terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Enfermidades Gastrointestinais Eosinofílicas abaixo da “cintura”

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A renomada revista J Allergy Clinn Immunol publicou um artigo de revisão, em janeiro de 2020, intitulado “Eosinophilic gastrointestinal disease below the belt”, de Pesek R. e cols., que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos.

Introdução

As Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais são doenças raras do trato gastrointestinal causadas por inflamação alérgica e disfunção gastrointestinal. Inicialmente descritas em 1978, o reconhecimento destes transtornos  tem aumentado consideravelmente ao longo das últimas décadas. A Esofagite Eosinofílica a mais frequente delas, tem recebido a maioria das atenções, o que acarretou avanços significativos na compreensão dos mecanismos desta enfermidade, adoção de normas de conduta para seu diagnóstico e manejo,  e ensaios clínicos em andamento para fornecer opções terapêuticas mais amplas. As Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais, podem afetar outras partes do trato gastrointestinal, e incluem a Gastrite Eosinofílica, a Gastroenterite Eosinofílica e a Colite Eosinofílica, as quais, ainda permanecem menos compreendidas em comparação a Esofagite Eosinofílica. O presente artigo tem por objetivo fazer uma revisão dos conhecimentos atuais a respeito das Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais.  

Esofagite Eosinofílica: Padrão Ouro

A Esofagite Eosinofílica originalmente considerada uma manifestação de refluxo gastroesofágico, atualmente é reconhecida como uma enfermidade imunologicamente mediada caracterizada por inflamação eosinofílica TH2-dirigida do tecido esofágico. A incidência e a prevalência da Esofagite Eosinofílica tem aumentado significantemente ao longo das duas décadas, e, a incidência atualmente estimada é de 10 para 100mil indivíduos e a prevalência entre 10 e 57 para 100mil. Avanços significativos têm sido alcançados a respeito dos mecanismos de base da enfermidade, a identificação dos endotipos e a padronização das medidas de desfecho. Os locus da suscetibilidade genética foram identificados como 5q22 e 2p23 os quais codificam para a TH2-promovedora da citocina tímica estroma da linfopoetina e a proteína calpaim-14 da barreira esofágica, assim como as variantes próximas dos genes STAT6 e LRRC32. Recentes estudos com perfis de transcrição utilizando espécimes de biópsias da mucosa esofágica, têm permitido que os pacientes sejam divididos em 3 endotipos, a saber: um grupo relativamente benigno, um grupo inflamatório, e um grupo fibroestenótico (Figuras 1 e 2).


Figuras 1 e 2- Espécime de biópsia esofágica evidenciando na Figura 1 aumento significativo de eosinófilos (acima de 15 por campo de grande aumento); a Figura 2 evidencia verdadeiro abscesso eosinofílico.

 

Ensaios terapêuticos no passado foram prejudicados pela falta de padronização da relação entre o laudo endoscópico e o desfecho histológico, fato este que impediu a aprovação de várias terapêuticas inovadoras. Nestes últimos 5 anos, uma variedade de ferramentas tem sido desenvolvidas como esforço para retificar esse tema. O índice de atividade da Esofagite Eosinofílica direciona as medidas para o desfecho de um determinado paciente, incluindo a qualidade de vida. A pontuação endoscópica da Esofagite Eosinofílica é largamente utilizada na avaliação dos achados endoscópicos, e, o sistema de pontuação histológica mensura de forma acurada as anormalidades histológicas.

As Enfermidades Eosinofílicas não esofágicas: situação atual

Ao contrário do esôfago, eosinófilos são residentes normais do trato gastrointestinal inferior, e números aumentados têm sido tradicionalmente associados com infestação parasitária, síndrome hipereosinofílica, alergia a drogas e alimentos ou doença inflamatória intestinal, porém, pode também se constituir em uma marca padronizada das Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais. Inúmeros pacientes podem apresentar sintomas inespecíficos, tais como: dor abdominal, vômitos e/ou diarreia, e, considerando-se que as Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais são raras, outras enfermidades são frequentemente consideradas como primeira opção diagnóstica. Endoscopicamente, anormalidades variadas, tais como, nódulos, pólipos ou ulcerações, podem estar presentes, porém, os achados também podem ser sutis ou mesmo ausentes, o que pode evitar que as biópsias sejam realizadas. A Eosinofilia do trato gastrointestinal pode também ocorrer em múltiplos locais, aumentando a confusão diagnóstica. As Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais não esofágicas, tendem a ser condicionadas por um mecanismo similar ao TH2, com níveis mais elevados de IL-4, IL-5 e IL-13, do que nos indivíduos normais. A IgE não desempenha um papel central na patogênese da Esofagite Eosinofílica, e este também parece ser o caso, nos pacientes com as Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais não esofágica. Por outro lado, é interessante notar que um ensaio clínico utilizando omalizumab em pacientes com Gastrite Eosinofílica e Gastroenterite Eosinofílica, aqueles que foram assim tratados, apresentaram uma diminuição na contagem de eosinófilos no estômago e no duodeno, e, também, apresentaram uma melhoria nos escores dos sintomas clínicos. Salientando que embora a IgE não seja um efetor primário da enfermidade, poderia ter desempenhado um papel importante em um subgrupo de pacientes.

Os mecanismos da Colite Eosinofílica parecem ser mais complicados para serem elucidados. Isto se deve ao fato de poder haver substancial sobreposição com a Doença Inflamatória Intestinal, a qual pode apresentar-se com eosinofilia intestinal e aspectos clínicos semelhantes. Tudo indica haver diferenças especificas nas patogêneses, que podem diferenciar os pacientes entre essas duas enfermidades. Pacientes com Proctocolite Alérgica expressam a Eotaxina-2 de forma mais acentuada nos linfócitos intraepiteliais, e, demostram aumento da degranulação dos mastócitos em comparação com indivíduos controle ou mesmo em pacientes com Doença de Crohn ou Colite ulcerativa. Embora eosinófilos teciduais possam ser observados em ambos os casos, tanto em pacientes com as Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais como aqueles com Doença Inflamatória Intestinal, as Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais estão associadas a maior eosinofilia no sangue periférico, bem como níveis aumentados de citocinas que provocam a eosinofilia, em comparação com a Colite ulcerativa (Figuras 3 e 4).

Figura 3- Espécime de biópsia retal de paciente portador de Colite Alérgica evidenciando aumento significativo de eosinófilos na lâmina própria.

Figura 4- Espécime de biópsia retal em grande aumento de paciente portador de Colite Alérgica evidenciando aumento significativo de eosinófilos na lâmina própria e intraepetielial.

 

Tratamento das Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais não esofágicas

O tratamento das Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais não esofágicas, ainda permanece com limitações. Em pequenos grupos de pacientes, dietas a partir da eliminação de determinados alimentos tendem a beneficiar os pacientes e aplacar os sintomas clínicos  assim como as alterações histológicas, ainda que estas condutas possam ser menos efetivas nas Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais  não esofágicas do que as comprovadas na Esofagite Eosinofílica. O uso de corticoesteróides pode induzir remissão da enfermidade, mas, preparações tópicas que são efetivas em pacientes com Esofagite Eosinofílica, causam benefícios limitados em pacientes com enfermidades no trato gastrointestinal inferior. Para contornar essa dificuldade, preparações entéricas revestidas ou corticoesteróides sistêmicos devem ser utilizados, o que, entretanto, aumentam o risco de efeitos colaterais. Estudos recentes utilizando os medicamentos biológicos tais como Vedolizumab e Benralixumab têm se mostrado promissores na redução da eosinofilia gastrointestinal e mesmo quanto à necessidade de esteroides sistêmicos, porém, novos estudos são necessários para uma comprovação definitiva desta proposta terapêutica.

Perspectivas futuras

O campo das Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais, tem se expandido rapidamente ao longo das últimas décadas. No caso das Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais não esofágicas, muita pesquisa faz-se necessária para alcançar os progressos vistos no tratamento da Esofagite Eosinofílica (Tabela 1). Em primeiro lugar, critérios diagnósticos mais específicos da Gastrite Eosinofílica, Gastroenterite Eosinofílica e a Colite Eosinofílica devem ser elaborados.



Em segundo lugar, mensurações de desfecho devem ser desenvolvidas incluindo aqueles relatados pelos pacientes além das avaliações endoscópicas e histológicas. Estas informações, pavimentarão os ensaios clínicos terapêuticos, e, dessa forma, evitarão alguns dos problemas observados nos primeiros ensaios clínicos no tratamento da Esofagite Eosinofílica.

Em terceiro lugar, é necessário um esforço adicional para o conhecimento da patogênese destas enfermidades. Como previamente discutido a análise transcriptomica tem demostrado diferenças entre a Esofagite Eosinofílica e a Gastrite Eosinofílica, e, isto posto estudos adicionais são necessários naqueles pacientes portadores outras Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais não esofágicas. Por exemplo, estudos em modelos envolvendo camundongos com Gastrite Eosinofílica e Gastroenterite Eosinofílica, a depleção dos eosinófilos, assim como dos anticorpos contra Siglec-8 e CCR3, têm demonstrado a normalização dos eosinófilos teciduais, bem como dos mediadores inflamatórios, o que tem permitido a identificação de potenciais alvos terapêuticos.

Em quarto lugar, ensaios longitudinais são necessários para alcançar uma melhor compreensão dos mecanismos da doença e os desfechos a longo prazo. Entretanto, como as Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais não esofágicas são raras, este fato acarreta uma  dificuldade para a realização de ensaios clínicos longitudinais. Para contornar estas dificuldades, será necessário o desenvolvimento de grupos de pacientes e fontes cientificas de pesquisa envolvendo colaboração regional, nacional e internacional.

Referências Bibliográficas

1-    Dellon ES e cols. – Gastroenterology 2018;155:1022-33

2-    Mouwad FI e cols. – Gastrointest Endoscopy Clin N Am 2019;28:15-25

3-    Warners MJ e cols. – Am J Gastroenterol 2017;112:1658-69

4-    Grandinetti T e cols. – Dig Dis Sci 2019;64:2231-41

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