmo
viajou diretamente para Nova Iorque, na tentativa desesperadora de encontrar
alguma solução, ainda que paliativa fosse, para sua doença.
Desafortunadamente, porém,
apesar do tratamento quimioterápico proposto e realizado, a cura não era
viável, o prognóstico emitido foi que inexoravelmente o câncer progrediria, ele
não teria muito mais tempo de vida, provavelmente não mais que seis meses (na
realidade ainda viveu três anos mais após o diagnóstico). Entretanto, apesar de
todo este sofrimento e frustração quanto ao futuro próximo, ele não deixou se
abater animicamente, ao contrário, o florescimento da nova Sociedade passou a
ser o grande estímulo da sua existência daí em diante. Durante sua estada em
Nova Iorque me escrevia cartas, nas quais vislumbrava o sucesso futuro da nossa
Sociedade, mas para que tal êxito fosse alcançado deveríamos seguir
rigorosamente determinados postulados, e, a mim, ele atribuía a
responsabilidade de fazê-los cumprir. Abaixo segue a tradução literal dos
postulados enunciados por Toccalino, a mim dirigidos:
Tradução dos postulados: “1-
seguir o modelo argentino da especialidade; 2- Martins Campos divulgando nossa
Sociedade na Europa; 3- os argentinos e você (eu) fazendo o mesmo nos EUA,
especialmente com os amigos Nichols e Torres-Pinedo; 4- realizar os encontros
da Sociedade periodicamente quando deva corresponder à data proposta; 5-
publicar regularmente e de boa qualidade nos Arquivos de Gastroenterologia.
Caso cumpramos estes postulados ninguém será capaz de frear os
Latino-americanos. Querido Ulysses, novamente obrigado pela sua carta, mas
necessito muitas outras cartas falando a respeito dos 5 postulados. Eu as
espero!!!”
Toccalino retornou dos
Estados Unidos, recobrou suas forças, continuou sua missão de fortalecer nossa
Sociedade de forma obstinada, viajando frequentemente enquanto sua saúde assim
o permitiu, para consolidar a recém-nascida SLAGPN. Eu assumi com ele um
compromisso irrestrito, de continuar a luta para manter viva a chama que com
tanto sacrifício foi por ele acesa, e mais ainda, fazer florescer nossa
Sociedade, tornando-a reconhecida mundialmente. Não imaginava, porém, naqueles
distantes dias de 1975 que em algum momento futuro eu teria as forças
suficientes para avançar além dos postulados propostos, ter a ventura de
organizar um Congresso Mundial. A partir deste momento, seguimos nossa firme
trajetória para alcançar o tão sonhado objetivo final, a criação do evento
Congresso Mundial. Conforme Toccalino havia proposto mantivemos com
regularidade as realizações dos nossos Congressos, apesar das inúmeras
dificuldades financeiras que se antepunham aos organizadores, porém, a chama
que Toccalino havia acendido foi mais forte que aas tempestades que se
apresentavam. Abaixo segue um pequeno exemplo da evolução dos nossos Congressos.
Figuras 15-16-17
Todo o esforço empreendido
por um grande grupo de colegas ao longo dos anos foi finalmente recompensado em
1997 com a oficialização da instituição do tão sonhado Congresso Mundial. O
primeiro deles foi em Boston, 2000, o segundo em Paris, 2004, e a seguir seria
nossa vez de organizá-lo.
Realmente, em 2008, o grande
sonho de Toccalino tornou-se realidade com a realização do III World Congress
of Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition, em Foz do Iguaçu, que
eu tive a enorme honra de ser o Presidente, organizado pela nossa Sociedade,
agora já com o título em inglês, Latin American Society for Pediatric
Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (LASPGHAN), devidamente incorporada
às suas congêneres internacionais.
Figuras 19-20-21- Sessão de
abertura do Congresso Mundial 2008.
Figura 22- Membros dos
diferentes países da América Latina componentes do Comitê Organizador do
Congresso Mundial 2008.
Meu relacionamento com
Horácio Toccalino
Meu relacionamento com
Toccalino foi efêmero, durou de 1973, ano em que eu fiz meu treinamento em
Gastroenterologia Pediátrica no seu Serviço no Policlínico Alejandro Posadas,
em Buenos Aires, durante meu terceiro ano de Residência Médica, até 1977, ano
do seu falecimento, aos 45 anos de idade, devido a um câncer na vesícula
seminal. Durou pouco tempo, é verdade, porém nosso relacionamento foi de uma
intensidade incomensurável, tanto do ponto de vista professional quanto
afetivo.
No dia 23/3/1973 quando já havia
2 meses trabalhando no Policlínico Alejandro Posadas escrevi em meu diário: “A
Pediatria é chefiada por Dr. Toccalino, sendo constituída de subespecialidades,
cujos profissionais em sua maioria são originários do Hospital de Niños de
Buenos Aires. Toccalino é muito considerado e respeitadíssimo, pois tem méritos
excepcionais, conhece profundamente a Gastroenterologia, é estudioso e de uma
capacidade de trabalho realmente impressionante.”
Meu relacionamento com
Toccalino desde o início das minhas atividades se caracterizou por uma grande
empatia recíproca, que cada dia mais se acentuava porque, além das tradicionais
visitas bissemanais aos leitos dos meus pacientes e dos ateneus bibliográficos,
uma vez por semana eu fazia o atendimento do Ambulatório de Gastro com ele. Ao
longo de todo o ano, tanto no campo profissional como no pessoal, sempre
mantivemos um relacionamento extremamente amistoso, dava até a percepção de que
já nos conhecíamos de longa data, eu me sentia muito à vontade em sua companhia,
principalmente quando juntos atendíamos os pacientes no ambulatório de Gastroenterologia.
Vale ressaltar que também atendíamos os pacientes que haviam sido internados na
enfermaria, o que se mostrava de grande utilidade prática porque podíamos acompanhar
a evolução clínica dos pacientes ex-internados. Esta atividade durava toda a
tarde, eu atendia os pacientes e em seguida discutíamos os casos entre nós
dois, para depois conversarmos com as famílias para recomendar qual a conduta a
ser proposta. No final do dia sempre havia um tempo para travarmos uma conversa
coloquial a respeito dos mais variados assuntos, o que naturalmente ia nos
tornando mais íntimos. Enfim, sentia que ele havia me adotado e que eu havia me
apropriado daquela adoção com muita satisfação, mesmo porque este
relacionamento tão afetivo perdurou durante os anos que se seguiram até sua
morte prematura, em dezembro de 1977.
Figura 24– As reuniões semanais de atualização
bibliográfica denominadas de Ateneus Bibliográficas nos mostravam a importância
de que deveríamos estar em constante busca pelos novos conhecimentos.
Durante meu treinamento, uma parte do tempo foi dedicada à investigação clínica, pois Toccalino sempre esteve atualizado com os avanços da Medicina, ele se baseava muito na Gastroenterologia de Adultos, porque estava convencido de que os avanços técnicos e metodológicos ocorriam primeiramente com pacientes adultos, somente após algum tempo eram incorporados na Pediatria. Naquela época uma grande ênfase estava sendo dada à Bacteriologia Intestinal em adultos, e Toccalino desejava aplicar esta metodologia, investigando crianças com diarreia crônica. Ele me escolheu para fazer este trabalho, o qual, resumidamente, se baseava na obtenção de secreção do intestino delgado, por meio de uma sonda, para ser submetida à cultura. A cultura era realizada no Instituto de Microbiologia Malbran localizado a cerca de 15 quilômetros do Posadas, no Parque Patrícios. Eu levava a criança em meu carro, com a sonda posicionada no intestino delgado, juntamente com um dos seus familiares até o Malbran. para obter a amostra da secreção intestinal para ser submetida à cultura. Este foi meu batismo de fogo, a primeira incursão no mundo da investigação científica, que resultou em uma publicação em revista indexada, e, posteriormente, no convite para ir fazer meu Pós-Doc nos Estados Unidos, no North Shore University Hospital, afiliado da Cornell University, sob a coordenação de Fima Lifshitz, isto após eu ter apresentado o referido trabalho no Congresso Mundial de Pediatria, em Buenos Aires, em 1974.
Figura 25- Coleta se secreção jejunal de paciente para estudo bacteriológico no Instituto Malbran.
Figura 26- Bacteriologistas do Instituto Malbran semeando a amostra da secreção jejunal em meio de cultura. O ano de 1973 passou muito rápido, muitos
fatos políticos tornaram-se marcantes em minha vida, como por exemplo ter tido
a dura consciência dos dramas pessoais causados pelas torturas no Brasil, o
retorno à democracia na Argentina, com muitas festas, após a renúncia do
general Alejandro Lanusse, a eleição do peronista Hector Campora, o retorno de
Juan Domingo Peron à Argentina em setembro, após 17 anos de exílio na Espanha, seguido
de sua eleição para Presidente da
República. Além disso, outro fato político marcante foi o golpe de Estado ocorrido
no Chile, com a deposição e assassinato do Presidente Salvador Allende, em 11
de setembro, o que causou uma grande comoção popular em Buenos Aires. Tudo isso
foi intensamente vivido por mim, posto que representava uma novidade
extraordinária, considerando que no Brasil vigia uma situação de medo generalizado
de qualquer manifestação popular de protesto contra o governo de turno, imposta
pela ferrenha ditadura do general Medici.
O ano vinha terminando, e,
como tal era hora de rumar de volta aos meus pagos. Assim escrevi em meu
diário: “Já faz 11 meses que estou aqui e logo mais estarei de volta. O
interessante e ao mesmo tempo pode parecer uma incoerência é que tudo se passou
tão rápido que nem deu tempo para sentir bem, mas, por outro lado, parece que
estou aqui já faz muito tempo, quem sabe muitos anos, ou melhor ainda, que aqui
sempre foi meu lugar de trabalho, pois adaptei-me tão bem e sou tão bem tratado
e respeitado, que talvez seja essa a razão de todo este meu sentimento. O que
sinto é que realmente tornei-me muito ligado a toda esta gente e a este país
maravilhoso; tenho certeza, a mais absoluta de todas as certezas, de que cada
vez que pensar nesta gente daqui irei me emocionar profundamente. Não se pode esquecer
nada depois de se viver tão intensamente como eu vivi aqui”. Em verdade
este sentimento ainda lateja em meu coração quando por algum motivo volto no
tempo e me ponho a pensar naquele ano que representou o “turning point”
da minha vida pessoal e profissional.
Figura 27- Poster que me foi
presenteado pelo corpo de Residentes do Policlínico Alejandro Posadas na minha
despedida.
Sobre Toccalino assim me
manifestei:” por fim, o grande chefe do circo, o comandante genial, o
cérebro de toda a coisa, o homem prático e matemático que domina a todos sem se
impor a ninguém, o conselheiro de todas as horas, o super-homem incansável e
imbatível. Sim, ele mesmo, o meu maior ídolo, o cara que a gente quer ser
quando crescer. Este cara, em especial, eu não posso deixar de lembrá-lo a cada
momento da minha existência como médico. Para que se tenha uma ideia ele um dia
me disse o seguinte, quando me queixava de que no Brasil não havia a
possibilidade de se fazer um Serviço como o do Posadas. Ele assim me respondeu:
lá não é diferente daqui, e o que é necessário é trabalhar e formar uma equipe
coesa. Pensei muito nisto e depois de algum tempo cheguei à conclusão de que o
seu Serviço não é nada distinto das coisas daí. Basta fazer o que ele prega.
Eu irei fazer o que ele prega”. Este texto foi escrito em 1973 e
reproduzi fielmente o que está escrito. Posso agora, em 2023, após passados 50
anos do meu auto assumido compromisso de honra, dizer com orgulho que, eu,
juntamente com outros colegas e amigos, fiz o que Horácio Toccalino pregava.
Foram anos incansáveis de construção da Disciplina de GastroPediatria, a qual
se tornou referência nacional e internacional durante anos seguidos, formando
um sem-número de jovens profissionais, uma produção científica invejável,
cursos de Especialização e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) reconhecidos em
todo o Brasil e no exterior. Uma breve ideia que pode atestar a afirmação de
que eu iria fazer o que Toccalino pregava pode ser confirmada na análise resumida
do meu Currículo Lattes na plataforma do CNPQ, abaixo descrita:
Possui
graduação em Medicina pela Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP) (1970), Residência Médica em Pediatria na EPM
(1971-73), especialização em Gastroenterologia Pediátrica no Policlínico
Alejandro Posadas, Buenos-Aires, República Argentina (1973), Mestrado em
Gastroenterologia Pediátrica pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas
de Gastroenterologia (1977) e Doutorado em Pediatria (1977) pela EPM/UNIFESP,
Pós-Doutorado em Pediatric Research, no North Shore University Hospital, Nova
Iorque, Cornnell University (1977-1979), Doutorado em Gastroenterologia pela
EPM/UNIFESP (1979). Professor Titular, Departamento de Pediatra, Disciplina de
Gastroenterologia, da EPM/UNIFESP (1988-2014). Pesquisador do CNPq Nível I com
Bolsa de Produtividade em Pesquisa (1979-2014). Professor Visitante da Cornell
University, Nova Iorque, EUA (1981-1985). Professor Orientador do Programa de
Pós-Graduação do Departamento de Pediatria da EPM/UNIFESP (1982-2014). Orientou
27 Teses de Mestrado e 21 Teses de Doutorado. Coordenador de Projetos de
Pesquisa da FINEP (2001-2005). Coordenador de Projetos de Pesquisa FAPESP, CNPq
e CAPES. Membro eleito do Comitê de Avaliação do CNPq, Área de Medicina
(1991-1994). Presidente da Comissão de Programa de Pós-Graduação (Mestrado e
Doutorado) do Departamento de Pediatria da EPM/UNIFESP (1994-1996). Chefe do
Departamento de Pediatria da EPM/UNIFESP (1996-1999). Publicou 324 Artigos de Pesquisa
na Área da Ciências da Saúde, em Periódicos Científicos Nacionais e
Internacionais, indexados no PUBMED. Publicou livro “Tratado de
Gastroenterologia Pediátrica”, Primeira Edição, Editora Medsi (1985). Publicou
Livro “Tratado de Gastroenterologia Pediátrica”, Segunda Edição, Editora Medsi,
revisada e ampliada (1991). Fundador da Sociedade Latino-Americana de
Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição em Pediatria (1975). Fundador da
Sociedade Paulista de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição em Pediatria
(1984). Agraciado com a Comenda da “Ordem Nacional do Mérito Científico” do
Ministério da Ciência e Tecnologia: Grau Grã-Cruz (2002). Agraciado com a
“Ordem do Mérito Aeronáutico”: Grau Grande-Oficial (2007). Experiência em
Educação Aberta desde 1996 como Editor-Chefe da Electronic Journal of Pediatric
Gastroenterology, Hepatology and Nutrition, Criador e Editor do blog:
http://gastropedinutri.blogspot.com.br; Membro do corpo Editorial das seguintes
Revistas: Revista Paulista de Pediatria, Jornal de Pediatria, Arquivos de
Gastroenterologia, Journal of Pediatrics e Jornal of Pediatric Gastroenterology
and Nutrition. Membro do Executive Council da Federation of the International
Societies for Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition, como representante
eleito pela Latin American Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology
and Nutrition, de agosto de 2000 a agosto de 2008. Presidente do 30
Congresso Mundial de Gastroenterologia Pediátrica, Hepatologia e Nutrição,
realizado em Foz do Iguaçu, em agosto de 2008. Vice-Reitor da UNIFESP
(1999-2003). Reitor da UNIFESP (2003-2008). Tem experiência na área de
Medicina, com ênfase em Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição, atuando
principalmente nos seguintes temas: diarreia aguda, diarreia persistente,
diarreia crônica, enteropatia ambiental, crianças de populações nativas, doença
celíaca, alergia alimentar e Escherichia coli. Descreveu a entidade clínica
Enteropatia Ambiental internacionalmente reconhecida pela Wikipedia (1984).
Presidente de Honra do XVIII Congresso da Sociedade Latina Americana de
Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição em Pediatria, realizado em Punta
Cana, República Dominicana (2011).
Após meu retorno ao Brasil
fui contratado como Professor pela Escola Paulista de Medicina, e como tal,
mantive estreita relação com Toccalino indo visitá-lo na Argentina e ele vindo ao Brasil, várias vezes, nos anos
que se seguiram até seu passamento. Tivemos a oportunidade de estarmos juntos
aqui no Brasil, em São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre, participando de cursos de
atualização, e difundindo a sociedade recém-criada, sua eterna obsessão, até
mesmo quando já estava tremendamente debilitado pela enfermidade que causou sua
morte.
Figura 28- Uma jornada de
Atualização, em 1975, em Belo Horizonte.
Nosso último encontro se deu
em Porto Alegre em junho de 1977, um mês antes de eu viajar para realizar meu
Pos-Doc, em Nova Iorque. Ele já se encontrava visivelmente combalido, estávamos
participando de um Curso de Atualização, ele estava na Mesa de Apresentação, eu
estava na plateia, já havia feito minha apresentação, tinha que pegar o voo de
volta para São Paulo, levantei-me fui até onde ele se encontrava e dei o abraço
mais longo e emocionado da minha vida. Ambos entre lagrimas nos despedíamos,
sabíamos que era para sempre, e ele ainda teve as seguintes palavras para me
dizer: “assim que chegar lá me escreva, conte-me com detalhes tudo o que
você estiver fazendo, necessito muito saber como é a vida por lá”. Passados
alguns meses, já trabalhando no North Shore, decidi escrever uma carta para
Toccalino. Sentei-me na grama do jardim em frente do meu apartamento e escrevi
a carta mais longa da minha vida, 21 páginas, contando com riqueza de detalhes
minha experiência norte-americana. Os anos se passaram, e, em 1984, ao sair do
local onde era realizado o Congresso da Sociedade Latino-Americana de
Gastroenterologia Pediátrica, acompanhado de uma colega argentina, Maria Rosa
Berlingerio, caminhando por uma rua de Buenos Aires ela me disse:” Ulysses
sei que você escreveu uma longa carta ao Toccalino quando vivia nos Estados
Unidos. Ele em seus últimos momentos de vida havia jogado todos os seus
pertences fora, menos a referida carta. Ele me pediu para guardá-la, e, quando
eu achasse que havia chegado o momento certo deveria devolvê-la para você. Estou
com ela aqui comigo, e chegou o momento certo, devolvo-lhe a carta com um beijo
do Toccalino”.
Esta carta, cuja primeira página
está fielmente reproduzida abaixo, permanece
em minha posse até os dias atuais, já a li e reli muitas vezes, e, cada vez que
o faço meus olhos ficam marejados de emoção e saudade do meu grande Mestre,
Tutor e Amigo. As páginas estão totalmente amareladas e frágeis, mas intactas,
são uma joia que guardo com todo carinho, ela é de um valor inestimável.
Por tudo o que acima
descrevi creio ter cumprido plenamente os desígnios do meu grande tutor Horácio
Toccalino, e, desta forma me considero em condições de parafrasear o grande
poeta chileno Pablo Neruda, prêmio Nobel de Literatura, em 1971, que escreveu,
na abertura do seu livro de memórias, “Confieso que he vivido”. Eu
também permito-me afirmar o mesmo, acrescentando a palavra “INTENSAMENTE !!!”.