Prof.
Dr. Ulysses Fagundes Neto
A
renomada revista JPGN publicou um artigo de revisão colaborativo
da NASPGHAN, AGA e ACG, em agosto de 2021, intitulado “A collaborative
effort to advance drug development in pediatric constipation and irritable
bowel syndrome”, de Saps M. e cols., que abaixo passo a resumir em seus
principais aspectos.
Introdução
Os
Transtornos Funcionais Gastrointestinais
(TFGs) são caracterizados por sintomas gastrointestinais persistentes que não
podem ser atribuídos a anormalidades estruturais e/ ou bioquímicas. Dentre os
TFGs mais frequentes encontram-se a Constipação Funcional (CF) e a Síndrome do
Intestino Irritável (SII), as quais, apresentam taxas de prevalência nas
crianças de 14,01% e 5,1% respectivamente. Ambas as condições clínicas
apresentam um considerável impacto na qualidade de vida de seus pacientes e
famíliares, bem como nos custos dos cuidados à saúde. Os diagnósticos dos TFGs são
clínicos e usualmente estabelecidos de acordo com os sintomas básicos seguindo
os Critérios de Roma. Os critérios de Roma IV, dividem os transtornos por grupo
etário, a saber: neonatos/pré-escolares e crianças/adolescentes: a CF pode
surgir em ambos os grupos etários, enquanto a SII ocorre apenas nas
crianças/adolescentes. Além de facilitar um diagnóstico mais acurado e seu
respectivo manejo em ambos os transtornos, os Critérios de Roma tem sido também
utilizados para definir a população de pacientes para investigação clínica.
O desenvolvimento
de medicamentos para os TFGs em pediatria, tem enfrentado desafios ímpares no
diagnóstico e na avaliação dos desfechos (Tabela 1). Crianças mais jovens podem
ser incapazes de relatar os sintomas, ou podem ter dificuldades de descrevê-los
acuradamente e de quantificá-los. Por essa razão, ensaios clínicos devem, de
uma maneira geral, se fiar prioritariamente nos desfechos referidos pelo
observador, do que nos desfechos relatados pelos próprios pacientes. Fatores do
desenvolvimento e do comportamento, tais como, o estado do treinamento do
controle esfincteriano, e da boa vontade dos tutores para a permissão para o
uso dos banheiros do colégio, podem prejudicar a avaliação do desfecho. Vários
ensaios clínicos com medicamentos para os TFGs, incluindo alguns deles que se
mostraram eficazes em adultos, têm fracassado em demonstrar um benefício geral
quando comparados com placebo, nos pacientes pediátricos.
Tendo em vista as
dificuldades acima referidas, a FDA patrocinou uma oficina de trabalho em março
de 2018, para discutir a melhor abordagem para avaliar os possíveis tratamentos
para os pacientes pediátricos portadores de CF e SII, que a seguir será descrita.
Constipação
Funcional (CF)
A CF é
diagnosticada clinicamente, e, comumente não requer investigação mais profunda.
Os Critérios Roma IV apresentam diferentes critérios diagnósticos para lactentes
e pré-escolares do que para crianças e adolescentes, e ainda mais, alguns
critérios somente são aplicáveis para as crianças que adquiriram controle
esfincteriano. Essas definições de CF estão baseadas em uma combinação de
fatores que incluem a frequência e as características da Motilidade da
Evacuação (ME), incluindo sintomas tais como dor; entretanto, estudos recentes
têm demonstrado que somente 39% dos
pacientes com CF, apresentam uma frequência anormal da ME, enquanto que 75%
apresentam incontinência fecal funcional. A fisiopatologia de base da CF varia
de acordo com o grupo etário. Nos pré-escolares, o comportamento de retenção
tende a ser o fisiopatológico mais proeminente, enquanto que nas crianças e adolescentes,
são mais frequentes a constipação devido ao trânsito colônico retardado e
anormalidades nas dinâmicas da evacuação. As expectativas e reações dos pais
são importantes, tais como reconhecimento dos efeitos da relutância das
crianças em utilizar o vaso sanitário no colégio e o bullying resultante
que as crianças sofrem quando ocorre incontinência fecal funcional. O
tratamento precoce da CF é primordial para prevenir problemas crônicos. Os
objetivos da terapêutica farmacológica incluem desimpactação e manutenção da
regularidade de fezes pastosas. As diretrizes de manejo da ESPGHAN e NASPGHAN
recomendam o Polietileno Glicol como terapêutica de primeira linha de
tratamento para a CF em crianças. Estudos de longo prazo demonstram resolução da
constipação em 60% das crianças, porém, entre 15 e 20% ainda continuam a
apresentar sintomas intratáveis, e muitas delas ainda irão apresentar CF na
vida adulta. Ensaios controlados realizados em crianças fracassaram em demonstrar
superioridade dos novos agentes terapêuticos incluindo secretagogos e
pró-cinéticos que tem sido eficazes na CF
em adultos. Este fato pode ser explicado devido a inclusão de uma população
heterogenia com uma grande variação de idades, uma heterogeneidade de
fisiopatologia de base causadora dos sintomas e os desfechos inapropriados para
avaliar os benefícios terapêuticos.
Marcos
regulatórios de interesse na CF
1-
Redução dos sintomas: em algumas situações a resolução de todos os
sintomas pode não ser necessária para se concluir a eficácia de um determinado
medicamento. No caso desta abordagem ser a selecionada os esforços devem ser
dirigidos para determinar a quantidade mínima da melhoria clínica para ser considerada
aceitável, para um determinado sinal ou sintomas.
2-
Motilidade evacuatória espontânea: é aquela
considerada ocorrer espontaneamente sem intervenção, ou aquela que ocorre nas
próximas 24 horas após a administração de uma terapia de resgate.
3-
Redução dos episódios de incontinência
fecal funcional: este tópico trata-se de um marcador
importante na avaliação de um avanço na melhoria das manifestações clínicas do
paciente.
4-
Alívio na maioria dos sintomas incômodos
mais importantes: a avaliação na redução dos sintomas incômodos
mais importantes, deve necessitar a utilização de ferramentas de avaliação para
cada sinal ou sintoma, e, também, levar em consideração determinados dados para
auxiliar na avaliação de quanto significativo
foi o alívio do paciente.
Impacto da taxa de resposta
ao placebo
Nos ensaios clínicos prévios envolvendo
crianças, a resposta ao placebo, foi maior do que nos adultos, enquanto que a
taxa de resposta a um tratamento ativo foi similar. Os participantes do painel
concordaram que os ensaios clínicos envolvendo crianças necessitam ter tamanho
amostral adequado para se contrapor aos altos efeitos do placebo. Recentemente,
ensaios com prucalopride demonstraram que a despeito do grau de efeito
ser similar em crianças e adultos, os resultados nos estudos pediátricos não se
mostraram estatisticamente significativos, possivelmente devido a um tamanho
amostral limitado.
Síndrome do Intestino
Irritável com Constipação
Não há medicamentos aprovados pelo FDA
para o tratamento da SII-C para as crianças. Inúmeros ensaios clínicos
fracassaram em demonstrar benefícios em comparação com placebo, enquanto que
outros não apresentaram uma eficácia comprovada para o tratamento da dor
abdominal. O subcomitê de Roma recomenda para ensaios clínicos em pediatria, a
elaboração de ensaios duplo cego, placebo controlado, com duração de pelo menos
4 a 6 semanas. É recomendado que os critérios de inclusão deve levar em
consideração uma média de dor abdominal de intensidade de 3, dentro a avaliação
de 0 a 10, em um período de 1 a 2
semanas, para assegurar que a inclusão dos pacientes seja suficientemente significativa
para poder haver uma real avaliação clínica e que os pacientes tenham no mínimo
8 anos de idade.
Marcos
regulatórios de interesse na CF
1)
Frequência e intensidade da dor
abdominal: os dados nos pacientes pediátricos com SII, sugerem uma
boa correlação entre a intensidade e a frequência da dor, e, portanto, qualquer
um destes aspectos é aceitável como índice mensurável. O painel concluiu que é
importante comparar os desfechos entre pacientes que apresentam dor continua
versus dor intermitente.
2)
Características das fezes: O
painel discutiu sobre a inclusão das características das fezes (frequência e/ou
consistência) como um indicador primário, posto que as fezes podem não afetar a
qualidade de vida, quanto a dor abdominal; entretanto, levantou-se a hipótese
de que para alguns indivíduos as características das fezes são mais importantes
que a dor.
3)
Incapacidade funcional:
ainda que haja desaparecimento da incapacidade funcional, o que é um importante
objetivo do tratamento, uma determinada medicação deve ser eficaz para diminuir
a dor. A incapacidade não é um marcador primário apropriado, posto que ela pode
ser impactada por múltiplos fatores, alguns dos quais são improváveis de alterar
uma resposta direta ao tratamento farmacológico.
Conclusões
Essa
oficina de trabalho, identificou a necessidade da elaboração de novos desenhos
de estudo, identificando marcos regulatórios específicos para os pacientes pediátricos,
que possam apreender os aspectos mais importantes das doenças em crianças, as modificações
nos critérios de elegibilidade para selecionar as populações mais apropriadas
para serem estudadas, e as definições alternativas das respostas dos pacientes
pediátricos portadores CF e SII. Um sumário integrado por desafios primordiais
que devem ser discutidos em breve futuro estão apresentados na Tabela 2.
Meus
Comentários
A
Constipação funcional e a Síndrome do intestino irritável com constipação se
constituem em Transtornos funcionais do trato digestivo extremamente
desafiadores na Gastroenterologia pediátrica devido a sua elevada prevalência e
as respectivas dificuldades diagnósticas e terapêuticas. Até o presente
momento, foi possível depreender que esta oficina de trabalho, conduzida por
experts de reconhecida competência internacional, trouxe mais dúvidas a serem
esclarecidas do que alguma luz no fim do túnel. Este documento enfatiza a
necessidade da elaboração de desenhos de estudo com validade científica para
melhor esclarecer a fisiopatologia destes transtornos, e, ao mesmo tempo, encontrar medidas terapêuticas de eficácia
comprovada, que possam eliminar o sofrimento dos nossos pacientes, ou caso esse
mister não seja possível, pelo menos minimizar os sintomas para que se possa
oferecer uma melhor qualidade de vida aos nossos pacientes. Enquanto estas
informações não estão disponíveis ao nosso alcance, resta-nos explicar aos
pacientes e seus familiares que estamos frente a um problema que não apresenta
riscos de complicação, posto que não há lesão orgânica palpável, e nos cabe
propor medidas terapêuticas para abrandar a sintomatologia, para melhorar a
qualidade de vida dos nossos pacientes.
Referências
Bibliográficas
1-
Saps M. e cols – JPGN 2021;73:45-149
2-
Robin SG. e cols – J. Pediatr2018; 195:134-9
3-
Tabbers
MM. e cols – JPGN 2014; 58:265-81